Arquivo mensais:janeiro 2012

Um diretor livre de amarras

João Fonseca, diretor

Conheci pessoalmente o diretor João Fonseca ano passado, quando estive no Rio para fazer uma matéria sobre Tim Maia – Vale tudo, o musical. Acompanhada por dois colegas, estivemos na casa do diretor, um apartamento pequeno e charmoso. Lembro que, enquanto, conversávamos, meus olhos se desviavam para os DVDs que ele guardava na sala… Falamos sobre a montagem, sobre musicais, sobre Tiago Abravanel, mas não tive oportunidade de comentar mais a própria carreira do diretor.

Com uma produção tão intensa, não iria faltar chance; ela veio agora, com a apresentação de R&J de Shakespeare – Juventude interrompida, no Teatro de Santa Isabel, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. Do aeroporto, indo de São Paulo de volta ao Rio, o diretor conversou comigo sobre a peça, sobre novas montagens, Os fodidos privilegiados, Abujamra, direção, sobre a vontade de vir ao Recife.

Em R&J de Shakespeare…, João Fonseca trabalhou com quatro jovens: Rodrigo Pandolfo, Pablo Sanábio, João Gabriel Vasconcellos e Felipe Lima. Diz que uma das coisas que mais chama atenção na montagem é o jogo que se estabelece com a plateia, já que são esses quatro rapazes que irão interpretar a história do casalzinho proibido mais famoso da dramaturgia mundial.

Entrevista // João Fonseca

Adaptações da obra de Shakespeare são bem difíceis. Porque você escolheu trabalhar com esta do americano Joe Calarco? O que ela tem de diferente?
Essa adaptação de Joe Calarco estreou em Nova York há uns 15 anos. E eu fiquei muito curioso, porque era muito interessante fazer Romeu e Julieta com quatro homens. Fiquei com aquela curiosidade. Quando o Pablo (Sanábio) me procurou para fazer um trabalho, eu falei desse texto. Nós lemos e resolvemos na hora. A habilidade do texto é impressionante. Centrar a história de Romeu e JUlieta num colégio interno de meninos e ter esses quatro meninos, que se reúnem para ler, para brincar de fazer Romeu e Julieta, e conseguir contar a história toda só com esses quatro é muito bom.

Como foi o processo de trabalho?
Trabalhamos durante 45 dias, exaustivamente. Oito horas por dia. O texto é bastante difícil. A tradução é do Geraldinho Carneiro, que é poeta. Ele fez uma tradução fluente, mas sem perder a poesia. Os textos são longos e como então dizer esses textos de maneira natural? Cada um faz mais de um personagem e troca de personagem com muita rapidez. João Gabriel Vasconcellos, por exemplo, faz Romeu, a criada e o pai de Julieta. É um exercício para ator incrível, essa possibilidade de fazer vários personagens. E é um atrativo para o público.

R&J de Shakespeare - Juventude interrompida Foto: Luiz Paulo

Romeu e Julieta é, talvez, a história mais conhecida de Shakespeare. Como torná-la ainda atrativa, surpreendente?
A história é ótima. E é bom, porque todo mundo já sabe o final! Eles morrem, todo mundo conhece. Ou melhor, as pessoas acham que conhecem o texto, mas na realidade, muitas não conhecem. E tem todos os elementos de uma peça completa: comédia, drama, ação. É a melhor história de amor de todos os tempos. Mas acho que uma das coisas que mais chama a atenção do público é o jogo que se estabelece. São quatro garotos e se estabelece um jogo com a plateia. Quatro atores representando e como é que eles vão resolver essa história, como vão criando. Não existem figurinos e cenários para Romeu e Julieta, por exemplo. O casaquinho da escola vai virar saia, turbante, a régua vira uma espada, o esquadro vira máscara. E também só de serem quatro homens, já causa um frisson a mais. A peça estreou um ano atrás, exatamente.

Qual a reação das pessoas com esse romance protagonizado por homens?
No começo, quando tem o primeiro beijo, as pessoas sentem um estranhamento, porque estão vendo dois meninos, mas, ao final, eles não vêem mais isso. O que importa é a história de amor. A plateia, sem querer, faz um exercício de tolerância, esquece que são dois homens.

Quais são os seus próximos projetos?
Estou estudando e preparando projetos. Mas posso te dizer que com Os Fodidos privilegiados vamos remontar dois espetáculos de Nelson Rodrigues: O casamento e Escravas do amor, em virtude das comemorações do centenário. Vamos reestrear no Festival de Curitiba. Os elencos são quase originais e vou trabalhar novamente com (Antônio) Abujamra. Vamos remontar, com pequenas mundanças. Vou até atuar.

O casamento, de Nelson Rodrigues, com Os fodidos privilegiados

Você falou no Abujamra. Eu queria saber da importância do Abujamra para a sua carreira.
Abujamra é meu pai, minha mãe, meu tudo. Sou diretor por causa dele. Ele me deu todas as chances, porque eu era ator. Foi ele quem me estimulou, me deixou ser diretor e me ensinou. A minha faculdade é Abujamra.

Mas você tinha intenção de ser diretor?
Não! Não tinha a menor pretensão. E acredito que, para ser diretor, não é você quem escolhe, você é escolhido. As pessoas confiam em você e querem você. E até hoje eu digo: “porque está todo mundo olhando para minha cara?” (Risos) Várias pessoas confiando em você num processo. Quando comecei a dirigir, percebi que a minha melhor vocação é essa. Apesar que eu gosto de estar me exercitando. É importante que eu nunca esqueça como é atuar. Acho que vou dirigir melhor dessa forma, quando eu me coloco atuando de novo, faço parte, tenho essa cumplicidade.

É porque, às vezes, o diretor é visto como um “ser superior”…
E não é nada disso! Não existe nada mais importante para um diretor do que o ator. O ator é o meu
instrumento de trabalho.

Você conseguiria definir a sua linha de trabalho, as suas características, como diretor?
A gente vai tentando…sempre me considero experimentando. Você vai adquirindo experiência e escolhendo caminhos. Gosto de dirigir tudo. Não tenho um gênero. Mas tenho algumas características. Gosto de trabalhar com poucos elementos, por exemplo, no palco vazio, só com cadeiras; e em trabalhos que estabeleçam esse jogo teatral. Isso é o mais importante, é o que acontece em R&J de Shakespeare. O menino vai se matar com uma régua e todo mundo vai acreditar. E essa régua está para o teatro como o efeito especial está para o cinema.

Durante a carreira, você teve que fazer muitas concessões?
Não, nunca fiz concessões. Não diferencio os projetos. Nunca dirigi uma coisa na qual não acreditasse. Sempre dirigi ou porque quero trabalhar com alguém ou porque quero falar aquilo, independente de ser um projeto armado com um elenco reunido só para aquela peça, se com uma companhia de repertório. Esses meninos de R & J eu conheci na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e agora eles estão se projetando, mas não eram conhecidos, não tinham carreira em televisão nem nada disso. E me dá muito prazer trabalhar com jovens que não têm essa projeção. E a gente nunca sabe o futuro de um projeto, se vai dar certo ou não. Eu não procuro esse guia, de porque vai ser com essa pessoa, vai ser sucesso garantido ou não. O próprio Tim Maia, o elenco não tinha ninguém conhecido. O Tiago Abravanel ninguém conhecia e deu certo. A peça está em cartaz no Rio. Mas deixa eu dizer, eu queria muito ir ao Recife também. A passagem estava comprada, mas aconteceram uns imprevistos. O pessoal do festival é super atencioso, carinhoso. E adoro o Santa Isabel. Tenho um carinho enorme por esse teatro.

Tim Maia - Vale tudo, o musical

Quando foi a última vez que você esteve aqui?
Se não me engano, foi com os Fodidos privilegiados, em 2006. A gente participou do Palco Giratório e apresentou três espetáculos no Santa Isabel.

Você dirigiu também Maria do Caritó, texto de Newton Moreno. O que acha dele?
É mais uma paixão pernambucana. Tenho muita admiração pelo Newton. Ele é um talento enorme. Com Maria do Caritó, Newton consegue fazer o que eu almejo na direção. Ele faz uma obra popular, acessível, mas de um refinamento, inteligência; fala de coisas importantes, tocando com profundidade as coisas. É de uma sabedoria popular. Eu digo que Maria do Caritó é um trabalho em que sou só uma parte de grandes coisas. Os atores são especiais, o texto, o cenário, o figurino, a equipe.

Maria do Caritó, texto de Newton Moreno

E Nelson Rodrigues?
É difícil, com Nelson, sair dos clichês. Ele é o meu autor favorito. É o que talvez eu mais dirigi. Fiz O casamento, Escrava do amor e A falecida. Nelson era muito moderno, arrojado, propôs e trouxe coisas para o teatro que não existiam. Desde Vestido de noiva. Era difícil aceitar. Em A falecida, ele propõe que não se usasse cenário. E ele entra de uma maneira na questão familiar! Que é muito chocante! Como ele lida com pai e filha, filha e mãe, indo de encontro. Chegar a isso era difícil. Porque não é um teatro realista. Joga com as paixões. E as pessoas não queriam: “a família brasileira não é uma perversão”. Em A vida como ela é e nas tragédias cariocas, ele retrata muito bem um cotidiano; mas é também capaz de falar da família como um todo, da instituição.

Serviço:
R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida
Quando: hoje e amanhã, às 20h30
Onde: Teatro de Santa Isabel
Quanto: R$ 10 (preço único)
Informações: (81) 3355-3322

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Edwin Luisi é o show

Edwin Luisi em Tango, bolero e cha cha cha. Fotos: Pollyanna Diniz

Da primeira vez que protagonizou Tango Bolero e Cha Cha Cha, em 2000, Edwin Luisi arrebatou cinco prêmios de melhor ator (Associação Paulista dos Críticos de Arte-APCA, SHELL, Quality Brasil, Governador Estado Rio de Janeiro e o Mambembe). Ao completar 40 anos de carreira o artista volta com Lana Lee/Daniel, transexual que magnetiza o espetáculo. A montagem faz a terceira apresentação hoje, no Teatro Luiz Mendonça, do Parque Dona Lindu, dentro do projeto Janeiro de Grandes Espetáculos.

O texto é de Eloy Araújo e a direção de Bibi Ferreira. Na trama, Daniel abandonou a família 10 anos antes e volta como o transexual Lane Lee para dar explicações à família sobre o que aconteceu. Ele se transformou numa estrela nos palcos de Paris e Nova York. A mulher mora no mesmo lugar, mudou pouco a disposição dos móveis e é meio lentinha para entender as coisas (ah, está também mais gordinha). O filho, agora adolescente, é revoltado com a atitude do pai, mas ao mesmo tempo mostra-se imaturo e carente.

Esse conflito perde o ar grave com a interpretação de Edwin Luisi – o Genaro da novela Rebelde (Record) – “sarocoteando daqui pra acolá”. Ele pula, dança, grita, explora tiques, e se diverte neste espetáculo.

Edwin Luisi já fez personagens inesquecíveis na televisão, como o protagonista Álvaro da primeira versão de A Escrava Isaura ou o assassino do personagem Salomão Hayala na primeira versão da novela O Astro. A última vez que esteve no Recife, que me lembro, foi com Eu Sou a Minha Própria Mulher, peça em que se multiplicava em 22 papéis diferentes, entre eles, um travesti.

Em Tango Bolero e Cha Cha Cha ele expõe seu talento e o sacrifício de passar quase duas horas “amarrado” por meias, espartilho, sutiã, em cima de um salto. Sua diva é cheia de cacoetes. O humor cáustico e a ironia da protagonista provocam gargalhadas que têm um efeito de onda na plateia.

Daniel volta ao Brasil como Lana Lee e trazendo o noivo Peter

Confesso que não achei tanta graça assim. Apesar de reconhecer o talento, o valor interpretativo do ator principal, prefiro um humor mais sofisticado, mais ao tipo de O deus da carnificina.

Mas o público adora Lana Lee e suas excentricidades. E se diverte com uma dramaturgia que transforma um problema grave em comédia para rir mesmo. Embarca nas tiradas previsíveis, nas piadas infames.

O elenco usa e abusa das gags com alto teor sexual. São personagens caricatas. A que mais se destaca é Carolina Loback, no papel da empregada doméstica “folgada” Genevra, que lembra algum personagem do Sai de Baixo. Ela provoca muitos mal entendidos no espetáculo. O ator que interpreta o filho (Johnny Massaro) é o mais fraco e não dá contraponto a esse humor escrachado, de ritmo frenético.

A folgada empregada Genevra entendeu tudo errado

É demorada demais a revelação. Fica parecendo que a mulher (Alice Borges) que foi trocada pelo bofe é um pouco retardada ou não vive neste mundo. Estica demais o que está óbvio. E o final também promete bem mais do que dá. E aquela enrolação do Peter (Pedro Bosnich) na frente das cortinas como apresentador é demais.

Clarice quase não consegue entender que Lana Lee é Daniel

A peça é recheado de clichês. Mas pode ser encarada como uma comédia de costumes, que questiona com humor o preconceito, inclusive dos que estão rindo.

Lana Lee fazendo sucesso nos palcos de Paris

Momento "eu sou é macho"

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O sertanejo que virou bailarina

A bailarina vai às compras será apresentada no Rio e em São Paulo, antes de vir ao Recife

“Não compreendo quem sou, só compreendo que estou…estou bailarina”.
(A bailarina vai às compras)

Da última vez em que participou do Janeiro de Grandes Espetáculos, o sertanejo de sotaque português Júnior Sampaio interpretava um professor de história. Agora, ele é uma transsexual, bailarina, compulsiva, sem grana. A bailarina vai às compras estreou em Novembro do ano passado, em Lisboa. Como nos meses de dezembro e janeiro, Sampaio foge do frio e vem matar as saudades da terrinha, também poderemos conferir a sua performance por aqui. Mas, antes disso, ele se apresenta no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A sinopse diz que A bailarina vai às compras releva um transexual de meia-idade que faz um espetáculo performativo nos corredores de um supermercado; mas o telefone não para de tocar e ele não tem dinheiro para comprar o que colocou no carrinho, então precisa devolver os produtos para as prateleiras.

A bailarina quer “açúcar, farinha, arroz, bens essenciais que não tem dinheiro para pagar. E acaba por devolver tudo e fazer do ato uma terapia contra a compulsão. E oferece-se ao público vulgar, transformando o supermercado no seu teatro e as caixeiras em público. Como todos nós, a personagem faz teatro para que a amem e para se tratar. E escolhe uma máscara que amplia, distancia, enormiza mas aflora a dor das suas dores. Afinal, a bailarina vai comprar amor. E não tem dinheiro para pagar”, explica a portuguesa Maria do Céu Guerra, que assina a coordenação artística do espetáculo.

“A busca da identidade — que começa por ser de género — vai revelando a necessidade da busca de uma identidade artística, uma individualidade… independente de gêneros, um eu artístico independente de julgamentos e de preconceitos, livre”, completa, Rita Lello, responsável pela encenação.

Em 2010, esse filho mais novo de uma família de sete irmãos, que viveu a infância entre uma fazenda e a cidade de Salgueiro, no Sertão pernambucano, me disse que quando ia começar uma nova peça, “um dos critérios é que não seja parecida com nada que fiz. Fujo muito ‘da minha cara’. Tem que ser uma coisa que o espectador queira, precise ouvir. Ligo as antenas para o mundo. Não gosto de fazer peça para o meu umbigo. Adoro o público”. E o público responde…adorou, por exemplo, as duas performances que ele fez no lançamento do Satisfeita, Yolanda?, no Espaço Muda. 😉

A bailarina… é a 44ª criação da companhia ENTREtanto Teatro, sediada em Valongo, em Portugal.

O ator Júnior Sampaio

Ficha técnica:
Texto e dramaturgia: Júnior Sampaio e Quico Cadaval
Coordenação artística: Maria do Céu Guerra
Encenação: Rita Lello
Interpretação: Júnior Sampaio
Figurinos: Manuela Bronze
Cenografia: Bruno Guerra
Voz: Maria Luís França
Desenho de luz: Vasco Letria
Música: Rui Lima e Sérgio Martins
Movimento: Ruben Garcia e Vânia Naia
Operação deluz e som: André Pires
Design: Vitor Cardoso
Fotografia de cena: Sara Verde
Produção Executiva: Amélia Carrapito e Sofia Leal

Serviço:

Dias: 12, 13 e 14 de janeiro, às 21h30
Onde: Teatro Tablado, Rio de Janeiro
Informações: (21) 2294-7847 / 21 2239-0229

Dias: 19, 20 e 21, às 21h
Onde: Espaço Satyros 1, São Paulo
Informações: (11) 3258-6345

Dias: 24 e 25, às 20h30
Onde: Teatro Barreto Júnior, Recife
Informações: (81)3421-8456

Dia: 27, às 20h
Onde: Teatro Rui Limeira Rosal, Caruaru
Informações: (81)3421-8456

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Essas velhinhas não estão no gibi

A atriz e diretora Maria Alice Vergueiro. Fotos: Ivana Moura

A atriz e diretora Maria Alice Vergueiro integrou o Teatro Oficina, foi professora de artes cênicas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e fundou na década de 1970 o legendário Grupo Ornitorrinco, ao lado de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia. Já interpretou Brecht, Shakespeare, Molière, Chico Buarque, Gerald Thomas e muitos outros. Tem carisma e forte presença cênica. É enfim uma personalidade importante da história do teatro brasileiro.

Mas ficou famosa na web com o vídeo Tapa na Pantera, em que interpreta uma senhora maconheira.

No espetáculo As três velhas a atriz reforça marcas do autor ao criticar a faceta pós-moderna das celebridades instantâneas.

O tom final da peça parece que tem mais pitadas de Maria Alice Vergueiro do que do dramaturgo, cineasta e quadrinista chileno Alejandro Jodorowsky. Uma crítica esfuziante ao sistema de patrocínios, à mercadoria que domina a vida das pessoas e ao próprio capitalismo que tem preço para tudo.

A propaganda é investida de algo cruel. De nobres (ou pseudonobres) elas passam a propagandistas dos refrescos Lulu e com isso consomem o lixo contemporâneo e alimentam a cadeia.

O cenário com tapetes gastos pendurados e um retrato da figura do Conde lembra as glórias do passado e indica uma atmosfera sombria e decadente. A pouca iluminação também remete para um cenário de terror. O exagero da maquiagem e do figurino insiste que o clima é de horror, mas não é para ser levado muito a sério.

Noite de horror e revelações para as marquesas

Num casarão mal-assombrado três criaturas vivem aquele dia da mudança, das revelações. A ruína familiar está exposta em toda parte, inclusive nos diálogos das três criaturas carcomidas pelo tempo e pela fome: duas marquesas octogenárias (Luciano Chirolli e Danilo Grangheia) e a centenária criada Garga (Maria Alice Vergueiro).

Absurdo e o fantástico se misturam nessa fábula bizarra e excessiva, propositalmente kitsch. As irmãs octogenárias Melissa e Graça são marquesas com título de nobreza e sem um tostão. Catam restos e brigam por um único vestido e uma dentadura. São vigiadas por Garga, que pontua e dá nota a tudo, presa em uma cadeira de rodas.

Delirantes, as gêmeas ainda sonham com um casamento para se salvarem da miséria. A criada exerce a função de fio terra para conter a insanidade, mas também funciona como demônio contribuindo para corroer ainda mais o frágil universo combalido.

Falta tudo na mansão e, como nos contos de fadas, vai ocorrer uma festa. Mas só há uma dentadura e um vestido. Então, apenas uma das gêmeas pode comparecer. Vai Graça, a irmã que sempre ganha nas disputas, mas volta estropiada, vítima de um assalto após o baile, onde sonhava reinar como rainha.

A outra que fica, Melissa, delira com o fantasma do pai. O pai castrador de possíveis prazeres, pedófilo, tirano incestuoso que violentava as filhas. Ela também protagoniza um fellatio explícito num cavaleiro mascarado, que sugere um ser mítico, um Exu do candomblé.

O grotesco faz rir. Talvez faça pensar.

"Estou em sintonia com a personagem. Quero me doar, mas não só o meu corpo, ao teatro", Maria Alice Vergueiro

O elenco se entrega com paixão aos seus papeis. Com a peça, inclusive, Luciano Chirolli conquistou o Prêmio Shell 2011 de melhor ator.

Não é uma experiência fácil. O menu oferecido ao público não é muito digestivo: ritual de antropofagia, incesto, zoofilia, hipocrisia.

Temas da velhice, perdas, desamparo e solidão poderiam criar um drama denso. Mas não é nada disse que faz Jodorowsky. Ele usa a pilhéria e o grotesco para criar sua fábula. É verdade que no final há um olhar de compaixão, até generoso, sobre essas figuras.

Na encenação, a inevitável falência do corpo humano não recebe uma visão estreita. Tudo é mais complexo. E Maria Alice Vergueiro incorpora o mal de Parkinson que sofre como vigor da personagem.

Jodorowsky é filho de judeus russos. Ele conta em A Jornada Espiritual de Alejandro Jodorowsky que foi concebido com ódio. O pai comerciante teria sido traído pela mãe Sara Felicidade. O pai Jaime espancou e estuprou a mulher Sara e daí nasceu Alejandro.

Ele estudou na França e mudou-se de vez para Paris aos 26 anos. Foi orientado por um budista, viajou com o LSD e hoje confia mais no tarô. Além de dramaturgo e cineasta se autointitula psicomago. Enfim, tem uma sensibilidade esotérica. Fundou, com Roland Topor e Fernando Arrabal, o Moviment Panique, em Paris, no ano de 1962, grupo multimídia, que homenageava o deus grego Pan.

Sua obra é transgressora e mescla símbolos místicos com imagens surreais. Sua obra cinematográfica foi lançado em DVD, pela Tartan Vídeo de Londres – uma coleção de seis discos com os três primeiros filmes de Jodorowsky: Fando e Lis (1968(O Topo, 1970) e The Holy Mountain (A Montanha Sagrada, 1973). Os filmes estão repletos de banhos de sangue e são povoados por personagens mutilados.

Luciano Chirolli, Maria Alice Vergueiro e Danilo Grangheia

Terror e humor é mais que uma rima na arte de Jodorowsky.

Assim também é em As três velhas. Pelo menos as duas gêmeas carregam traumas instigados por fantasmas da infância.
O texto da peça é de 2003. Maria Alice Vergueiro disse que ele só recebeu uma montagem, na Bélgica, com marionetes.

É lógico que lembramos de As Criadas, de Genet, principalmente nos delírios quanto aos papeis na sociedade.

As marquesas decrépitas ganham mais comicidades por serem interpretadas por dois homens travestidos (Maria Alice, inclusive, não queria estar em cena; queria só dirigir. Procurou um terceiro homem para fazer a centenária, mas não conseguiu e entrou no elenco). A troca de ofensas, as ironias, as cortadas , insultos e provocações provocam risos da plateia. Assim foi nas duas sessões apresentadas no Teatro de Santa Isabel, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. A plateia flertou com a transgressão.

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Teatro de remissão

Texto de autor chileno é inédito. Foto: Fábio Furtado

Encontrei Luciano Chirolli e Maria Alice Vergueiro na manhã de ontem, no saguão do hotel em que eles (e todos os artistas que vem ao Recife participar do Janeiro de Grandes Espetáculos) estão hospedados, no Pina. Batom vermelho, óculos escuros, cadeira de rodas. Maria Alice disse que me acompanhava tomando café – sem açúcar; Luciano pediu um suco de melancia – bem gelado. (Já comecei a conversa feliz, quando Luciano disse que acompanhava o Satisfeita, Yolanda? e inclusive já tinha lido o blog para Maria Alice; sim, às vezes a gente perde a noção de que as pessoas estão lendo o que escrevemos nesse espaço virtual! 😉

Passamos quase uma hora conversando sobre As três velhas, sobre teatro e amor – redundância? Lá pelas tantas: “Conhecemos a plenitude do teatro, que é superior a do amor”, disse Chirolli; “Para mim, é a mesma coisa”, arremata Maria Alice. Os dois trabalharam juntos pela primeira vez na década de 1990; fizeram, por exemplo, O amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim, de Federico Garcia Lorca. “Foi um sucesso, fizemos turnê pela Europa, mais de dez festivais”. O carinho entre os dois transparece.

As três velhas estreou em Agosto de 210 e levou os prêmios Shell 2010 de teatro (melhor ator com Luciano Chirolli) e Cooperativa Paulista de Teatro 2010 (CPTA) de melhor elenco. O texto é inédito: foi escrito pelo chileno Alejandro Jodorowsky em 2003. “Pelo que nos disseram, foi a pedido da ex-mulher do autor, uma atriz mexicana, mas que não chegou a montá-lo”, conta Chirolli. Os atores avisam que a peça é uma fábula e que, por isso, vários recursos teatrais podem ser utilizados. “Nós saímos do realismo, do linear, a voz pode ser diferente, como quando você vai contar uma história a uma criança, ou alguém pode cair no alçapão de repente”, complementa o ator. Apesar do lúdico, adianta Maria Alice, há também muito horror. Até por conta da fome.

Maria Alice Vergueiro interpreta uma centenária. Foto: Fábio Furtado

Sim, porque essas velhas vivem na ilusão de um tempo em que a fartura abundava; mas agora não têm nem o que comer; caçam ratos em casa e olham umas para outras como se estivessem prestes a se atacar. A peça começa com um baile, em que só uma pode ir, porque só há um vestido, uma dentadura, uma peruca. “Estou tendo uma compaixão muito grande por essas mulheres, violentadas, esquecidas, por uma sociedade patriarcal. E eu que, vou confessar, era um pouco misógino, machista”, diz Luciano baixinho em tom confessional. “Se o autor dá uma solução até para essas mulheres, porque ele dá, você sai com a impressão de que há uma solução para você também”, complementa. “Não é uma questão de salvação, porque essa é uma palavra muito cristã, mas é remissão”, conta Maria Alice, que é também a diretora do espetáculo. Apesar disso, não espere nenhum espetáculo de autoajuda: “o autor tira sarro”. Aliás, não espere nada. É o que pede Maria Alice. “Dê uma tapa na pantera e vá ver o espetáculo, tranquilo, tranquilo”.

Ficha Técnica:

Realização e Produção: Luciano Chirolli Produções Artísticas
Texto: Alejandro Jodorowsky
Idealização: Teatro Pândega
Direção: Maria Alice Vergueiro
Elenco: Maria Alice Vergueiro, Luciano Chirolli, Danilo Grangheia e Lui Seixas
Assistência de Direção: Carolina Splendore
Tradução: Fábio Furtado
Direção de Arte: Simone Mina e Carol Bertier
Desenho de Luz: Alessandra Domingues
Operação de Luz: Carolina Splendore
Trilha Sonora Original: Otavio Ortega
Operação de Som: Monique Salustiano
Design Gráfico: Natália Zapella
Fotógrafo: Fábio Furtado
Produção Executiva: Elisete Jeremias
Direção de Palco: Tiago Miranda

No vídeo, o elenco ainda contava com Pascoal da Conceição, que foi substituído quando foi fazer a minissérie O astro:

As três velhas
Quando: hoje e amanhã, às 20h
Onde: Teatro de Santa Isabel
Quanto: R$ 10 (preço único promocional)
Indicação: 18 anos

Aviso!Os ingressos para o Janeiro de Grandes Espetáculos, para todos os teatros, podem ser comprados antecipadamente na bilheteria do Teatro de Santa Isabel, das 10h às 16h. No dia do espetáculo, você pode comprar no próprio teatro onde será o espetáculo, duas horas antes.

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