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Viagem ao abismo
Crítica da peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
Festival d’Avignon

Carolina Bianchi encara performances de alto risco. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina confrontando Pippa Bacca (em vídeo), italiana assassinada durante uma performance, e sua ingênua ideia de bondade. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A Noiva e o Boa Noite Cinderela, Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, é possivelmente o espetáculo mais ousado, espantoso, arriscado, no limite do (in)suportável, dessa temporada do Festival de Avignon. Nomes importantes da cena contemporânea mundial movimentam a programação, entre eles Julie Deliquet, Tim Crouch, Philippe Quesne, Chiara Bersani e Marco D’Agostin, Stefan Kaegi, Émilie Rousset, Julien Gosselin, Pauline Bayle, Susanne Kennedy, Milo Rau, Trajal Harrell, Gwenaël Morin, inclusive Tiago Rodrigues, para citar algumas das encenações que vi. Mas nada como a peça sem concessões de Carolina Bianchi & do coletivo Cara de Cavalo, que leva o público ao limite.

Carolina Bianchi apareceu nesse cenário como um tsunami a refletir sobre um dos crimes mais hediondos, o estupro, muitas vezes seguido do feminicídio. O espetáculo da encenadora, dramaturga e atriz brasileira, que atualmente mora em Amsterdã, estreou na programação principal de Avignon, com sessões de 6 a 10 de julho. Com esse trabalho, a artista e o coletivo expandem vertiginosamente os limites da sua arte e do seu teatro.

Blackyva em A noiva e o Boa Noite Cinderela. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Ob skene. Os dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 20 de julho, atestam que o país registrou o maior número de casos de estupros da história em 2022: 205 ocorrências do crime por dia. Há que se considerar ainda a subnotificação, já que o levantamento considera casos em que as autoridades policiais foram informadas e muitas vítimas se calam, por medo, vergonha, porque não entendem a dimensão da violência que sofreram, e por muitos outros motivos.

Quase sempre os corpos das mulheres são encarados pelo capitalismo como mercadorias. Sabemos que o sistema do patriarcado está calcado na dominação e na violência contra as mulheres. As arbitrariedades para a manutenção do poder masculino e pela vigilância da sexualidade são feitas em muitas camadas, do controle do imaginário à ofensiva física. Todas, covardias. Algumas dissimuladas, outras ostensivas.

Então é genial quando Bianchi revira na cena essa questão que a ordem falocêntrica insiste em abafar como sendo apenas da esfera privada, particular, de exceção, quando na realidade se trata de um problema escandalosamente público.

E esse capítulo primeiro do tríptico Cadela Força atravessa camadas de temporalidades na perspectiva de instalar linguagens que vasculhem as possibilidades da arte entre o real e o encenado, sem escamotear o fantasmagórico e o misterioso.

No cenário dessa primeira parte, a da conferência, vemos uma mesa, cadeira, microfone, copos, garrafa d’água, alguma bebida alcoólica, uma caixa de remédios. Por baixo na mesa, um pequeno monte de areia preta sugere uma cova rasa. Por trás, uma parede falsa, que recebe a projeção dos vídeos.

Nesse ato, a artista pergunta quem conhece alguma mulher que lhe tenha segredado ter sido vítima de agressão sexual, o que foi dito e de que forma. Enfim, que lembranças ficaram. A atriz foi vítima de um estupro há dez anos. Na época, se calou entre suas memórias borradas, mas esses resíduos estão lá.

Ao levar ao palco o sofrimento encarnado – inscrito no corpo de Carolina e de outras mulheres artistas -, a narrativa explode para se instalar no bailado do elenco. O espetáculo reivindica uma humanidade saqueada. Ao ingerir 10 mg de “boa noite Cinderela”, Bianchi investe na “ressurreição de uma memória pessoal soterrada pela sua violência”, como registra o programa da peça.

Mas com esse gesto repetido a cada sessão, a artista não busca remissão (essa palavra tão católica) para os atos de violência sexual. Simplesmente porque não há como resolver o trauma, em toda sua complexidade, nem dentro, nem fora da peça. 

Seguindo o fluxo, o “Fuck Catharsis”, que está estampado na placa do carro na cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela, não é somente uma frase de efeito, mas uma lógica e uma chave para percorrer essa performance de alto risco.

Os recursos para articular esse enfrentamento no palco são criativos, com as tensões e atritos da construção de uma poética autoral. O material real, dela e de outras artistas convocadas, são processados como procedimentos teatrais e performativos que Bianchi utiliza, subverte, retorce, cria sua própria estética, utiliza em composição de seu teatro radical.

Boa noite – Trilogia Cadela Forca – Capitulo I – Foto: Christophe Raynaud/Divulgação

Arte e trauma. “O que acontece com as mulheres que sobrevivem ao estupro?”. Casos de agressões e feminicídios contemporâneos e que ocupam a história da arte são expostos. Vestida de branco, Carolina Bianchi lê trechos do Inferno, primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri e cita o romance 2666, de Roberto Bolaño. Na sequência são projetadas pinturas de Botticelli, inspiradas nos contos do Decameron, de Giovanni Boccaccio. É A história de Nastagio degli Onesti, em que uma jovem se vê coagida a casar com esse homem que não ama para evitar ter o mesmo destino da mulher perseguida e morta, cujo coração é lançado aos cães pelo cavaleiro rejeitado, numa ação repetida todos os dias.

A ficção não é mais horripilante do que a realidade. A artista recorda que, no Brasil, o goleiro Bruno Fernandes foi condenado pelo homicídio da ex-namorada e mãe de seu filho, que ela teve o corpo esquartejado e atirado aos cachorros do futebolista.

Na sua explanação, Carolina diz não ser a protagonista desse espetáculo, mas sim outras mulheres artistas que foram vítimas de violência. E resgata a performance da artista italiana Pippa Bacca, A Noiva do título, assassinada em 2008, perto de Istambul. Intrigada com as escolhas, trajetória e pensamento de Bacca, a brasileira revela admiração e desprezo e fala de semelhanças e diferenças entre as duas. No seu movimento de atração-repulsão por Pippa, Carolina investe num karaokê feroz em italiano.

A artista explica ao público o que significa “Boa noite Cinderela”, nome conhecido no Brasil da substância utilizada pelos canalhas/agressores sexuais que drogam e estupram suas vítimas em estado alterado de consciência.

Carolina Bianchi avisa ao público que vai tomar a substância. E, enquanto espera a droga “bater”, ela discorre sobre o assunto. Quando o treco fizer efeito, ela já confusa irá se deitar na mesa, e o coletivo Cara de Cavalo assumirá a continuação do espetáculo. Se o treco não “bater”, ela avisa que irá ler as 500 páginas de sua dissertação de mestrado. Mas a droga funciona.

A substância leva em torno de meia hora para fazer efeito. Enquanto isso, a atriz volta a Pippa Bacca, que se chamava Giuseppina Pasqualino di Marineo, e foi morta aos 33 anos. Ela viajava apenas de carona, com a amiga Sylvia Moro, no projeto “Noivas em viagem”, com o intuito de promover a paz para vários povos e nações. Mas elas se desentenderam e Bacca seguiu seu caminho até ser estuprada e morta na Turquia. Ela tinha uma fé inabalável no humano e cruzou territórios de guerra, marcadamente vulneráveis para as mulheres. Carolina também rememora a atuação de Tania Bruguera na Bienal de Arte de Veneza e evoca as Santas Mártires da Igreja Católica. 

Assisti à peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela duas vezes na curta temporada em Avignon. Na estreia e no segundo dia. A primeira sessão tinha uma predominância feminina na plateia. E uma pulsação de preocupação, identificação, manifestada na emoção ou algum mal-estar de alguma espectadora. A cena é forte, numa experiência compartilhada ao vivo e dessa energia acontecem coisas.

Na segunda sessão, havia uma leve supremacia masculina na plateia. Algo mudava, mesmo que eu não consiga precisar o quê, mas havia uma curiosidade, um quê de São Tomé, que levou um homem de meia idade a chegar perto da mesa com Carolina já desacordada para verificar os materiais expostos e tomar um pouco de água. Três ou quatro babacas ensaiaram aplaudir a atuação do cretino, que em seguida voltou ao seu lugar. Momento tenso fora do script.

Carolina Bianchi e o Coletivo Cara de Cavalo

Quando Bianchi fica inconsciente, o Coletivo Cara de Cavalo assume. É uma guinada radical. A parede falsa é desmontada e o amplo palco se revela. Os oito artistas estendem uma lona preta no chão. Um carro é descoberto. Com danças individuais e coletivas, os atores reorganizam o espaço, distribuem as mortalhas – com representações de corpos mortos – com um cadáver, um esqueleto, terra e flores, pó branco, e o colchão onde Carolina é deitada, em que passa a maior parte do tempo.

Domina uma atmosfera trash. Orgias simuladas em jogos de dois, três, quatro, em dinâmicas constantes. Várias pequenas cenas ocorrem ao mesmo tempo. Coreografias de danças, música alta, algumas vezes distorcida. Encontros que deixam dúvidas se são consensuais. O carro anda. O automóvel preto é lugar de encontros, é lugar de opressão.

Desacordada, Carolina já não fala, mas suas palavras, ou as frases que tomou emprestadas antes, estão estampadas nas telas. “Como eles podem dizer que sobreviver é vingança?” O capítulo dedicado às mulheres mortas de Ciudad Juarez, no México, do romance 2666, de Bolaño, também é utilizado como referência.

Será o sonho, ou pesadelo da artista desacordada, aqueles encontros fortuitos, regados a música alta, bebidas e outros entorpecentes, desejos e imposição de desejo? Na sequência das cenas, Carolina será deslocada para o bagageiro e em seguida para o capô.

Já no capô do carro com a placa “Fuck Catharsis”, Carolina Bianchi ainda em estado de semiconsciência passa por um exame vaginal filmado, feito pelas mulheres do elenco. Os movimentos internos são transmitidos ao vivo numa tela grande. Enquanto essa cena ocorre, ouvimos as palavras gravadas de Bianchi, que exaltam a amizade, sobretudo a amizade feminina, como uma grande proteção na vida.

Na última cena, a atriz está deitada em um colchão cercado de flores. A atriz vai acordar, atordoada. Numa placa atrás dela está escrito “SHE GOT LOVE”. Um dos atores do coletivo oferece um energético.

Depois dos aplausos, o público sai profundamente perturbado. Alguma zona pouco acessível foi acionada.

Fuck Catharsis está estampado na placa do carro. Foto: 

Artista fora do comum, Carolina obteve em Avignon uma visibilidade inesperada por ela e sua equipe de produção. Apresentações já se seguiram: Bélgica, Alemanha, Espanha e Suíça. O mesmo impacto. Além dos convites, os holofotes sobre o seu trabalho ganharam os principais jornais do mundo e, com isso, muitos outros horizontes de espaços, de público e de discussão. Mas ainda não há previsão de apresentações no Brasil. 

No artigo La vanguardia de las mujeres, assinado pelo poeta, crítico literário e teatral Andreu Gomila no principal jornal da Catalunha, ele avalia a força de um teatro conduzido por mulheres. O crítico cita as consagradas, a britânica Katie Mitchell e a espanhola Angélica Liddell, e destaca as novas correntes cênicas protagonizadas pelas mulheres, como a alemã Susanne Kennedy, a belga Sarah Vanhee, a brasileira Carolina Bianchi e a coreógrafa japonesa Midori Kurata. Sobre Bianchi, ele pontua: “A nova artista que mais se fala neste momento na Europa é a brasileira Carolina Bianchi, cujo primeiro capítulo da sua trilogia Cadela força : La núvia i el bona nit Ventafocs … que diz o que nunca foi dito sobre a violência contra a mulher”.

Novos rumos. A primeira crítica que saiu sobre o trabalho depois da estreia em Avignon, no Le Monde, situou: “Basta dizer que a atuação de Carolina Bianchi vai entrar para a história do Festival de Avignon e deixar uma impressão duradoura no público”.

O Satisfeita, Yolanda? conversou com Carolina Bianchi sobre a peça, a construção da sua linguagem, e a repercussão do espetáculo. Leia aqui!

Ficha técnica:

Com Larissa Ballarotti, Carolina Bianchi, Blackyva, José Artur Campos, Joana Ferraz, Fernanda Libman, Chico Lima, Rafael Limongelli e Marina Matheus
Texto, design, direção, dramaturgia: Carolina Bianchi
Tradução para legendas: Larissa Ballarotti, Luisa Dalgalarrondo, Joana Ferraz , Marina Matheus (Inglês), Thomas Resendes (Francês)
Dramaturgia e pesquisa: Carolina Mendonça  
Direção técnica, música originale som: Miguel Caldas 
Iluminação: Jo Rios  
Cenografia: Luisa Callegari 
Vídeo: Montserrat Fonseca Llach  
Figurinos: Carolina Bianchi, Luisa Callegari e Tomás Decina
Colaboração artística: Tomás Decina
Treinamento de corpo e voz: Pat Fudyda, Yantó
Construção de automóveis: Mathieu Audejean, Philippe Bercot, Miguel Caldas, Luisa Callegari, Pierre Dumas, Lionel Petit, Xavier Rhame, Jo Rios – Oficina de construção do Festival de Avignon Diálogo sobre teoria e drama: Silvia Bottiroli 
Colaboração artística: Editar Kaldor (DAS Teatro) 
Vídeo karaokê: Thany Sanches 
Assistente de produção e diretora de palco: AnaCris Medina 
Direção de produção e administração da turnê: Carla Estefan 
Distribuição internacional: Metro Gestão Cultural (Brasil) 

Produção

Produção: Metro Gestão Cultural (Brasil), Carolina Bianchi y Cara de Cavalo
Coprodução: Festival d’Avignon, KVS Bruxelas, Maillon Théâtre de Strasbourg European Scene, Frascati Producties (Amsterdam)  
Com o apoio da Fondation Ammodo, DAS Theatre Master Program, 3 Package Deal do AFK – Amsterdams Fonds voor de Kunst, NDSM, Over het IJ Festival, Theatre der Welt, Kaaitheater (Bruxelas) e de l’Onda – National Office for Artistic Diffusion.
Representações em parceria com a France Médias Monde 
Residences DAS Theatre (Amsterdam), Festival 21 Voltz/Central Elétrica (Porto), Pride Festival (Belgrado), Festival Proximamente/KVS (Bruxelas), Espaço Desterro (Rio de Janeiro), Greta Galpão (São Paulo), Frascati (Amsterdam), A FabricA do Festival d’Avignon 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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A tramoia de Iago
Crítica do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza,
visto no Théâtre Odéon, em Paris

Iago (Nicolas Bouchaud) conspira contra Othello (Adama Diop) e Desdêmona (Emilie Lehuraux). Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Montagem de Jean-François Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez

Desde o início do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza – tragédia escrita pelo dramaturgo William Shakespeare provavelmente em 1603 – ficamos sabendo que o soldado Iago alimenta um ódio mortal por Othello, pois inveja seus feitos heroicos e porque seu comandante promoveu Cássio para o posto de tenente; nas palavras de Iago, “um teórico”, que nunca liderou um batalhão numa guerra.

Iago faz de tudo para destruir seu dirigente. Junto com Roderigo envenena o senador Brabantio, pai de Desdêmona, ao informar que ela fugiu com Othello. Conspira contra Othello e Cássio e utiliza muitos truques, artimanhas, conversas cruzadas, insinuações e um lenço perdido para persuadir Othello de que Desdêmona e Cassio são amantes.

É uma teia intrigante. Como Iago consegue empurrar Othello – o grande estrategista – para o abismo do ciúme. Sutis manipulações indicam caminhos, pois Iago é especialmente hábil em detectar e explorar as fraquezas humanas.

A versão do encenador Jean-François Sivadier para Othello – que passou pelo Théâtre Odéon, em Paris, antes de prosseguir em turnê europeia – explora as questões nevrálgicas da peça, mas com algumas lentes do século 21 e muitas das contradições acumuladas. Entre elas o feminicídio que já foi chamado de “crime passional”, e o racismo que exala dessa (daquela, da nossa) sociedade. Veneza enaltece os feitos do protagonista, mas o despreza – escancaradamente ou veladamente – como pleno cidadão.

É a primeira peça que assisto desse realizador. Então, para situar, Sivadier é um ator, dramaturgo e diretor de teatro e ópera, de 58 anos, que tem no currículo releituras de alguns clássicos. Em 2007 encenou Rei Lear no Festival de Avignon. Em 2022, recebeu o Grande Prêmio do Teatro da Académie Française pelo conjunto da sua obra.

A tradução francesa de Jean-Michel Déprats acentua as ambiguidades e os contrastes muito valorizados na encenação, que imprime um ritmo alucinante, que oscila da tragédia ao pop, com improvisações cômicas, escolhas sonoras setentista, que inclui Dalida, Freddie Mercury, John Lennon.

Cassio (Stephan Butel ), Othello e Iago. Foto: Jean Louis Fernandez

Sivadier escala um ator negro para o papel de Othello, como deve ser. Mas nem sempre foi assim. No passado não tão remoto, em muitas montagens, Othello era interpretado por um ator branco, algumas vezes com o rosto pintado de preto, na tradição racista do blackface. No artigo Othello joué par un Blanc : le théâtre français est-il raciste ? , de 16 octobre de 2015, a articulista Françoise Alexander questiona no jornal Le Monde a escolha do Philippe Torreton, um ator branco, para o papel principal de Othello na encenação de Luc Bondy.

A discussão rendeu outros artigos, como o da  atriz, cantora e dramaturga Yasmine Modestine, Pourquoi la distribution d’Othello par Luc Bondy est entièrement blanche?  . Mas a encenação não estreou, pois o renomado diretor, que já estava doente à época, morreu em novembro daquele ano.

Desdêmona (Emilie Lehuraux) e Othello (Adama Diop) . Foto: Jean Louis Fernandez

Quando entramos no teatro, Othello, interpretado pelo franco-senegalês Adama Diop, troca algumas palavras em Wolof com Desdêmona (Émilie Lehuraux). Ficamos sabendo, por exemplo que amor se diz mbëggeel. Nesse pequeno jogo amoroso do prólogo, Othello pede a mão de Desdêmona na língua falada no Senegal.

Na primeira parte da peça, Adama Diop, com dreadlocks, compõe um Othello solar, orgulhoso, leal, apaixonado, confiante, que aposta nos valores elevados, consciente do seu gênio militar. Mas esse homem que se fez a si mesmo não esquece das suas origens, de que foi arrancado de sua terra para ser escravizado. Seu talento guerreiro o libertou e engrandeceu. Mas enquanto estrangeiro da Veneza, ele reconhece o racismo dessa gente.

Em seu Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi reflete sobre a condição de Othello: “Como veneziano, ele deve chefiar a frota; como mouro, não tem permissão para pedir em casamento nenhuma veneziana”.

Se o texto de Shakespeare vibra em alto grau na denúncia contra o racismo. Jean-François Sivadier reforça essa perspectiva e dedicou o papel do Doge de Veneza (principal magistrado, que preside o senado) a uma atriz negra.

Othello ambicionava vencer o preconceito, mas encontrou Iago no meio do caminho para tirá-lo do eixo. Em Shakespeare: a invenção do humano, Harold Bloom analisa que, “entre todos os vilões da literatura, ele tem a honra nefasta de ocupar uma posição inatingível […] Nem mesmo o diabo – em Milton, Marlowe, Goethe, Dostoievsky, Melville – pode competir com Iago”.

Iago é defendido com brilhantismo por Nicolas Bouchaud, ator que já trabalhou em várias montagens de Sivadier. O artista explora as nuances desse personagem manipulador invejoso e dá o seu show na cena, canta clássicos do rock , cospe vinho tinto e espaguete, invoca as caretas do Coringa dos filmes de Hollywood e explode qualquer barreira de gênero interpretativo.

Quem não te conhece, que te compre!!!! O espectador conhece a verdadeira face de Iago e seus passos e maquinações, compartilhados nos solilóquios. Mas todas as outras figuras compram a face angelical, leal e humana que sua máscara diabólica esconde. Sempre atuando, disfarçado de amigo fiel, ele ouve de suas vítimas – Othello, Desdêmona, Cássio – “Honesto Iago”.

Atriz Émilie Lehuraux no papel de Desdêmona. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Jisca Kalvanda como Emilie, a esposa desprezada de Iago. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Algumas escolhas artísticas e de tom dão mais estatura às personagens femininas. Pequenas adições de pulsações contemporâneas ecoam na peça as lutas feministas e antirracistas destes tempos. A encenação adota uma postura mais aguerrida e menos de vitimização das figuras da mulher.

Émilie Lehuraux, junta frescor juvenil, magnanimidade e determinação para legitimar sua Desdêmona, seja em cena mais amorosas ou no enfrentamento a seu pai e à sociedade racista, no comitê dos senadores.

Ela canta Undress me conhecida na voz de Juliette Gréco, no centro do palco, descalça sobre um grande lençol, mortalha que outros atores vão desdobrar. E manifesta sua vivacidade para se defender do marido ensandecido de ciúme, que a acusa violentamente. A mesma atriz também assume com desenvoltura o papel de Bianca.

Emilie (Jisca Kalvanda), a esposa desprezada de Iago, funcionária de Desdêmona, fica com a incumbência de delatar os culpados e desmascarar suas mentiras. Na cena final, ela diz que a verdade quer prevalecer e ela não deve se calar. E faz um discurso contundente, que parece atravessar os tempos.

Sim, a essência da encenação está nos atores, o diretor investe no jogo dos intérpretes. Stephan Butel faz um Cássio que expõe as fragilidades de um militar. Na cena da bebedeira arquitetada por Iago, ao som de We Will Rock You, do grupo Queen, Butel exibe o lado mais ingênuo do seu tenente.

De silhueta longa e vocação camaleônica, Cyril Bothorel assume vários papéis, incluindo o de pai intratável de Desdêmona, que anda furiosamente pelo palco de pijamas despejando logorreia racista. Gulliver Hecq, como Roderigo também apaixonado por Desdêmona e manipulado por Iago, expõe a estupidez da personagem.

Os flertes de Jean-François Sivadier com a cultura pop ressaltam as pontes da época de Shakespeare com o mundo contemporâneo.

Cena da bebedeira de Cássio. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

São interessantes os recursos materiais que o Odéon–Théâtre de l’Europe dispõe para fazer a arte funcionar. Tenho certeza de que o diretor pernambucano Quiercles Santana ficaria bem-motivado em criar nesse espaço. Para se ter uma ideia. A cenografia do espetáculo é composta por molduras rotativas de madeira com grandes lonas de plástico transparente. Pois bem, na cena em que Othello está transtornado as molduras giram e com os efeitos de luz e som, por alguns instantes somos sugados para mente desestabilizada de Othello. Nesse momento, o mundo treme, a vida se comprime numa grande vertigem.  

Iago quer rebaixar Othello à vulgaridade e provar que os valores como a honestidade, o amor e a honra valem muito pouco no final das contas. Nesse sentido, a encenação põe em movimento duas visões de mundo antagônicas. Se uma é calcada na dignidade, a outra distorce os sentidos pela corrupção.

O confiante Othello muda de discurso e de comportamento no decorrer do espetáculo. No início da peça, o protagonista rebate com brio as acusações de Brabâncio e fala de maneira equilibrada para provar o seu amor frente ao grupo de senadores. Mas, no final, ao baixar ao nível de seu algoz, Iago, utiliza metáforas desprezíveis nas palavras que destina a Desdêmona.

Quando Othello cai ao nível de seu falso amigo, ele se assemelha a Iago. Otelo abdica de ser Otelo. E essa operação em cena é linguagem explosiva.

O diretor Jean-François Sivadier arisca borrar os personagens. Após o intervalo nesta montagem com os cinco atos, por breves minutos, os dois atores – Nicolas Bouchaud e Adama Diop, de frente para o público, um ao lado do outro, repetem as mesmas falas e trocam de papeis. Essa jogada põe em andamento séculos de leituras interpretativas dos dois personagens e reforça que isso é teatro, frenético teatro, num jogo magistral de atores.

Máscara branca de Othello na montagem de Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

E para as cenas finais, do assassinato, do suicídio, da queda no abismo,  Othello aparece com uma máscara branca. Adama Diop imita gestos e caretas caricaturando a postura do selvagem. A cena tensiona as questões contemporâneas e complexifica a máscara branca. A mão do crime é preta, mas o braço da manipulação é branco.

E não nos enganemos. Ao desnudar o processo de humilhação e controle social Shakespeare nos lembra que nos assemelhamos aos seus personagens em abjeção.

Sim. É difícil imaginar um mundo sem Shakespeare (It is hard to imagine a world without Shakespeare), como registra o diretor do The Folger Shakespeare Library Michael Witmore, em Othello, o Mouro de Veneza, na edição que leva em conta o conhecimento que se tem da obra do dramaturgo no século 21. (Aqui o link da peça em inglês para baixar gratuitamente).  O bardo inglês prossegue expandindo nossas consciências.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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É urgente a amazonização dos mundos
Crítica do espetáculo Altamira 2042

Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Foto: Nereu Jr / Divulgação

Ouvimos a voz do rio ou de quem tem intimidade com suas bordas. Se o rio está ferido, as vozes protestam para que o mundo entenda a situação. A Floresta Amazônica está em cólera. Mas antes da explosão furiosa somos convidados a escutar suas nuances na perspectiva de vibrar com o corpo todo no tempo espiralado da instalação imersiva Altamira 2042, da artista performática e pesquisadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha.

Nas palavras da artista, essa peça projeta uma guerra entre dois mundos: um mundo que insiste em práticas coloniais de desenvolvimento e progresso para poucos, em detrimento de todas as outras existências.

A performance tensiona os efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior barragem fluvial do mundo, que desviou o curso do rio Xingu, devastou flora e fauna e abalou a vida de milhares de pessoas, forçadas a se deslocar para longe do rio.

Uma paisagem sonora, de articulações humanas e não humanas, carregada do balanço das águas e das árvores, expressões dos animais, cantos de pássaros e insetos, murmúrio de ventos e da chuva, nos transporta para a Natureza.

Essa experiência sensorial, que não é de apaziguamento, é seguida por ruídos mais duros e pesados de motosserras e outros equipamentos de construção / destruição. O maquinário de multinacionais poderosas, grandes empresários e exploradores de recursos e pessoas do município de Altamira, no Pará, são projetados em seus efeitos devastadores contra populações marginalizadas.

Os depoimentos e sons ambientes engenhosamente entrelaçados criam camadas dessa dramaturgia, que valoriza o pensamento, as expressões de fala e texturas de habitantes ribeirinhos e indígenas, ambientalistas, artistas, etc, em vídeos projetados ou áudios. Os fluxos e refluxos do rio são acionados de pen drives e caixas de som que piscam suas luzes coloridas (muito utilizadas nas festas de aparelhagem da região paraense).

Foto Nereu Jr

Rio ou Rua?, pergunta a artista a algumas pessoas do público, antes do espetáculo começar. Essas cúmplices ocasionais são convocadas a lidar com caixas de som ou empunhar o cinzel em algum momento.

Cobras de neon no chão observam outros movimentos. Dona Herondina, a narradora, empresta narrativas para a composição cibernética. Dona Raimunda Gomes da Silva, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu (que foi despejada com a família pela construtora da barragem), recupera com sua voz mitos amazônicos, como o da mulher-cobra,

A artista assume o espírito do rio, o espírito das águas. Uma mulher-serpente fértil e guerreira nascida de mitos ancestrais. A peça opera uma conjunção entre a sabedoria dos povos tradicionais, o saber orgânico de que trata Nego Bispo, e a tecnologia.

A peça pulsa do desejo das pessoas da região irmanadas com a floresta de que a represa deixe de existir e que o rio volte a correr. 

Foto: Nereu Jr

Altamira 2042 se ergueu como dispositivo que pensa e questiona os mecanismos ecogeopolíticos do real. Um trabalho que diagnostica o Antropoceno e assume, enquanto arte, um posicionamento de subverter esses tempos.

Uma performance sintonizada com o apelo para uma “amazonização” do mundo.

No Manifesto da Amazônia Centro do Mundo, cujo objetivo é salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta, lemos:

Na época da emergência climática, a Amazônia é o centro do mundo. Sem manter a maior floresta tropical do planeta viva, não há como controlar o superaquecimento global. Ao transpirar, a floresta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. A floresta cria rios voadores sobre as nossas cabeças maiores do que o Amazonas. O suor da floresta salva o planeta todos os dias. Mas esta floresta está sendo destruída aceleradamente pelo desenvolvimento predatório e corre o risco de alcançar o ponto de não retorno em alguns anos.

Gabriela Carneiro da Cunha em entrevista diz que a “amazonização dos mundos é uma poderosa máquina de guerra anticapitalista, mas uma guerra no sentido ameríndio do termo, ou seja, uma guerra que promove a vida, ao contrário da ideia ocidental de massacre, que não traz mais do que morte”.

O trabalho faz parte do projeto de pesquisa artística Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vaga-lumes, que visibiliza desastres ecológicos e humanos. A teia de Altamira 2042 foi construída em sete anos de muitas travessias da artista para acolher os testemunhos de gente vinculada ao rio Xingu, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, afetados pela catástrofe movida pela hidrelétrica de Belo Monte.

Cena Expandida

Raimunda é uma pensadora ribeirinha do Xingu, que sente a pulsação do rio, da terra, dos elementos da natureza. Ela sabe que não estamos todos no mesmo barco. E que os que mais destruíram são os menos afetados. Com a autoridade dos sábios, ela fala de transmutação, processos em constantes movimentos, possibilidades.

A cena expandida, como as conversas após o espetáculo com a participação de operadores do saber orgânico, articula a construção de novos regimes de percepção. As apresentações em Paris, realizadas de 15 a 18 de março, no Centre Pompidou, ganharam com a presença de Raimunda uma força inestimável de testemunho que colabora com os desafios artísticos do presente frente à crise do Antropoceno.

Ativismo, pensamento contracolonial, feminismo. A conjugação de arte e da vida potencializa o papel da arte como lugar privilegiado para tencionar posições nos embates políticos.

Ficha técnica:
Altamira 2042
Conceito e direção: Gabriela Carneiro da Cunha
Diálogos artísticos: Cibele Forjaz, Dinah De Oliveira e Sonia Sobral
Assistentes de direção João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Jimmy Wong
Edição de vídeo: João Marcelo Iglesias, Rafael Frazão e Gabriela Carneiro da Cunha
Som: Felipe Storino e Bruno Carneiro
Figurino: Carla Ferraz
Luzes: Cibele Forjaz
Images: Eryk Rocha, João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Cibele Forjaz
Foto: Nereu Jr.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Brutalidade como espelho do real
Crítica do espetáculo Tom na Fazenda

Tom na Fazenda na temporada no Théatre Paris-Vilette. Foto: Reprodução do Facebook

Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6.

Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço. 

Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo).

Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos.

Gustavo Rodrigues e Armando Babaioff: tour de force interpretativo. Foto: Victor Novaes / Divulgação

A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público  francês.

Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia.

Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”.

Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus.

A homofobia é manifestada de forma truculenta na peça. Foto: Victor Novaes / Divulgação

Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de 2022) são alarmantes.

Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra.

Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade.

Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro.

As atuações são um trunfo da montagem. Gustavo Rodrigues (Francis) e Soraya Ravenle (Aghata)… 

Armando Babaioff (Tom) e Camila Nhary (falsa namorada do morto). Foto: Victor Novaes

A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard.

É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais.

O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977).  “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local.

Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.

O não-direito ao luto aparece em meio a um teia de assuntos violentos. Foto: Victor Novaes / Divulgação

De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas.

Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto.

Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas.

Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.

A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens.

Dispositivos utilizados pela encenação permitem dúvidas sobre o que o protagonista fala ou age

A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras.

Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos.

Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro.

Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!”

Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo.

Público francês aplaude com entusiasmo, em temporada com ingressos esgotados. Foto: Reprodução

Tom, boa sorte na sua caminhada.

A agenda da peça:
Paris 9 de março a 5 de abril  – Théâtre Paris-Villette
Recife 15 e 16 de abril – Teatro do Parque
Natal 20 de abril – Teatro Riachuelo
Juiz de Fora 26 e 27 de abril – Teatro Paschoal Carlos Magno
Belo Horizonte 28 a 30 de abril – Cine Theatro Brasil Vallourec
São Paulo 5 de maio a 25 de junho  – Teatro Vivo

Tom na Fazenda (Tom à la ferme)
Texto: Michel Marc Bouchard 
Tradução: Armando Babaioff 
mise en scène: Rodrigo Portella 
Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas 
Figurino costumes: Bruno Perlatto 
Música: Marcello H. 
Coreografia: Toni Rodrigues
Fotos: 
Victor Novaes ou Roberto Peixoto

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Ciência versus religião:
um debate acalorado entre Freud e CS Lewis

Odilon Wagner, Claudio Fontana e Elias Andreato, atores e diretor de A Última Sessão de Freud. Foto: João Caldas Fº / Divulgação

Peça faz temporada no Itaú Cultural. Foto João Caldas Filho

Pelo que se sabe, Sigmund Freud (1856 – 1939) e o irlandês CS Lewis (1898 – 1963) nunca se conheceram. Mas o dramaturgo norte-americano Mark St. Germain deu um jeito desse encontro acontecer. Foi em 3 setembro de 1939, numa Londres prestes a receber os ataques aéreos alemães, dia em que a Inglaterra ingressou na Segunda Guerra Mundial. Os dois homens estavam no limite, sabendo que Hitler poderia bombardear Londres a qualquer minuto. Isso era algo aterrorizante para os dois personagens: o refugiado judeu de 83 anos que havia fugido da perseguição nazista na Áustria e o veterano da Primeira Guerra Mundial, de 40 anos.

Nesse encontro fictício, o pai da Psicanálise e o crítico literário debatem a questão de Deus, no espetáculo A Última Sessão de Freud, em temporada de 3 a 27 de março de quinta-feira a domingo, no Itaú Cultural. A montagem reúne os atores Odilon Wagner e Claudio Fontana, sob direção de Elias Andreato

O autor St. Germain se inspirou no livro Deus em Questão, de Armand M.Nicholi Jr, professor clínico de psiquiatria da Harvard Medical School. Na peça, o debate entre os dois intelectuais se move em torno dos argumentos de razão e crença. De um lado, a filosofia racionalista e ateia de Freud, do outro apologia cristã de Lewis.

O cenário é o consultório onde Freud – crítico implacável da crença religiosa – desenvolvia sua psicanálise e seus estudos. Os dois conversam de forma apaixonada sobre o dilema entre ateísmo e a crença em Deus. Lewis, renomado professor de Oxford, se apresenta como ex-ateu e influente defensor da fé baseada na razão.

A Última Sessão de Freud é um jogo de ideias. Mais além do conflito entre ciência e religião, os dois intelectuais expandem o embate por outros assuntos, como música, Hitler, relações humanas, morte e até a flatulência. Eles fazem piadas, se criticam mutuamente. Lewis recrimina Freud por ser obcecado por sexo; Freud caçoa da reverência de Lewis à autoridade. O diretor Elias Andreato apostou no poder da palavra nessa encenação. O debate promete.

A última sessão de Freud. Foto João Caldas Filho

FICHA TÉCNICA:
Texto: Mark St. Germain
Tradução: Clarisse Abujamra
Direção: Elias Andreato
Assistente de Direção: Raphael Gama
Elenco: Odilon Wagner (Sigmund Freud) e Claudio Fontana (C.S.Lewis)
Cenário e figurino: Fábio Namatame
Assistente de cenografia: Fernando Passetti
Desenho de Luz: Gabriel Paiva e André Prado
Trilha Sonora: Raphael Gama
Arte Gráfica: Rodolfo Juliani
Fotografia: João Caldas
Iluminador: Cauê Gouveia
Sonoplasta: André Omote
Coordenador Geral de Produção: Ronaldo Diaféria
Direção de produção: Claudia Miranda
Assistente de produção: Marcos Rinaldi
Diretor de palco: Tadeu Tosta
Contra-Regra: Vinicius Henrique
Mídias Sociais: Rodrigo Avelar
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Produtores Associados: Diaféria Produções e Itaporã Comunicação

SERVIÇO
A Última Sessão de Freud
Temporada de 3 a 27 de março (sempre de quinta-feira a domingo)
Quinta-feira a sábado às 20h, e domingo às 19h
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 90 minutos
Sala Itaú Cultural (Piso Térreo)
Capacidade: 156 lugares
Entrada gratuita
Reservas de ingressos pela plataforma Inti – acesso pelo site do Itaú Cultural
www.itaucultural.org.br

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