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Os delatores e o bafo azedo do Estado

Por Sidney Rocha *

No dia 2 de fevereiro, no Teatro Arraial, reestreia uma peça de Bertolt Brecht: Terror e miséria do III Reich – O Delator (1938), na adaptação de José Francisco Filho. No elenco: Germano Haiut e Stella Maris Saldanha. Assisti à peça, antes, com os dois, e irei ver de novo.

O título original é simplesmente Terror e miséria do Terceiro Reich (em alemão Furcht und Elend des Dritten Reiches, ou A vida privada da Raça Superior). A Delação é um dos 24 quadros.

Outra peça em cartaz é a de Arthur Miller Um panorama visto da ponte (A View from the Bridge, no original), de 1955/56. Com direção de Zé Henrique de Paula. E elenco composto por
Rodrigo Lombardi, Sergio Mamberti, Antonio Salvador, Bernardo Bibancos, Gabriel Mello, Gabriella Potye, Patricia Pichamone e William Amaral. No Teatro Riomar.

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Um panorama visto da ponte, com Rodrigo Lombardi e Sergio Mamberti. Foto: Alan Catan / Divulgação

Germano Haiut e Stela Maris Saldanha em O Delator. Foto: Wallace Fontenelle / Divulgação

Germano Haiut e Stela Maris Saldanha em O Delator. Foto: Wallace Fontenelle / Divulgação

Os dois textos têm muitos pontos em comum: um é a declaração de guerra (a meu ver mais melancólica que libertadora) contra o poder. Outro ponto tem a ver com a atmosfera: seja na residência dos Carbone, sob a bruma das docas de Um panorama, ou na sala de estar do casal classe média, sob a chuva lá fora, de O delator, há sempre o bafo azedo do Estado contra o indivíduo impotente. Um só mundo claustrofóbico, de terror. E a sombra sempre nauseabunda de alguém à espreita, um acusador.

Caberia um estudo sobre a figura do dedo-duro no teatro, e no teatro da política, em dias de hoje, com um sistema dividido em procuradoria, defensoria e delatoria:

“Eu não respeito delator, até porque estive presa na ditadura militar e sei o que é. Tentaram me transformar numa delatora. A ditadura fazia isso com as pessoas presas e garanto a vocês que resisti bravamente”, disse a presidente Dilma Rousseff, recentemente, no teatro econômico de Nova Iorque.

O desejo de Brecht e Miller era realmente discutir o tema da delação, nos tempos da Juventude Hitlerista, dos anos 30, na Alemanha, de um; e na época do Macarthismo (o nome vem do senador americano Joseph McCarthy), nos anos 50, nos EUA, de outro, onde inimigos eram perseguidos sem trégua. Tempos bem parecidos com os atuais no Brasil, quando um governo fascista e com ânsias macarthistas monta sua rede de informações, como nos piores serviços de inteligência das ditaduras, criando um asqueroso voluntarismo antidemocrático, com uso maciço de mentiras, tão inspiradas nos métodos de Hitler. “A orientação que dou a toda a garotada do Brasil: vamos filmar o que acontece nas salas de aula e divulgar”, na fala da marionete Bolsonaro.

Na verdade, tanto Brecht quanto Miller sofreram pressões do macarthismo. Para quem não sabe, Arthur Miller foi intimado pela Comissão de Atividades Antiamericanas (HUAC – House Un American Activities Committee) e incentivado a entregar colegas, mas se recusou ao papel de delator. Foi por isso processado por “atividades comunistas”. Ele conta a atmosfera daqueles tempos, na introdução de Collected Plays (The Theatre Essays Of Arthur Miller. Introdução de Robert A. Martin e Steven R. Centola. Ed. Viking Penguin, 1996):

“Foi o fato de que uma campanha política, objetiva, e bem conhecida da extrema Direita ter sido capaz de criar não só o terror, mas uma nova realidade subjetiva, uma verdadeira mística que foi gradualmente assumindo até uma aura de santidade. (…) Era como se o todo o país tivesse nascido outra vez, sem uma memória sequer de alguma decência elementar que, há um ou dois anos antes, ninguém fosse capaz de imaginar que pudesse ser alterada, afastada, esquecida.(…) Eu vi homens passarem por mim sem sequer acenarem mais, os mesmos, entretanto, que eu conhecia bem há anos. (…) O terror nessas pessoas estava sendo conscientemente planejado e maquinado, e mesmo assim tudo o que eles conheciam era terror.”

Caro Arthur Miller, o senhor está falando mais do nosso tempo que do seu.

***

Não sei o quanto a política pode estar ligada ao entretenimento, como temia Walter Benjamim, mas aconselho que você passe no teatro, assista às peças, se divirta e encontre pontos críticos que certamente deixei escapar. Eu irei também, principalmente para reencontrar Germano Haiut, a quem dedico esta crônica-resenha.

* Sidney Rocha é escritor e editor, autor de A Estética da Indiferença (romance, 2018), Guerra de Ninguém (contos, 2016) Fernanflor (romance, 2015), Sofia (romance, 2014), O destino das metáforas (contos, 2011, Prêmio Jabuti), Matriuska, contos 2009, todos publicados pela Iluminuras.

Serviço:

Um panorama visto da ponte
2 e 3 de fevereiro. [sábado e domingo], às 21h.
Teatro Riomar.
Classificação 14 anos.
Duração: 100 minutos aproximadamente.
Direção de Zé Henrique de Paula
Elenco: Rodrigo Lombardi, Sergio Mamberti, Antonio Salvador, Bernardo Bibancos, Gabriel Mello, Gabriella Potye, Patricia Pichamone e William Amaral

Terror e Miséria no Terceiro Reich -O Delator
3 de fevereiro. [domingo], às 18h e 19h30.
Teatro Arraial Ariano Suassuna (R. da Aurora, 457).
Classificação 16 anos.
Duração: 30 minutos aproximadamente.
Direção de José Francisco Filho
Elenco: Germano Haiut e Stella Maris Saldanha

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Ossos articula discurso bruto e libertador *

Elenco de Ossos

Elenco de Ossos: Daniel Barros, Arilson Lopes, Marcondes Lima, André Brasileiro, Ivo Barreto, Robério Lucado

                                                                                                        Sidney Rocha *
                                                                                                        Especial para o Satisfeita, Yolanda?

 

ATO I

Querida Yolanda:

Grosso modo, literatura que se parece com teatro não é literatura.

Dizem que a prosa de Marcelino Freire parece teatro. Lamento dizer: não parece. Não parece porque é literatura. Literatura e teatro têm linguagem distinta. Necessariamente. O discurso cênico tem outra função. Há certa natureza ética, que transcende a natureza estética, de modo que teatro não é diversão pura e simples, não está ali para entreter, mas para dizer certa verdade: a condição precária do homem no universo. Nisso o teatro se aparenta mais à filosofia que à literatura. Mas à filosofia que não se rende ao poder, nem ao exagero das interpretações, violência contra a qual Susana Sontag lutou violentamente naquele ensaio: Contra a interpretação.

A busca dessa verdade: tem sido assim desde a Grécia, quando sequer havia distinção entre arte e técnica. É assim na arte dramática de Brecht, de Camus, ou de Beckett e Ionesco, todos interessados somente em expor o homem em sua condição miserável e absurda perante a vida.

Marcelino Freire adaptou seu romance (Nossos ossos, 2013) para entregar ao coletivo Angu de Teatro um texto vigoroso. Um texto, repito. Logo no começo, à direita da cena, o ator, na pele do autor sob a pele de Heleno de Gusmão – ali numa litania à capella, durante todo o espetáculo – ali na primeira das mil ossaturas, expõe a transconfissão do metaescritor:
“O que eu poderia fazer mais, se já escrevi o romance?”
É verdade, Marcelino, mas verdade-só-literariamente.

O discurso cênico termina mostrando a verdade-verdade: o autor se esgota, brocha, acata porque, no teatro, o coito é só dos atores. Só eles podem. Com ph.

Marcelino descobriu cedo que as palavras em estado-de-literatura são uma coisa. Outra coisa são as palavras em estado-de-teatro. A palavra de fato. A palavra-ato.

Em Ossos, reina sobretudo a linguagem não-literária, mas teatral. A metáfora literária enfim perde para discurso do teatro que busca a linguagem ordinária, para suplantá-la. Ossos era para ser um tipo de “teatro de texto” que faz falta ao teatro contemporâneo no Brasil, e isso já bastaria – embora o textocentrismo seja outro tipo de exagero. Mas no teatro as teorias são uma tolice e se perdem no momento exato em que um ator pise o palco. É o que ocorre nessa adaptação. Os atores de Ossos sabem bem as margens miméticas do que vem a ser a encenaçãoatuação. Mas isso seria outro papo.

Eu dizia, Yolanda: uma coisa é texto. Outra, é fala. E outra coisa é voz. Essa pressupõe corpo e sangue. Porque o teatro, diferente do cinema, da literatura, da pintura, nos dá um corpo, de verdade: o do ator. Essa diferença é a essência da mímese do texto dramático. Ossos é também sobre esse corpo, que se tenta conduzir, enterrar, carregar, livrá-lo de uma alma e dá-lo a outra. Por isso o texto é pouco – e a fala não diz tudo. É a voz do ator que transmite o que não está no texto. É massa viva controlável somente pela técnica, no palco. É a única voz que interessa.

Ah, pobre literatura que não pode com essa força.

André Brasileiro e Daniel Barros numa cena de Ossos. Foto: Divulgação

André Brasileiro e Daniel Barros interpretam o escritor Heleno de Gusmão e o michê. Foto: Divulgação

ATO II

“Não sou dramaturgo”, diz o o autor no personagem central de Ossos, vivido com exatidão por André Brasileiro, quando se abre uma das camadas da adaptação – que são como atos dentro de atos, insight ou intuições de Marcondes Lima na busca de uma dicção ou linguagem ou lugar que realizasse o autor-adaptador, mas que contemplasse sua fala [repito: fala] como criador experiente que é.

A direção é conduzida de modo a todos dividirem a cena, a luz, o figurino, deixando clara a voz já reconhecível do coletivo, mas com o pensamento, fala e ação rigorosos do diretor de Ossos. Uma direção não-natural, porque o teatro é mesmo contra a natureza, e nisso consiste a arte – supor certo domínio, e controle, e direção sobre os atos, e omissões.

Por isso, querida Yolanda, não há personagem mais carne-e-osso do que aquele na pele de um ator, todo feito de intuição, e técnica, e erro. Sobretudo erros, Yolanda, porque não existe maria-concebida-[sem-erro]-sem-pecado, no teatro. Ao somar tudo, Marcondes Lima criou a fantasmagoria necessária para transformar Ossos em discurso bruto e libertador. Ossos é carnavalização, riso e grito. O paraíso do baixo-corporal, do prazer e da dor que se assume. A ridicularia da morte sobre a vida. E da vida sobre si mesma.

Taí a verdade desse teatro angular, coletivo.

 

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Marcondes Lima no papel de Estrela. Foto Divulgação

ATO III

O que realmente importa: André Brasileiro trocou a paixão daquela vez da estreia, naquele 11 junho do ano passado, pela exatidão que vi ontem, no mesmo Teatro Apolo, e compôs um Heleno de Gusmão que se põe em pé, sem pedir favor ou pacto de compreensão à plateia.
Marcondes Lima desaparece e faz surgir algumas vênus singulares: Estrela, Carmen Miranda, Fafá de Belém, todas com cor e coração também exatos.

Arilson Lopes faz o motorista do rabecão. Foto Divulgação

Arilson Lopes faz o motorista do rabecão. Foto Divulgação

O Caronte mais real que já vi, o motorista Lourenço – o personagem trágico por excelência em Ossos: vale mesmo vê-lo saltando de dentro de Arilson Lopes, que faz também o interesseiro Carlos.

A trilha sonora de Juliano Holanda. A trilha sonora de Juliano Holanda. A trilha sonora de Juliano Holanda.

Ceronha Pontes preparou urubus, travestis e michês para o banquete claro-escuro e multicor de cada cena.
Ossos é como a vida. E como a morte: Funciona.
Convenhamos, querida: no teatro, isso não é pouco.

Então ficamos assim, Yolanda: Ossos: texto de Marcelino Freire. Fala de Marcondes Lima. Mas a voz é do Angu de Teatro.
E que beleza.
Não perca.

*  Sidney Rocha  é escritor. Escreveu Matriuska (contos, 2009), Fernanflor (romance, 2015) e Guerra de ninguém (contos, 2016). Com O destino das metáforas venceu o Prêmio Jabuti, em 2012, na categoria contos e crônicas e com o romance Sofia, o Prêmio Osman Lins; todos pela Iluminuras.

Daniel Barros e Robério Lucado interpretam garotos de programa em Ossos. Foto: Ivana Moura

Daniel Barros e Robério Lucado interpretam garotos de programa em Ossos. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Texto: Marcelino Freire
Direção: Marcondes Lima
Direção de arte, cenários e figurinos: Marcondes Lima
Assistência de direção: Ceronha Pontes
Elenco: André Brasileiro, Arilson Lopes, Daniel Barros, Ivo Barreto, Marcondes Lima, Ryan Leivas (Ator stand in) e Robério Lucado
Trilha sonora original – composição, arranjos e produção: Juliano Holanda
Criação de plano de luz: Jathyles Miranda
Operação de Som: Sávio Uchôa
Preparação corporal: Arilson Lopes
Preparação de elenco: Ceronha Pontes, Arilson Lopes
Coreografia: Lilli Rocha e Paulo Henrique Ferreira
Coordenação de produção: Tadeu Gondim
Produção executiva: André Brasileiro, Fausto Paiva, Arquimedes Amaro, Gheuza Sena e Nínive Caldas
Designer gráfico: Dani Borel
Fotos divulgação: Joanna Sultanum
Visagismo: Jades Sales
Assessoria de imprensa: Rabixco Assessoria
Técnico de som Muzak – André Oliveira
Confecção de figurinos: Maria Lima
Confecção de cenário e elementos de cena: Flávio Santos, Jorge Batista de Oliveira.
Operador de som e luz: Fausto Paiva / Tadeu Gondim
Camareira: Irani Galdino

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