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Um Beckett memorável em São Paulo
Crítica de “Esperando Godot”
por Dirce Waltrick do Amarante*

<strong><p id=Esperando Godot, montagem do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Foto Ivana Moura” width=”600″ height=”338″> Esperando Godot, montagem do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Fotos Ivana Moura

Escrita em apenas quatro meses, no ano de 1949, Esperando Godot, a peça mais conhecida do escritor irlandês Samuel Beckett, estreou somente em 1953, no Théâtre de Babylone, em Paris. Desde então, há mais de sessenta anos esperamos Godot, mas parece (ou parecia) que não há “nada a fazer”, como diz uma frase que retorna regularmente à boca das personagens, pois Godot não vem, e a espera é o grande tema da peça. 

Em dois atos, Estragon (Gogo) e Vladimir (Didi) esperam em vão e a eles se juntam Lucky, Pozzo e um menino. Ainda que nada aconteça, Beckett considerava Godot “uma obra muito movimentada, um tipo de western. Essa é a movimentação que se vê na nova adaptação da peça, a terceira do Teat(r)o Oficina, dirigida por Zé Celso, que ritualizou Beckett, devorou, literalmente, Godot e o expeliu em terra brasilis

A peça, que recentemente esteve em cartaz no Sesc Pompeia, mas retorna de 5 de maio a 3 de junho, de quinta a domingo, no Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, inicia com raios e trovões. Mas, por aqui, depois da tempestade não vem a bonança, para me valer de um clichê tão próprio da linguagem de Esperando Godot. O que se vê é a árvore seca do cenário beckettiano e um pedaço de muro ou parede no lugar da pedra do cenário original.  É a cena de uma hecatombe dos dias atuais e poderia aludir a mudanças climáticas, quando, depois de tempestades, o que se vê são inundações e destruição de todas as ordens. A natureza já está destruída, não há mais “nada a fazer”. Na adaptação de Zé Celso as guerras recentes também são lembradas. O mundo não teria mudado muito desde 1949. Por isso, uma das frases de Didi, repetida nessa montagem, segue sendo bastante atual: “Será que dormi, enquanto os outros sofriam? Será que durmo agora? Amanhã, quando pensar que estou acordando, o que direi desta jornada?”. 

Os atores estão à vontade nesse universo que exige uma atuação bastante particular diante dos lugares-comuns que devem proferir e da banalidade das situações. Como diz o crítico canadense Hugh Kenner, “a essência da peça é, para ser breve, uma experiência humana tão banal quanto há”.  O par principal, Didi e Gogo, interpretado por Alexandre Borges e Marcelo Drummond, respectivamente, não se furta a improvisar. Ricardo Bittercourt, no papel de Pozzo/ Bozo (numa alusão ao atual presidente do Brasil), vestido de palhaço e com uma farda do exército carregada de medalhas, é mais enérgico e violento do que os outros dois, fazendo o contraponto à dupla central. Pozzo, tanto na versão original quanto na de Zé Celso, leva um criado/ um escravo amarrado pelo pescoço, o qual está encarregado de levar as bagagens. No Godot brasileiro, Lucky (Afortunado), interpretado por Roderick Himeros, chama-se Felizardo, cuja bagagem inclui uma mochila como a dos motoboys, tão imprescindíveis na nossa sociedade, principalmente na pandemia.     

A maior novidade da peça é a substituição da personagem “menino” por um mensageiro negro, o malandro Zé Pelintra, uma figura de terno e chapéu brancos da umbanda. A interpretação impagável dessa personagem é de Tony Reis. 

“Na cosmogonia do terreiro”, como afirma Sidnei Barreto Nogueira, no libreto da peça, “nós nunca estamos aguardando um Messias, um salvador. Porque nós também não temos alguém para culpar. Quer dizer, a cultura cosmogônica Iorubá que está no terreiro Iorubá, Fon, Èfòn, Bantu, é uma cultura de autorresponsabilidade”, ou melhor, “Existe uma corresponsabilidade e uma responsabilidade coletiva, mas nós não temos nessa cultura uma entidade para culpar por nossos males”.  Não há, portanto, bodes expiatórios nessa cultura, na qual, a nosso ver, não só Esperando Godot precisaria ser reescrita, como o foi agora, mas também Édipo Rei, o pilar do teatro no Ocidente, que também ganharia outros contornos. 

Vale destacar que o mensageiro brasileiro fala inglês, talvez porque a língua de Shakespeare inspire em nós, colonizados, mais confiança para falar de assuntos importantes do que a língua de Machado de Assis.  

Há montagens de Godot para todos os gostos: houve uma em um presídio nos Estados Unidos, com os próprios detentos atuando; outra, bem mais recentemente, na Sarajevo dividida e sitiada; e uma terceira durante o apartheid, em Johanesburgo, na África do Sul, só com negros no elenco. A montagem de Zé Celso engrossa a lista de adaptações memoráveis, e em tempos de comemoração do Centenário da Semana de Arte Moderna, nada como matar Godot para fazê-lo renascer em outra cultura e em outra religião.

<strong><p id=Esperando Godot, montagem do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Fotos Ivana Moura” width=”600″ height=”362″> Vladimir (Didi) e Estragon (Gogo), interpretados por Alexandre Borges e Marcelo Drummond 

<strong><p id=Esperando Godot, montagem do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Foto Ivana Moura” width=”600″ height=”339″> Ricardo Bittercourt (ao fundo à direita), no papel de Pozzo/ Bozo , o palhaço com farda do exército e Roderick Himeros (ao centro), com a mochila como a dos motoboys 

<strong><p id=Esperando Godot, montagem do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Foto Ivana Moura” width=”600″ height=”338″> Em maio, Esperando Godot entra em cartaz no Teatro Oficina, depois de uma temporada no Sesc Pompeia

* Professora do Curso de Artes Cênicas na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de Quando elas esperam, dramaturgia feminista baseada em Esperando Godot.

 

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