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Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Vozes do mangue
Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré,
do Grupo São Gens de Teatro, do Recife

Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré fez curtas temporadas em São Paulo e outros estados e participou de festivais. Foto Vinícius Elizário

Grupo São Gens de Teatro, do Recife. Foto Vinícius Elizário / Divulgação

Marginalidade e marginal, esses conceitos difusos, correm pelas bordas na peça Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré. Concebido nas entranhas de um rio do Recife, o espetáculo entende-se com a lama e dela tira sua sustância. Quando chama para si essa ideia de margem, o grupo São Gens posiciona o perfil sociológico dos integrantes: de quem mora ou viveu na periferia, que nunca teve as mesmas oportunidades dos privilegiados de classe, que sofreu na carne os preconceitos dos que estão na mira da polícia.

Essa experiência é transformada em poética, em atuação cultural viva e pulsante com as marcas desse tempo. Os vínculos estabelecidos entre criação teatral e realidade social são fortes e estão entranhados nos corpos dos atores. De muitas formas eles falam de si.

Ao assistir à peça lembro das concepções do médico e geógrafo, cientista social, político e ativista de combate à fome Josué de Castro (1908 – 1973) – convocado por Chico Science e trupe para dar sustentação ao Manguebeat – que apontava que o Recife é filho dos mangues. Na cidade aterrada, essa origem é muitas vezes abafada, disfarçada, apagada. Autor de uma extensa obra – entre Geopolítica da fome, Fatores de localização da cidade do Recife e Homens e caranguejos – Castro tirou o mangue do mangue, valorizando a paisagem com seu olhar científico e estético e dissecou esse lugar dos “excluídos sociais”. 

Na sua ambição de ser um cidadão integral, o geógrafo Milton Santos (1926 – 2001) escrutinou a existência de uma cidadania brasileira. E analisou a distribuição das pessoas desigualmente nos espaços a partir de atividades econômicas e da herança social; o que determina o acesso (ou não) aos bens e serviços oferecidos pela rede urbana e sistema das cidades.

As interpretações de mundo de Castro e Santos fertilizam essa dramaturgia, erguida a partir da vivência do dramaturgo Anderson Leite (também ator e diretor do espetáculo) na comunidade ribeirinha do Pina, no Recife. Quando a pandemia da Covid-19 fechou tudo, milhares de artistas foram atingidos de imediato, pois foram os primeiros a ficar sem remuneração. Anderson foi um deles. E, naquele momento, sem nenhuma ajuda oficial do Estado, ele voltou a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu, atividade da família.

É nesse estágio da grande ferida da pandemia que nasce o texto e as imagens de encenação. Na medula do assombro daquele presente palpita o fato de que, para muitos trabalhadores precarizados, ficar em casa nunca foi uma opção. O trançado do risco real de ir às ruas para não morrer de fome dessas figuras recua ao passado de histórias brasileiras. E entra como fala na peça, de algo que aconteceu e que não finda. “Mais uma vez tive que me arriscar. E esse vírus me tirou o paladar. Fazer o quê, tive que trabalhar. Pois, mesmo sem sentir gosto a família tem que se alimentar”.

No elenco estão Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Quando a peça começa, os atores estão amontoados numa escada que vira barco e outras coisas. Ao fundo, um painel estampa o barraco, a favela. No chão, conchas indicam rotas, produzem som, reposicionam a memória.  Há resquícios de cheiros de mangue, de maré. É forte, é ancestral.

A iluminação cuida de acelerar a cena, mas em outros momentos retarda. Trabalha feito editor de imagens. Corta, assinala, destaca, faz fantasmagoria, inverte, cria clima, faz drama, faz técnica, manipula nosso olhar.  

A dramaturgia se move em oito partes, entre solos e ações coletivas. Abscessos da sociedade são rasgadas nas temáticas que se entrelaçam entre vida e morte, as vidas que importam e os procedimentos de violência para aniquilar o outro. As classes populares que povoam a cena, elas mesmas nas suas misérias reproduzem sistematicamente o machismo e todo o tipo de preconceito contra o próximo – racismo, misoginia, lgbtqifobia, aporofobia, etarismo, etc. alimentando as chagas e não reconhecimento da opressão.

É interessante perceber que nem o dramaturgo nem o grupo optam por pegar leve com sua classe, com as figuras do seu entorno. Eles escancaram no palco as ambiguidades; alguns hábitos de convivência naquela favela inspirada no real, que pode coincidir com muitas outras práticas de pobres e estigmatizados pelo Brasil.

Sim, os pobres podem introjetar os valores que os oprimem. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” a frase do educador, filósofo, advogado, professor, pesquisador, pedagogo, pensador, escritor Paulo Freire (1921-1997) é conhecida. Ai, Freire! Como é urgente aprender a fazer leituras de mundos, construindo e acolhendo sujeitos com consciência da realidade.

A cidadania se aprende, a liberdade é uma conquista.

Ao expor o processo de dominação reproduzido naquela quebrada recifense, o espetáculo sacode com fúria a lógica que mantém essa estrutura. 

O título da peça aponta quase para um pedido de socorro. Mesmo que lembre procedimentos de lançar mapas de tesouros ou de desejos de falar ao futuro produzidos em romances juvenis, essa garrafa pet se despe de possíveis pompas na formulação imaginária. O material está mais próximo do descartável, mesmo que seja reciclável. E esse fluxo insiste feito uma ladainha.

A força dessas Narrativas se expande no trabalho coletivo. Há uma energia coral. Mesmo assim é possível destacar momentos individuais vigorosos. Um gesto, um jeito de corpo, uma fala, uma agonia, um desespero. Algumas pequenas fragilidades de atuação no trabalho também existem. A dicção de parte do elenco e qualquer traço de melodrama em cenas pontuais são duas delas.

Alfinetar a classe média branca que come ostras em frente ao Acaiaca (prédio à beira-mar em Boa Viagem, no Recife), os versos do poeta performático Miró da Muribeca (1960-2022), pneus, escada, rede de pescar, essas coisas conversam e os próprios atores manipulam os elementos cênicos. Eles citam a bandeira-poema de Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói (1968). Entre baculejos e sussurros, eles vão soltando suas verdades inquietantes.

“Qual o problema de eu subir?”, pergunta um deles que tenta subir a escada e é puxado pelos cabelos, pelos braços e pernas, pela camisa. Existe a “lenda do caranguejo” no Recife, que conta que toda vez que um caranguejo tenta subir (na vida) é derrubado por outros. No espetáculo, a sonoridade das conchas marca as puxadelas.  

Monique  Sampaio numa cena da marisqueira que perdeu o filho de cinco anos baleado pela polícia. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Uma cena terrivelmente tocante chama-se Separando O Sururu da Bucha, quando Monique Sampaio assume o papel de uma marisqueira traumatizada, que flutua entre sanidade e loucura, com a morte do filho de cinco anos, baleado pela polícia enquanto brincava com um graveto. Num estado de oscilante,  a personagem comove com suas falas: “Os ‘homi’ num só protege, não, os ‘homi’ mata, barata… matou meu Dinho. Meu pretinho se foi com dois tiros na cabeça… Os ‘homi’ mata!”.

A filósofa Judith Butler já levantou questões biopolíticas com as perguntas: as vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas? Para dizer que “não podemos dar por certo que todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário, esse estatuto deve ser assegurado por meios políticos, e quando negado, a privação deve ser manifestada”. 

As experiências e elaborações compartilhadas também falam do vínculo de entre criação teatral e realidade social.  Em algum momento, alguém ressalta a dificuldade de fazer teatro com fome, não ter dinheiro para a passagem, ou a falta de acolhida por parte de outros grupos estabelecidos. Mas a opção é seguir fazendo arte para espelhar na cena “um bocado de nós, nossa gambiarra”.

Mas o grupo também celebra a resistência e existência de seus pares negros que com arte e cultura fazem suas microrrevoluções.  São personalidades do teatro, mas também da literatura, da militância, figuras de projeção nacional e pernambucanas e pernambucanos contemporâneos. Diante de um cotidiano implacável, o São Gens rega as ideias de coletivo para fortalecer a luta.

Ficha técnica
Espetáculo Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré
Dramaturgia e encenação: Anderson Leite  
Elenco: Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio.
Direção musical: Arnaldo do Monte 
Figurino: André Lourenço  
Cenário e iluminação: Anderson Leite 
Operação de luz: Cristiano Primo e Grupo 
Adereços: Anderson Leite  e André Lourenço
Produtora Cultural: HBlynda Morais
Realização:  Grupo São Gens de Teatro

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Inimigos do fim
Frescor de começos
Crítica de Entre les lignes,
espetáculo de Tiago Rodrigues

Tonan Quito na peça Entre les lignes, de Tiago Rodrigues, em Paris, Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

Percebo Entre les lignes como uma jornada por um labirinto, uma descoberta em sequência de bonecas russas, un mille-feuille cênico. Essas imagens chegam repletas de ideias de jogo e de muitas camadas agregadas com desafios, encaixes e algum sabor. O espetáculo do encenador português Tiago Rodrigues com o ator Tónan Quito erguido em fevereiro de 2013 em Lisboa, recriado em março de 2016, numa versão francesa, no âmbito do festival Terres de Paroles é intrigante. Produz no palco muitas reflexões acerca da criação, da cumplicidade, da ficção, do status de verdade, do dito e do não-dito, da presença.

Muitas associações possíveis nessa construção rizômica; nessas aberturas de pensamentos. São tantas propostas para chegar ao coração do teatro, talvez do que flameja esse coração que é teatro, que pulsa tanto até contagiar a plateia.

Assisti Entre les lignes nos últimos dias da curta temporada no Athénée Théâtre Louis-Jouvet, em Paris, onde ficou em cartaz entre 23 de novembro e 17 de dezembro de 2022, mas a peça segue em turnê de apresentações em abril de 2023 em Aix en Provence (Bois de l’Aune), em Toulouse (Théâtre Garonne), em maio em Creil (La Faïencerie).

Depois de subir algumas escadas e chegar ao poleiro, na Sala Christian-Bérard, um espaço intimista de 91 lugares no quarto andar do teatro (e isso já é uma experiência forte, seguir em comitiva por aquelas escadas com pouca iluminação e plenas de histórias), encontramos Tónan Quito, um intérprete maduro de barba grisalha, que aguarda o público se acomodar até perguntar: “Nós podemos ir?”

São muitas camadas desse complexo e intrigante espetáculo. Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

No palco uma mesa, uma máquina de café, uma cadeira, lâmpadas fluorescentes tubulares brancas  no chão. Tonan Quito usa jogging e tênis. Tem o olhar apreensivo. Oferece um café à plateia. Alguém aceita. O ator bebe o seu. É uma sala de ensaio.  Mas pode ser outros lugares, vagando entre o passado e o futuro.  

Pega um livro e lê a carta de um preso para sua mãe. A mensagem está emaranhada com o diálogo de Édipo e Tirésias. “Mãe, decidi escrever-te esta carta, mesmo que não a quisesse endereçar a ti, esta carta que escrevo nas entrelinhas deste antigo livro é para o papá”. Tónan Quito conta ter encontrado um exemplar dessa obra na biblioteca do pai, comprado a um major de Moçambique. Duas histórias de parricidas.

O espetáculo é apresentado em francês, com extratos em português e legendas em francês. A tradução projetada ao fundo do palco – do texto de Sófocles e a carta do detento – ganha tipografias distintas.

Essas narrativas se cruzam imperiosas, promovendo tensões e erguendo obstáculos a uma compreensão rápida. Siga o fluxo. O processo é vertiginoso.

As dúvidas da criação são exposta na peça. Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

O ator interrompe as histórias contadas para conjecturar em francês que espera o seu texto para o ensaio mas, como sempre, Tiago está atrasado. A fidelidade, a cumplicidade entre os dois artistas são evidenciadas entre esperas e reminiscências, desejos que a cena se materialize e medo de que isso não ocorra. Vêm a tona os posicionamentos no mundo e processos criativos. Nesses bastidores da criação o ator sabe e diz que as coisas fervilham na cabeça do dramaturgo/diretor mas… tem medo, mesmo sabendo que é sempre assim.

Confessa que é um jogo, que eles inventaram. Um jogo da criação teatral; um exercício sublime, delicado e frágil e tão carregado de dúvidas. Um complexo e exigente texto. Essa linguagem poderosa magnetiza os espectadores em Paris, 

Numa entrevista, o encenador Tiago Rodrigues (novo diretor do Festival de Avignon) falou que “a ideia do fracasso” ocupava o centro da sua peça Entre les Lignes, que isso pulsava no núcleo do desejo de fazer o espetáculo. Sem dúvida é de uma potência imensa testar a possibilidade de falha. Isso ocupa o palco, o pensamento, a vida.

Arma-se um labirinto sem começo e sem fim. De um café lisboeta – ponto de encontro de Tiago Rodrigues com Tónan Quito -, ao palácio em Tebas, o apartamento do encenador, os corredores de uma cadeia. Atalhos e desvios… Lugares de encontros imprevistos. Dos desafios da navegação lançados por Deleuze e Guattari, Tónan Quito propõe uma viagem entre passado, presente e futuro.

Nessa mise en abyme, as histórias vão se entrelaçando, do parricídio eternizado por Sófocles, as razões de um condenado à prisão perpétua, de um diretor que nunca aparece e até um pequeno excerto de Dom Quixote de Cervantes. Essas várias superfícies de textos são ambiciosas. Somos desafiados a encontrar começos em sinapses múltiplas.

Tonan Quito no l’Athénée-Théâtre Louis Jouvet, em Paris. Foto: Mariano Barrientos / Divulgação

O dramaturgo justifica sua ausência por um problema de visão que o impede de ler. Essa cegueira (metafórica? )chama Tirésias para a dança. Já o alardeado sumiço revela os bastidores, os preparativos, as engrenagens a reforçar a vocação coletiva do teatro. Tiago Rodrigues não está lá e está. Tudo é matéria do espetáculo. Sobretudo a presença.

A atuação de Tónan Quito é brilhante. A plateia segue o ator encantada, se entrega ao jogo inteligente, ri das partes mais humoradas.  Ele mostra virtuosismo, até nas indicações cênicas mais caricaturais entre o drama e farsa. O público ri e adere. Achei excessivo o caricaturesco. Meus olhos reclamaram das lâmpadas fluorescentes acendidas para pontuar alguma mudança e utilizadas quase como personagem na cena da paródia.

O ator pede a alguém do público que faça a última leitura do texto Entre les Lignes, distribuído à plateia em formato de livreto.

E encerra dizendo que que a peça não aconteceu. Que pode estar apontada no futuro, por não ter assentada no passado. Intrigante. a complexidade da escrita prossegue em sua dinâmica de trocas estreitas. Essa desapropriação temporal. Essa insistência na transgressão. Essa infinita busca pelo frescor do começo.

Entre les lignes
Uma criação de Tiago Rodrigues & Tónan Quito
Texto Tiago Rodrigues
Com Tónan Quito
Colaboração artística Magda Bizarro
Cenografia, ilustração, figurinos Magda Bizarro, Tiago Rodrigues, Tónan Quito
Direção técnica André Pato
Tradução francesa Thomas Rasendes
Legendas Sónia De Almeida
Produção associada OTTO Productions – Nicolas Roux & Lucila Piffer
Produção original Magda Bizarro & Rita Mendes
Projeto da empresa Mundo Perfeito (2013) com o apoio do Governo Português e da DGArtes.
Duração: 1h20

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Iniciativa de crítica teatral.

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Ferida escravocrata sangra no Brasil
Crítica de “Depois do Silêncio” (“Après le silence”),
de Christiane Jatahy

Espetáculo Depois do silêncio está em cartaz até 16 de dezembro no Centquatre Paris. 

 Atriz e performer indígena Lian Gaia, bisneta de João Pedro Teixeira, o líder da primeira Liga Camponesa da Paraíba. Foto Christiane Jatahy/ Divulgação 

Elenco do espetáculo, três atrizes e um ator músico. Foto: Divulgação

A escravidão no Brasil não acabou! Há muitas formas de dizer isso. De expor os resíduos disfarçados da escravatura. Ou “desenhar” o que já está escancarado do racismo estrutural, mas muitos insistem em não ver, teimam em negar. A diretora e cineasta brasileira Christiane Jatahy inspira-se num romance contemporâneo, junta trechos do documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, práticas religiosas do Jarê, quatro artistas no palco, um filme autoral e numa linguagem só dela aponta as facas. Afiadas, como àquela que jogou fora a língua de Belonísia, uma das irmãs do romance Torto Arado, do geógrafo Itamar Vieira Junior, uma das referências da peça-filme Depois do silêncio (Après le Silence), em cartaz até 16 de dezembro no Centquatre Paris, associado ao Odéon para essa temporada.

Foram muitos cortes e são muitas feridas abertas, que nem sabemos até que ponto é possível negociar. O que é certo é que Depois do Silêncio vem com a urgência da fala. Os subalternizados querem falar sim.

Diante de qualquer impedimento vale o chute na porta. Pelo espaço para as vozes silenciadas há séculos. Belonísia, Bibiana, Santa Rita Pescadeira, Gal Pereira, Juliana França, Lian Gaia, Elisabete Teixeira, Salustiana, Donana, Maria Cabocla, misturadas entre personagens e gente, atravessadas umas pelas outras. E mais Aduni Guedes, Zeca Chapéu, Severo, João Pedro Teixeira e moradoras/es das comunidades de Remanso e Iúna na Chapada Diamantina, na Bahia, no Nordeste do Brasil, narradas em várias pessoas, descendentes de escravizados. 

Essas memórias emudecidas partem da fictícia região da Fazenda Água Negra para se expandir por muitos lugares do Brasil, que reivindicam o protagonismo de trajetórias, desejos e do próprio corpo. Que repudiam qualquer condição infame análoga à escravidão.

Jatahy expõe as contradições. Vastos territórios, grandes latifúndios indefensáveis enquanto tanta gente não tem onde morar ou trabalhar e consequentemente comer e viver. Sim é sobre terras. Sobre trabalho e dignidade. E o espetáculo aguça para a perversão que mora ali, como está no livro, das casas de barro que se desmancham com as chuvas, pois as de alvenaria estão proibidas pelos “patrões”. É para combater a opressão de trabalhar em troca de comida, um alimento cuja melhor parte vai para os donos das terras; quem labuta fica com as sobras.  

Para Christiane Jatahy o teatro é sempre político. Então essas coisas estão entrelaçadas na sua cena: a reivindicação camponesa dos sem-terra contra a ganância dos grandes proprietários e da ação de governos como o de Bolsonaro, que ainda não sabemos o tamanho do estrago causado aos territórios amazônicos com o desmatamento, nem a gravidade do impacto climático dessa necrogeopolítica. Tá tudo interligado, com prejuízos incalculáveis…

O Brasil pulsa dilacerado na cena da diretora brasileira; imenso e dilacerado, na luta do seu povo pela terra, pela liberdade de existir, por sua identidade. A criadora se situa no combate contra a violência colonial não resolvida.

Teatro e cinema dialogam na cena de Jatahy. Foto: Nurith Wagner / Divulgação

A encenação Depois do Silêncio é a terceira parte da Trilogia dos Horrores, que Jatahy iniciou em 2018, ano em que na política brasileira tudo começou a ficar pior. Uma forma artística de se posicionar, de alertar para as implicações na vida comum. Para investigar os mecanismos do fascismo, a artista ergueu Entre Cão e Lobo (Entre chien et loup, montado no Festival de Avignon em 2021 e inspirado no filme Dogville) e La Chute du Ciel, (Before the Sky Falls), criado na Schauspielehaus de Zurique em outubro de 2021), que conecta Macbeth de Shakespeare com A Queda do Céu de Davi Kopenawa e Bruce Albert para analisar a violência da masculinidade tóxica – do poder político do patriarcado, passando pela agressão contra o feminino e o ataque à natureza.

Para montar Depois do Silêncio a encenadora voltou ao Brasil para ensaiar no Rio de Janeiro e filmar na Chapada Diamantina, na mesma comunidade pesquisada por Itamar Vieira Junior para o livro Torto Arado. Essas gravações de conteúdo doc-ficional se cruzam com fragmentos de Cabra Marcado para Morrer, de Coutinho, que analisa as circunstâncias do assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, em 1962. O golpe militar que desencadeou na ditadura confiscou o filme e perseguiu os artistas. Eduardo Coutinho só concluiu as filmagens em 1984.

Todas essas informações estão na cena. Ou projetadas, ou narradas ou encenadas. Na combinação entre vocabulários teatrais e cinematográficos, a fricção avança em linhas tortuosas entre ficção e realidade, em jogos corporais, discursos, diálogos, provocações, numa partilha não-linear entre passado e presente.

A narrativa é complexa e rica e borra as histórias reais, os conteúdos documentais com o relato das próprias atrizes e do ator/músico para ampliar o escopo do particular para o coletivo.
Com uma escrita dramatúrgica/cênica singular plasmada entre o cinema e o teatro, com seus atores transitando entre os dois universos, a encenadora investe em casos específicos do Brasil para questionar as reverberações da situação do planeta – da terra e do clima – em outros lugares do mundo, porque parece que existe pontos comuns e comunicação entre os oprimidos de todos os lugares do globo.

Juliana França trabalha vários registros na sua atuação. Foto Nurith Wagner Strauss  Divulgação

No início do espetáculo, a atriz Juliana França dá boa noite em português, repete e aponta para a legenda em francês. Fala que estamos muito aliviadas com o resultado das eleições presidenciais no Brasil – que deu vitória a Luiz Inácio Lula da Silva contra Jair Bolsonaro. Aliás a ascensão dessa figura de extrema direita destampou no país um fascismo latente – que não por coincidência eclodiu em várias partes do mundo.

É desconcertante quando Juliana fala das terras do Brasil (com imagens exuberantes no telão). Só o tamanho da Chapada Diamantina é maior que a Bélgica. E quando esmiúça para a plateia que o governo francês manteve um departamento nessa área do Nordeste para enviar as preciosidades brasileiras para a França.

 Juliana França e Lian Gaia num dos momentos da palestra. Foto: Divulgação

Acompanhadas pelo percussionista Aduni Guedes (um pernambucano que Berlim adotou), dividem o palco Juliana França, Lian Gaia (atriz e performer indígena, bisneta de João Pedro Teixeira, o líder da primeira Liga Camponesa da Paraíba) e Gal Pereira. As três atrizes brasileiras se instalam atrás de mesas como palestrantes, em momentos distintos; enquanto um imenso telão que ocupa toda a largura do palco projeta as imagens.

As artistas mudam de registro, falam como se fossem improviso e nos convencem disso, passam para as falas ensaiadas e essas nuances estão intimamente ligadas ao som tocado ao vivo e aos filmes em que elas praticamente entram quase como passe de mágica. As vozes levantam o tom para defender seus direitos, pleitear pela dignidade humana. O grupo mostra revolta ao tratar de injustiça, abuso de poder, falta de oportunidades, perseguições, assassinatos, opressão.

E dentro da opressão são reveladas opressões noutros cruzos, alimentadas pelo patriarcado e masculinidade tóxica. As mulheres sofrem mais violências inclusive dentro da própria comunidade.

Atriz Gal Pereira. Foto: Christophe Raynaud De Lage  / Divulgação

Das festas religiosas e das danças sagradas, o jarê é convocado em alguns momentos. Mas a cena mais surpreendente é quando a atriz Gal Pereira, selecionada pela diretora durante um laboratório na comunidade quilombola do Remanso, assume o transe, ao toque do couro.

Essa breve e impactante cena carrega muitas camadas, desde a sabedoria popular que foi marginalizada ao ethos da oralidade. O Jarê é, segundo uma reportagem da revista Carta Capital, o “candomblé de caboclos” típico da Chapada Diamantina. Ele faz uma síntese particular do espiritismo kardecista, das influências africanas e indígenas, dos índios Cariris e Maracás em suas performances xamânicas.

Maestrina, Jatahy acelera e desacelera ritmos, acentua melodia, o tom dos corpos numa execução afiada, ousada e politicamente posicionada. Trabalha a porosidade da confluência das linguagens cênica e cinematográfica em seus dispositivos. Sabe a hora do ataque e da defesa, de fazer o corte e amplificar as vozes.

Depois do silêncio é preciso falar. Muito. Do que ficou engasgado por séculos. Testemunhar, denunciar e esperançar vibrando na utopia do futuro.

A criadora habilmente dá drible estonteante mais uma vez no desfecho tão aberto a interpretações. É quando ecoa, de alguma forma, a frase final do romance que diz “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte”. Para refletir… E, por final, mas não menos importante, é uma alegria assistir a mais um trabalho dessa artista, de visão e sensibilidade tão potentes a projetar no mundo suas inquietações e contrapor qualquer possibilidade de narrativa única. 

Depois do silêncio (Après le silence)
em português, com legendas em francês
Duração 1h50
Até 16 de dezembro, de terça a domingo
no Centquatre Paris 104.fr
Quarta-feira, 14 de dezembro, após o espetáculo Encontro com a equipe artística
duração: 45 min

Direção artística e texto: Christiane Jatahy
Baseado no livro: Torto arado de Itamar Vieira Júnior
Com Gal Pereira, Juliana França, Lian Gaia, Aduni Guedes
Filmagem com moradores das comunidades de Remanso e Iúna (Chapada Diamantina/Bahia/Brasil)
Set e light design: Thomas Walgrave
Música: Vitor Araujo, Aduni Guedes
Fotografia e câmera: Pedro Faerstein
Sonorização e mixagem: Pedro Vituri
Montagem (filme): Mari Becker, Paulo Camacho
Som (filme): João Zula
Figurinos: Preta Marques
Sistema de vídeo: Julio Parente
Preparação corporal: Dani Lima
Colaboração texto: Gal Pereira, Juliana França, Lian Gaia, Tatiana Salem Levy
Interlocução: Ana Maria Gonçalves
Tradução: Igor Metzeltin (Alemão, Inglês)
Assistência de direção: Caju Bezerra
Assistência de câmera: Suelen Menezes
Operação de som: Diogo Magalhães
Operação de luz: Leandro Barreto
Operação de vídeo: Alan de Souza
Direção de produção: Claudia Marques
Assistência de produção: Divino Garcia
Coordenação de produção e tour management: Henrique Mariano
Administração: Claudia Petagna
Referências e imagens: Cabra marcado para morrer de Eduardo Coutinho, produção Mapa Filmes

Produção: Cia Vertice – Axis productions
Coprodução: Schauspielhaus Zürich, Le CENTQUATRE-Paris, Odéon-Théâtre de l’Europe –
Paris, Wiener Festwochen, Piccolo Teatro di Milano – Teatro d’Europa, Arts Emerson – Boston, RiksteaternSweden, Théâtre Dijon-Bourgogne CDN, Théâtre National Wallonie-Bruxelles, Théâtre Populaire Romand – Centre neuchâtelois de arts vivants La Chaux-de-fonds, DeSingel – Antwerp, Künstlerhaus Mousonturm – Frankfurt a.M., Temporada Alta Festival de tardor de Catalunya and Centro Dramatico National – Madrid.
Christiane Jatahy é artista associada ao CENTQUATRE-PARIS, à l’Odéon-Théâtre de l’Europe, Schauspielhaus Zürich, Arts Emerson Boston and Piccolo Teatro di Milano – Teatro d’Europa.

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Iniciativa de crítica teatral.

 

 

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Nem toda bixa é igual…
Crítica de A Doença do Outro

 

Ronaldo Serruya idealizou, escreveu o texto e atua em A Doença do Outro. Fotos: Jonatas Marques /Divulgação

Da primeira vez que assisti ao espetáculo A Doença do Outro, idealizado, escrito e protagonizado por Ronaldo Serruya, com direção de Fabiano Dadado de Freitas, me perturbou a transição  rápida entre o relato e o apelo para a festa, que encerra a apresentação. Cerca de um ano depois fui lá de novo (reassisto, quando a peça me diz muito), na reestreia, desta vez no auditório do Sesc Ipiranga, em São Paulo.

Faço comparações de memória com a outra sessão no Centro Cultural São Paulo, naquela estrutura com a que é exibida agora. Confesso que sinto falta da profundidade espacial do porão e dos elementos simbólicos que o lugar suscita. Serruya disse que pensou na montagem para ali mesmo, naquela sala miúda do Ipiranga ou algo parecido. A  Doença  do  Outro integra a programação do Teatro Mínimo, projeto criado em 2011 pela equipe do Sesc Ipiranga. Bem, o espaço é importante, mas não é o principal.

Serruya expõe os estados – as cores e as tensões – da sua convivência com o vírus HIV. Para falar desses percursos com pessoas de uma plateia supostamente empática – mas que provavelmente nem de longe sentiu na carne o estigma da doença – o ator se derrama em uma generosidade atroz.

Cada um de nós se distingue dos demais por suas qualidades, encaradas positivamente ou não. Algumas condições são temporárias. Aliás, todas, como salienta o artista, mas que às vezes duram mais tempo e dão a sensação de perenidade, de ser mais do que uma circunstância. É bonito como Serruya nos lembra disso. Do imponderável. Ele, Fabiano Dadado de Freitas e equipe, fazem um corte cirúrgico na existência.

Peça-palestra-performance está em cartaz no Sesc Ipiranga, em São Paulo, dentro do projeto Teatro Mínimo. 

A Doença do Outro é um espetáculo desconfortável. Que vai incomodando aqui e ali; nas nossas certezas de bem-estar, e nas armadilhas de poder que o capitalismo criou com as fantasias de proteção, imunidade, impermeabilidade. O dicionário indica que proteção vem do latim protectio.onis, “esconder”; a pensar.

Tudo está por um triz. Acaso, coincidência, acidente, os acontecimentos marcantes têm um teor disso aí. Viver é correr riscos. O conforto é traiçoeiro, descobre quem se deslocou.

Com coragem o ator abre passagem na sua história para expor seu corpo político. Um corpo pleno de vida que atua no presente, fala, ouve, subverte, performa, faz conexões filosóficas, celebra, dança, se revolta, se indigna, que movimenta as circunstâncias.

Na palestra-peça-perfomance, Serruya convoca os textos de Susan Sontag e os conceitos da socióloga Patricia Hill Collins, além de imagens que que entraram pelos nossos olhos, adubaram o terreno da subjetividade vindas de poderosas máquinas de fazer gente como o cinema e a música.

Em Doença como metáfora, a escritora norte-americana Susan Sontag analisa as fantasias sentimentais ou punitivas quando se passa para o reino dos doentes; os estereótipos e as estigmatizações a partir da linguagem; enfim, as metáforas lúgubres desse lugar e a libertação do seu jugo. O livro completou 40 anos em 2018 e foi escrito no torpor da descoberta de um câncer em 1976. Naquela época, a luta contra o câncer era bem mais difícil.

Sontag refletiu nesses escritos sobre o poder da linguagem, as palavras que tramavam um jogo perverso como presença do Mal no mundo. Metáforas que praticamente naturalizavam os aspectos negativos de determinadas enfermidades ao longo da história da humanidade. 

A DOENÇA É A ZONA NOTURNA DA VIDA, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar.
Susan Sontag

A ensaísta analisa especificamente duas patologias, a tuberculose e o câncer. A tuberculose se encontra associada ao romantismo, aos sentimentais e apaixonados, forjando um imaginário quase lírico. Já o câncer ocupa no livro um lugar mais tenebroso, de invasão que arrasa e destrói tudo por dentro. Atualmente o câncer não ostenta o peso de outras épocas.

Uma década depois, Sontag direciona suas reflexões para as metáforas associadas à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, AIDS ou SIDA. O ensaio Aids e suas metáforas foi publicado num momento em que ter HIV era encarado praticamente como uma sentença de morte. Essa realidade mudou com as descobertas da ciência e atualmente uma pessoa portadora de HIV pode ter a mesma expectativa de vida do que alguém que não tenha o vírus.

Serruya convoca pensadoras como Susan Sontag e Patricia Hill Collins para embasar sua argumentação artística

Patricia Hill Collins desenvolveu o conceito de imagens de controle para falar da feminilidade de mulheres negras. Ou melhor, para detectar os elementos operacionais de dominação para o exercício da violência simbólica. Da manipulação dentro do sistema de poder no padrão ocidental branco eurocêntrico. Mas as articulações podem ser aplicadas a outras realidades. Como já disse a escritora ativista Winnie Bueno, são scripts de como determinados grupos devem se portar. 

Para mostrar a força das imagens de controle, a peça-palestra-perfomance projeta na cena trechos do filme Filadélfia (1993) e outras para atacar essas representações do que seria viver com o vírus. 

A doença do Outro tem produção da Corpo Rastreado. Fotos: Jonatas Marques /Divulgação

A Aids já chegou à sua quarta década, mas as metáforas sombrias, que remetem à condenação, prosseguem sua função de estigmatizar e discriminar. A Doença do Outro rechaça essa posição que continua sendo alimentada, acerca das enfermidades.

Serruya chega à cena usando uma grande máscara de gás. Convoca as pensadoras para fundamentar sua argumentação na peça-manifesto ou palestra performativa ou conferência artística. Traça uma breve história social em torno da Aids e faz as conexões com o diagnóstico recebido em 2014. Situa seu corpo no campo dos que são considerados dissidentes e/ou subalternizados.

Fala das heranças, de Fucô (adorei a grafia, Dadado), de Cazuza, etc. Acena que honra o legado de luta, mas celebra a vida em cena.

Projeta, expõe, sacode os panfletos SILÊNCIO = MORTE. Não dá para calar. E ele pede para a plateia repetir coletivamente a palavra Aids, Aids, Aids. Falar, ouvir. É preciso registrar em bom som a sobrevivência dos vaga-lumes.

O diálogo da videoarte com a cenografia (trabalhos assinados por Caio Casagrande, Evve Avila e Mauricio Bispo) assume um papel preponderante nesta montagem. O videografismo ocupa as projeções sinalizando tempos, contribuindo nas pulsações.

Estamos vivos, apesar da mira. O artista destaca que um corpo portador do HIV é um corpo perigoso, recusado, fracassado e sigiloso para a maioria dos mortais. Erguer essa peça foi uma forma de recusar o silêncio e a culpabilização.

Dadado lembra no programa do espetáculo que derrubamos no voto um governo comprometido com a necropolítica. Isso muda muito.

Sinaliza caminhos que é preciso dizer de si para dizer do mundo. A autoescritura como ativismo político. Para afrontar a construção de terceiros, para erguer imagens positivas sobre si, por meio de uma autorrepresentação.

 O teor festivo desse manifesto pela vida ganhou outras camadas para mim. Uma pandemia no meio, um governo massacrante que já vai tarde.  No entanto, é preciso cantar, dançar. “Apesar de tantas mortes no caminho: passado presente e futuro, porque as mortes nunca cessam” pontua o autor-performer. Mais que nunca é preciso contagiar a cidade de alegria. Isso também é um gesto revolucionário.

Ficha técnica:

Idealização, Texto e Atuação: Ronaldo Serruya 
Direção: Fabiano Dadado de Freitas

Cenografia: Evee Avila e Mauricio Bispo 
Figurino: Luiza Fardin 

Luz: Dimitri Luppi 

Trilha Sonora Original: Camila Couto 

Operação som e vídeo mapping: David Costa 

Assistente e operação de luz: Paloma Dantas 

Videoarte: Caio Casagrande, Evve Avila e Mauricio Bispo 

Produção: Corpo Rastreado

Serviço 
A Doença do Outro 

Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822 – Tel. 3340-2000) 
Duração: 60 minutos
Classificação indicativa: 14 anos 
Quando: Até 11 de dezembro de 2022 
Sextas, 21h30; sábados, 19h30; domingos, 18h30. 
Ingressos: R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia); R$ 9,00 (credencial plena)

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Iniciativa de crítica teatral.

 

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