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Fabulação do trauma climático
Crítica: A Menina dos Olhos d’Água
Por Ivana Moura

Liane Ventuella em A_Menina dos Olhos d’Água. Foto: Laura Testa / Divulgação

As enchentes do Rio Grande do Sul em 2024 transformaram milhares de vidas em uma experiência de desterro e reconstrução. Essa realidade traumática motivou a criação do espetáculo A Menina dos Olhos d’Água, do Coletivo Gompa, de Porto Alegre, que estreou em Munique (Alemanha) em abril deste ano e é apresentado em várias cidades do Brasil desde maio. A pergunta inaugural que atravessa toda a peça – “o mundo é um lugar seguro?” – constitui o eixo fundamental da investigação artística que se debruça sobre uma das questões mais cruciais da atualidade, ou seja, a emergência dos refugiados climáticos e a necessidade de construir narrativas que permitam às novas gerações compreender e processar essa nova condição existencial.

A criação foi viabilizada com recursos do International Coproduction Fund do Goethe-Institut e do Prêmio Iberescena, contando com parceiros do Brasil, Alemanha, Cuba e Chile. Uma residência artística na Alemanha permitiu o desenvolvimento da “dramaturgia do movimento”, estabelecendo diálogos entre perspectivas estéticas distintas.

Sob direção de Camila Bauer, a peça conta com a atuação intensa e tecnicamente primorosa de Liane Venturella, que interpreta a personagem Menina através da manipulação de bonecos em diversos tamanhos, criados por Pedro Girardello. As expressões faciais, a manipulação expressiva dos bonecos e a presença cênica que transita entre diferentes escalas traduzem a força interpretativa da atriz.

Um dos aspectos mais desafiadores da encenação é o fato de que, quando a Menina atinge tamanho humano, a cabeça não possui abertura dos olhos para que a atriz veja a cena. Liane Venturella conduz toda a performance “no tato, na intuição, na marca” – procedimento que estabelece um paralelo com a própria condição dos refugiados climáticos: navegar em um mundo incerto, onde as referências habituais foram destruídas e onde é necessário reconstruir orientações através de outros sentidos e capacidades.

A encenação utiliza diversos materiais cênicos, como bonecos, projeções, objetos filmados em tempo real. Foto: Wallace Gonçalves / Divulgação

Articula-se na montagem um diálogo complexo entre documento e ficção, entre realidade histórica e fabulação poética. Estruturalmente, a encenação – que tem sua narração gravada – opera por justaposições de diferentes materiais cênicos – bonecos, projeções, objetos filmados em tempo real. Desenvolve ainda hibridizações de linguagens que combinam teatro de formas animadas, documentário multimídia e performance ao vivo. Esta “escritura cênica” contemporânea valoriza a dramaturgia visual e a intersecção entre diferentes códigos semióticos, criando significados que surgem do atrito entre linguagens distintas.

A utilização de projeções em tempo real de objetos e bonecos filmados incorpora tecnologias digitais sem perder a especificidade da experiência teatral presencial. Ao contrário do cinema ou da televisão, onde a imagem é predeterminada, neste espetáculo as projeções criam uma relação dialética entre presença física e mediação tecnológica. Essa hibridização permite que objetos pequenos – os bonecos menores, elementos cenográficos – adquiram monumentalidade através da projeção, criando jogos de escala que amplificam o impacto dramático.

Projeções e miniaturas são utilizados no espetáculo. Foto: Divulgação 

Um aspecto fundamental da peça evidencia-se no processo de criação. Durante os ensaios abertos, as crianças rejeitaram qualquer design que amenizasse as tragédias retratadas, optando por “ver a dura realidade” sem filtros ou eufemismos. Esse desejo dos pequenos espectadores por uma representação sem adoçamentos artificiais evidencia uma maturidade que desafia convenções paternalistas do teatro infantil. As crianças, expostas diariamente a imagens de catástrofes através de múltiplas mídias, desenvolvem uma capacidade crítica aguçada e não aceitam a infantilização de temas complexos.

Então, o espetáculo aposta no princípio de que as crianças possuem capacidade de compreensão e elaboração de temas complexos, desde que estes sejam apresentados com honestidade artística e rigor ético. Contrariando tradições teatrais que infantilizam seu público através de simplificações moralizantes, a montagem aposta na inteligência e sensibilidade infantis. O tratamento do luto infantil constitui um dos aspectos mais delicados e bem-resolvidos da montagem. A personagem transita pela dor da perda de seu animal de estimação através de um percurso que inclui saudade, resistência e, finalmente, uma aceitação que preserva vivo o afeto.

Essa demanda infantil por honestidade encontra respaldo na magnitude alarmante dos dados globais sobre deslocamentos climáticos. De acordo com o Global Report on Internal Displacement 2025 (GRID 2025), do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC), 45,8 milhões de deslocamentos internos foram causados por desastres em 2024, um número recorde na última década. No final de 2024, 9,8 milhões de pessoas viviam em deslocamento devido a desastres em 94 países e territórios.

Além disso, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) projeta que, até 2050, entre 31 milhões e 143 milhões de pessoas em regiões como América Central e do Sul, África Subsaariana e Sul da Ásia poderão ser deslocadas devido às mudanças climáticas, evidenciando a magnitude dessa crise humanitária emergente.

Crítica Política e Escolhas Estéticas
É diante desta realidade planetária que a escolha do Coletivo Gompa de abordar especificamente as enchentes do Rio Grande do Sul adquire relevância política específica. O grupo vivenciou coletivamente essa tragédia, transformando o trauma compartilhado em elaboração artística. Contudo, a criação ultrapassa o relato pessoal para articular uma crítica fundamental: eventos climáticos extremos não constituem apenas “fúria da natureza”, mas resultam também de escolhas políticas e frequentemente de descasos governamentaisde estados e municípios.

Esteticamente, a opção pelo teatro de formas animadas permite uma abstração formal que universaliza a experiência particular da protagonista, transformando-a em referência afetiva de todas as crianças afetadas por deslocamentos climáticos. Os bonecos possuem uma plasticidade que permite múltiplas identificações. A boneca principal, chamada apenas de Menina – escolha proposital para ampliar sua representatividade -, funciona como superfície de projeção para diferentes experiências infantis de perda e reconstrução.

Foto: Laura Testa / Divulgação 

A trilha sonora criada por Paola Kirst e Álvaro RosaCosta constitui uma dramaturgia sonora potente. A montagem cria “paisagens sonoras” que situam os espectadores no ambiente da enchente. Sons de água, vento, chuva e silêncios são organizados de forma a criar ambiências que amplificam o impacto emocional e estético da peça.

Optando por uma entrada poética que não explora o sensacionalismo das imagens de destruição, o espetáculo evita cuidadosamente a espetacularização do sofrimento dos refugiados climáticos. O trabalho busca tornar sensível a experiência e ampliar nossa capacidade de perceber e compreender esta realidade, criando condições para novas formas de engajamento.

A Menina dos Olhos d’Água destaca-se pela conjunção entre excelência artística e coragem ética, focalizando temas urgentes sem concessões sentimentais ou simplificações. A montagem oferece uma criação artística exemplar diante dos desafios de nosso tempo: como representar a catástrofe climática e como falar às crianças sobre temas complexos sem mentir ou edulcorar.

A encenação não escamoteia a dor da personagem criança que perde casa e animal de estimação, mas também não perde a esperança. Isso evita tanto o pessimismo paralisante quanto o otimismo ingênuo, constituindo uma grande conquista estética e política. Diante da complexidade dos desafios climáticos contemporâneos, oferece uma poética que pode formar espectadores críticos e sensíveis – uma peça necessária que envolve por sua beleza comovente frente à dureza do real.

* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.

Ficha técnica:

A Menina dos Olhos d’Água, do Coletivo Gompa

Concepção: Liane Venturella e Camila Bauer
Direção: Camila Bauer
Atuação e manipulações: Liane Venturella
Dramaturgia do movimento: Ceren Oran
Dramaturgia de bonecos: Kenia Rodriguez e Dayane Deulafeu Canto
Criação de bonecos e máscara: Pedro Girardello
Cenografia: Élcio Rossini
Criação de miniaturas e figurino: Liane Venturella
Desenho de vídeo: Pablo Mois
Montagem de vídeos: Raoni Ceccim
Trilha sonora: Paola Kirst e Álvaro RosaCosta
Desenho de luz: Ricardo Vivian
Assistência técnica: Thiago Ruffoni
Produção: Venturella Produções LTDA e Coletivo Gompa
Assistência de produção: Rômulo Venturella
Produção na Alemanha: Karolina Hejnova
Realização: Coletivo Gompa
Assessoria de imprensa: Léo Sant’Anna
Arte gráfica: Jéssica Barbosa
Fotografia: Jéssica Barbosa, Laura Testa e Wallace Gonçalves
Financiamento: International Coproduction Fund Goethe-Institut e Iberescena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Teatro nacional em destaque

As três velhas abre a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos

O festival Janeiro de Grandes Espetáculos atinge a maioridade no próximo ano com uma programação nacional muito mais extensa. Em janeiro deste ano, apenas quatro grupos vindos de outras partes do país participaram da programação. Na próxima edição, serão nove. “Isso é fruto de uma parceria com outros festivais, que levaram as nossas peças e agora queremos conhecer melhor a produção desses lugares”, conta uma das produtoras do Janeiro, Paula de Renor, que divide a tarefa com Carla Valença e Paulo de Castro.

No total, só de artes cênicas serão mais de 90 atrações nesta 18ª edição da mostra, que vai do dia 11 a 29 de janeiro. Ontem, saiu a lista dos espetáculos nacionais – e aí a confirmação da montagem que abre o festival, no Teatro de Santa Isabel: As três velhas, que traz de volta ao palco a atriz Maria Alice Vergueiro, também diretora. Ela divide a cena com Luciano Chirolli e Danilo Grangheia (ele substituiu Pascoal da Conceição). A peça do chileno Alejandro Jodorowsky recebeu três indicações ao Prêmio Shell e levou o de melhor ator com Luciano Chirolli.

O festival terá também montagens como R&J de Shakespeare – Juventude interrompida, com direção de João Fonseca, Metamorfose Leminski – Reflexões de um herói que não quer virar pedra, do grupo Delírio Cia. de Teatro (que apresentou este ano aqui no estado, dentro da programação do Palco Giratório, a peça O evangelho segundo São Mateus) e Heróis – O caminho do vento, do grupo Cena, de Brasília, com direção de Guilherme Reis. Essa última, mostra três ex-combatentes de guerra hoje vivendo no asilo; e tem elenco afiado: Chico Sant’Anna, João Antônio e William Ferreira.

R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida. Foto: Sérgio Baia

Até o fim dessa semana devem ser divulgados os espetáculos internacionais que vão compor a programação. O Janeiro foi, aliás, contemplado pelo Programa Iberescena, que fomenta intercâmbio entre países iberoamericanos. “Somente o Janeiro e o Cena Contemporânea, de Brasília, ganharam”, confirma Paula. No início do ano, o evento entrou para o Núcleo de festivais internacionais do Brasil, formado por São José do Rio Preto, Londrina, Bahia, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília.

A mostra ainda terá shows, projetos sociais, seminários, palestras e vai acontecer também em Olinda e Caruaru. O maior objetivo do Janeiro de Grandes Espetáculos é dar visibilidade à produção cênica local. Tanto que a programação dos espetáculos locais foi divulgada no último dia 6. Entre os adultos, Essa febre que não passa, do Coletivo Angu de Teatro; e O canto de Gregório, do grupo Magiluth.

Programação de teatro e dança nacional

Teatro de Santa Isabel
(Praça da República, s/n, Santo Antônio. Tel. 3355-3322)

ABERTURA
Dias 11 e 12 de janeiro (quarta e quinta), às 20h, R$ 10
As Três Velhas (Teatro Pândega – São Paulo/SP)

Dias 17 e 18 de janeiro (terça e quarta), às 20h30, R$ 10
R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida (Turbilhão de Ideias, Cultura e Entretenimento – Rio de Janeiro/RJ)

Dia 24 de janeiro (terça), às 20h, R$ 10
Dolores (Ronaldo Negromonte Produções – Natal/RN)
Direção: Diana Fontes. Com trilha sonora ao vivo.

Dias 28 e 29 de janeiro (sábado e domingo), respectivamente às 21h e 19h
A Mulher Sem Pecado (Cia. Arlecchino de Teatro – Belo Horizonte/MG)

Teatro Hermilo Borba Filho
(Av Martin Luther King, Bairro do Recife. Fones: 3355-3319)

Dias 16 e 17 de janeiro (segunda e terça), às 19h, R$ 10
Metamorfose Leminski – Reflexões de Um Herói Que Não Quer Virar Pedra (Grupo Delírio Cia. de Teatro – Curitiba/PR)

Dias 23 e 24 de janeiro (segunda e terça), às 19h, R$ 10
Heróis – O Caminho do Vento (Grupo Cena – Brasília/DF)

Teatro Marco Camarotti
Sesc de Santo Amaro
(Rua Treze de Maio, 455, Santo Amaro. Tel. 3216-1728)

Dias 12 e 13 de janeiro (quinta e sexta), às 19h, R$ 10
9 Mentiras Sobre a Verdade (Cia. Teatro Líquido – Porto Alegre/RS)

Teatro Barreto Júnior
(Rua Estudante Jeremias Bastos, s/n, Pina. Tel. 3355-6398)
Dia 26 de janeiro (quinta), às 20h30, R$ 10
Continue Reto, Sempre em Linha Reta! E Vai com Deus… (Grupo Camaleão – Belo Horizonte/MG)

Dias 28 e 29 de janeiro (sábado e domingo), às 20h30, R$ 10
Diálogos Sobre Nijinsky (Virtual Companhia de Dança – São José do Rio/SP)

Diálogos Sobre Nijinsky. Foto: Marcelo Zamora)

Teatro Luiz Mendonça
(Parque Dona Lindu – Av. Boa Viagem, s/n, Boa Viagem. Tel. 3355 9821)

Dias 13, 14 e 15 de janeiro (sexta a domingo), respectivamente às 21h, 21h e 20h, R$ 10 (preço único promocional)
Tango, Bolero e Cha Cha Cha (Brainstorming Entretenimento – Rio de Janeiro/RJ)

Programação de Rua em OlindaGratuito

Dia 21 de janeiro (sábado), em horário e local a confirmar

Flor de Macambira (Grupo Ser Tão Teatro – João Pessoa/PB)

Dias 28 e 29 de janeiro (sábado e domingo), às 16h, em local a confirmar
Horas Possíveis… Enquanto Seu Lobo Não Vem (Camaleão Grupo de Dança – Belo Horizonte/MG)

Heróis - O caminho do vento

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