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Teatro que ousa nomear o inominável
Crítica: Um Depoimento Real

José Neto Barbosa. Foto: Ivana Moura

O abuso infantil, esse assunto perverso só de pensar, constitui uma ferida social que insiste em sangrar no silêncio. Essa violência encontra terreno fértil na negação coletiva, no olhar que se desvia, na palavra que não se pronuncia. É preciso reconhecer nessa barbárie a mais cruel das traições: a quebra do pacto de proteção à infância, daquilo que deveria ser inviolável na condição humana, o compromisso ético fundamental de uma geração com a seguinte. Essa violência não escolhe endereços – ela se instala tanto nos casarões quanto nos apartamentos de classe média e nas favelas, atravessa todas as geografias humanas e deixa rastros que se estendem por gerações inteiras. Diante dessa realidade, questiono-me sobre o papel que nós, como sociedade, desempenhamos nesse silenciamento.

Diante da magnitude desse silenciamento, surge a urgência de encontrar linguagens capazes de romper com a omissão coletiva. As três apresentações do espetáculo em andamento Um Depoimento Real realizadas no Recife, no formato de abertura de processo, revelam dimensões inesperadas sobre como as artes cênicas podem enfrentar temáticas tão delicadas. Tratando-se de uma abertura de processo, o trabalho está destinado a ganhar outras dimensões e aprofundamentos em suas próximas etapas de desenvolvimento.

A proposta dramatúrgica de Paola Traczuk, concretizada na direção de Monina Bonelli e na interpretação de José Neto Barbosa, configura uma aliança artística que se recusa a oferecer respostas ligeiras ou consolações fáceis. O texto original Los Titanes – título que, para mim, carrega em espanhol uma força épica e irônica muito mais impactante que sua versão em português – apresenta um menino de oito anos que parece estar numa sala à espera da psicóloga ou da mãe e conversa com seu cão Titã, elevando-o àquela categoria mágica de companheiros que a infância cria: seres que habitam a fronteira entre o real e o imaginário, depositários de nossa mais absoluta confiança, guardiões dos segredos que nem sempre conseguimos nomear. 

Na dramaturgia, o menino cita “os caras” das mitologias grega e romana – aqueles que comem os filhos, Cronos numa tradição, Saturno em outra. A encenação explora deliberadamente alguma confusão conceitual da criança, que mistura referências mitológicas com narrativas contemporâneas dos jogos, gibis, livros, séries e filmes. Traczuk utiliza essa estratégia dramatúrgica para revelar como a criança tenta dar sentido ao incompreensível através das ferramentas culturais fragmentárias que possui, criando uma linguagem híbrida e truncada para nomear o horror que não deveria existir em seu universo. O teatro aqui convoca a própria condição infantil diante do trauma: a busca desesperada por referências que ajudem a processar o improcessável.

José Neto Barbosa constrói uma atuação calcada na delicadeza. Permanecendo a maior parte do tempo sentado, o ator utiliza microfone para ecoar a intimidade de uma conversa entre criança e seu confidente animal. Do seu lado esquerdo, um cavalete sustenta folhas de papel que são viradas conforme o desenvolvimento da narrativa, numa gestualidade que remete tanto ao ambiente escolar quanto ao consultório psicológico. O ator assume múltiplas funções técnicas, controlando ele mesmo a luz e o som, numa escolha que intensifica a solidão da criança e a autonomia precária que ela precisa desenvolver. O cachorro caramelo permanece embaixo da mesa, presença silenciosa que, segundo indicações da direção, será mais acessada e desenvolvida nas próximas etapas do processo.

A direção é da argentina Monina Bonelli. Foto: Ivana Moura

A direção de Monina Bonelli provoca regiões sensíveis para acessar a inocência sem perder a maturidade reflexiva que o tema exige. Sob sua orientação, Barbosa evita a armadilha da infantilização caricatural, emprestando elementos genuínos do universo infantil – gestos, ritmos, descobertas linguísticas – sem cair no estereótipo piegas. Essa escolha interpretativa confere autoridade ética à narrativa: não é um adulto simulando ser criança, mas um artista que compreende as camadas de complexidade necessárias para expressar aqueles que foram silenciados. Bonelli orquestra uma encenação onde cada elemento técnico – desde o posicionamento do ator até o controle autônomo de luz e som – serve à narrativa central: a solidão de uma criança que precisa encontrar suas próprias estratégias de sobrevivência.

Interessante notar que a encenação escolheu transformar o golden retriever do texto original num vira-lata caramelo – escolha que, por si só, carrega simbolismo social e afetivo específico do contexto brasileiro. O cão representa o confidente ideal: aquele que escuta sem julgar, que oferece presença sem exigir explicações, que aceita a criança exatamente como ela é, sem a performance social que os adultos frequentemente demandam.

Essa atenção aos detalhes simbólicos revela como as criações artísticas se enriquecem quando conseguem traduzir questões universais através de linguagens locais específicas. A dramaturgia de Los Titanes foi desenvolvida dentro do projeto Bombón Gesell, curado por Monina Bonelli, diretora do Teatro Bombón de Buenos Aires. Em 2022, durante o Festival Reside de Paula de Renor e Celso Curi, foi realizada uma leitura do texto com José Neto Barbosa, momento em que Monina se tornou parceira do Festival Reside. O projeto Bombón Gesell propõe uma reflexão profunda sobre os dispositivos de observação na sociedade contemporânea, utilizando a câmara de Gesell – espaço usado na psicologia para observação clínica através de vidro unidirecional – tanto como metáfora quanto como estrutura dramatúrgica.

Bonelli compreende que vivemos numa sociedade de vigilância constante, onde somos simultaneamente observadores e observados, numa dinâmica que ecoa os mecanismos de poder que permitem e perpetuam violências como o abuso infantil. Sua trajetória no Teatro Bombón, iniciada em 2014, consolidou uma metodologia de criação que privilegia espaços não convencionais e temáticas socialmente urgentes, desenvolvendo uma estética da proximidade perigosa – aquela que nos coloca face a face com aquilo que preferíamos manter distante.

A experiência da primeira apresentação revelou algo extraordinário sobre o poder transformador do teatro: o clima de confiança estabelecido foi tamanho que algumas pessoas da plateia compartilharam seus próprios traumas de infância durante o debate. Esse fenômeno demonstra como o teatro pode funcionar como espaço de elaboração coletiva, onde traumas individuais encontram possibilidade de partilha através da experiência compartilhada. A presença da psicóloga mediando esses momentos não é apenas protocolo de segurança, mas reconhecimento de que abordar o abuso infantil através da arte exige responsabilidade clínica e ética.

A colaboração entre Bonelli e a S.E.M. Cia. de Teatro concretiza um projeto de circulação que potencializa o alcance social da obra. Enquanto a companhia brasileira, com seus 13 anos de arte militante, oferece conhecimento sobre o público nacional, Bonelli contribui com metodologia de criação e reflexão teórica desenvolvidas em mais de uma década de experimentos cênicos. Essa colaboração se configura como resistência estética contra a globalização do silêncio sobre violências estruturais.

A dramaturgia de Los Titanes funciona através de uma poética da sugestão onde o horror se insinua sem se explicitar. Traczuk constrói uma narrativa que se desenvolve em múltiplas camadas: algumas acessíveis ao público geral, outras que se revelam apenas para aqueles que conhecem intimamente a realidade do abuso. Essa arquitetura textual permite que a peça dialogue simultaneamente com diferentes públicos, criando conexões empáticas sem explorar voyeuristicamente a dor alheia. A escolha de um cachorro como confidente da criança oferece algumas dicas: numa sociedade onde adultos falharam em oferecer proteção, onde instituições se mostraram omissas e onde o silêncio se tornou regra, o animal pode manter a pureza da escuta incondicional.

Um Depoimento Real nos convida a pensar sobre aquilo que a filosofia crítica já apontou: a necessidade de reconhecer as contradições sociais, sem acreditar em reconciliações que apaziguem prematuramente nossa consciência. O espetáculo se recusa a oferecer catarse consoladora ou final redentor, exibindo as feridas abertas que a sociedade produz. Essa escolha estética e ética aposta que arte verdadeiramente crítica deve resistir à tentação de transformar o horror em espetáculo consumível. A peça mantém as tensões irresolvidas – a inocência violentada, o silêncio cúmplice, as instituições falhas –, recusando-se a domesticar o trauma em narrativas que tranquilizem a audiência.

A necessidade da arte não se fundamenta em alguma capacidade de curar, conceito que pode soar ingênuo, mas em sua potência de despertar consciências adormecidas pela naturalização da barbárie. O teatro, neste caso, não promete cura, mas oferece algo valioso: a possibilidade de romper o silêncio que protege os algozes e abandona as vítimas. A arte se torna, assim, não consolação, mas inquietação necessária – uma força que mantém as feridas abertas para que não se esqueçam, para que não se naturalizem, para que as contradições da sociedade permaneçam visíveis e incontornáveis.

 

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