Arquivo da tag: Palco Giratório

Quiprocó não convence

Fabiano Manhães, Erika Rettl e André Marcos

As matérias que lemos sobre o espetáculo Quipropó, do Grupo Teatral Moitará do Rio de Janeiro (com direção de Venício Fonseca, roteiro, texto e produção do próprio Moitará), dão conta de que é uma montagem lúdica, de espírito festivo e com a força da tradição do povo brasileiro.

Bem, não enxerguei nada disso na encenação carioca, na sessão apresentada na última quinta-feira, dentro do Palco Giratório.

A montagem até que cria uma expectativa quando os três atores/músicos adentram o teatro pela plateia tocando seus instrumentos. As roupas coloridas e os chapéus, que remetem a algum folguedo popular, tentaram despertar o brincante que existe em mim…

Mas a expectativa se transforma em decepção já nos primeiros minutos da peça.

Os proclamados arquétipos da Commedia dell’Arte se concretizam nas máscara. Mas não passam muito disso.

Personagens Dentinho, Pulti e Mirola

É a ingênua história dos três personagens que buscam garantir seus desejos e sobreviver. E para isso utilizam um jogo de quiprocós, ou confusões. Dentinho (Fabiano Manhães) – um arremedo de Mateus, João Grilo ou de Chicó – tem fome de alimentos. Mirola (Erika Rettl) está louca para arranjar um marido e faz qualquer negócio para isso, inclusive um bolo para o primeiro miserável que passar pedindo comida ou punir Santo Antonio. Pulti (André Marcos), o terceiro elemento, quer passar a perna nos dois.

Não adiante nos determos nos estereótipos ou na visão anacrônica e deslocada da mulher, em rincões de um Brasil antigo (que espero que não existam mais).

O problema é que o espetáculo não cumpre a promessa da celebração com as festas populares e seus espertos personagens.

Primeiro, a montagem esbarra na dicção dos atores. Talvez a utilização das máscaras impeça uma melhor articulação, mas a verdade é que não deu para entender o que eles diziam.

Perdendo esse ponto de comunicação, o segundo vai na esteira.

É verdade que o elenco tem um jogo de corpo bom, principalmente Erika Rettl. Um repertório de gestos interessantes isoladamente, mas há um ritmo nervoso em demasia, que cria um estresse na plateia.

Acho que a dramaturgia deveria ser revista. Ela é pobre e confusa.

Sabemos que o grupo é pioneiro na pesquisa de máscaras no Brasil, da confecção até sua utilização. E que o artefato é uma peça-chave no teatro do coletivo.

Máscara é o trunfo da encenação

Lógico que a pesquisa do Moitará com o uso de máscaras no teatro já rendeu à trupe autoridade para vários investimentos no setor pedagógico e teatral. O que pode ser conferido no site da trupe (www.grupomoitara.com.br). Mas como espetáculo não é suficiente.

Não gostei e pela reação da plateia que compareceu ao Teatro Barreto Júnior, desagradou a outros também.

Postado com as tags: , , , , , ,

Palhaços – O reverso do espelho em imagens

Estreia de Palhaços – O reverso do espelho. Sexta-feira, 13 de maio de 2011.

Sóstenes Vidal e Williams Sant`Anna

Palhaços foi escrito em 1974 pelo dramaturgo paulista Timochenco Wehbi.

A direção é de Célio Pontes e a produção de Socorro Raposo

Palhaços faz questionamentos sobre o que é ser artista

Postado com as tags: , , , , , , , , ,

O picadeiro da vida real

Palhaços - O reverso do espelho. Foto: Célio Pontes

Quando criança, ele queria ser artista. Fugir com o circo. No silêncio da madrugada, ia saindo de mansinho. Mas o pai e a sua vara de marmelo o impediram. Tirou essas criancices da cabeça. Cresceu. E virou vendedor de uma loja de sapatos que sonha em ser gerente.

Agora, só vai ao circo se divertir com as brincadeiras do palhaço quando está com a “cabeça cheia”. É esse o personagem do ator Sóstenes Vidal na peça Palhaços – O reverso do espelho, que estreia hoje, às 21h, em única apresentação, no Teatro Barreto Júnior. A montagem está na programação do festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc.

Sóstenes contracena com Williams Sant`Anna, um palhaço que faz questionamentos sobre o que é ser artista e a validade das escolhas que fazemos ao longo do tempo. A direção é de Célio Pontes (essa é a sua primeira direção profissional) e o texto, inédito no Recife, foi escrito em 1974 por um dramaturgo paulista com nome que parece russo: Timochenco Wehbi.

“O texto foi uma grande resposta. Era realmente o que queríamos falar, discutir. O autor carrega nas cores, mas trata da dualidade entre o artista e a “pessoa comum”, explica Célio Pontes. Não é a primeira vez que atores e diretor trabalham juntos. Aliás, muito pelo contrário. Os três estão em cena no espetáculo Auto da Compadecida, que está em cartaz há 19 anos. Sant’Anna é Chicó; Vidal, João Grilo; e Pontes faz Severino do Aracaju.

Quando deixam o teatro, cada um deles tem um papel” na vida real: dois deles são gestores públicos e Sóstenes Vidal é corretor de seguros. “É um pouco do questionamento que fazemos sobre as nossas próprias escolhas. Uma mistura de discussão sobre sobrevivência e arte”, avalia Vidal.

“A gente tem muita afinidade no palco. E Auto da Compadecida, por mais que tenha circulado pelo país inteiro, é mais complicado para viajar, são 25 pessoas. Agora, temos uma produção mais enxuta, intimista e experimentando outro estilo, o psicodrama”, avalia Sant’Anna. Ao mesmo tempo em que discutimos nossas escolhas, estamos fazendo um teatro como antigamente, sem recursos públicos, mas com envolvimento. Uma peça que pretendemos que tenha carreira longa e não que o elenco seja dissolvido depois de algumas encenações”, diz Pontes.

A montagem faz única apresentação no Recife e depois deve ser mostrada noutros lugares do país, aproveitando que Sóstenes Vidal deve gravar nos próximos meses uma série para a HBO no Rio de Janeiro.

Serviço:

Palhaços – O reverso do espelho
Quando: hoje, às 21h
Onde: Teatro Barreto Júnior (Rua Estudante Jeremias Bastos, s/n, Pina)
Quanto: R$ 10 e R$ 5
Informações: (81) 3355-6398

Postado com as tags: , , , , , , , ,

Concerto poético

Dinho Lima e Flor

“Poeta, cantô de rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o Sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisá
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá”

A Rádio Caldeirão fez ontem, no Teatro Marco Camarotti, no bairro de Santo Amaro, uma conexão São Paulo -Recife – Assaré. E saiu levando nesse caminho a poesia, a experiência, as histórias, o lirismo que não têm região geográfica; que têm raiz, mas não amarras: tanto que podem ser transmitidos a partir do teatro. Foi isso que fez a Cia do Tijolo com o espetáculo Concerto de Ispinho e fulô, uma homenagem ao poeta cearense Patativa do Assaré. Transformou cena em poesia, dor e amor em cantoria, vivências pessoais em universais.

O objetivo aqui não era apresentar uma biografia, mas colocar o público em contato com uma obra, com o universo do Sertão, com a crítica social ferrenha feita por um homem que nunca deixou o seu lugar de origem. Para isso, elementos vão se cruzando.

Primeiro, decidiram pelo musical, o que parece inevitável quando, por exemplo, Karen Menati, uma das atrizes, começa a cantar lindamente. Depois, saíram reunindo peças como num quebra-cabeças: uma rádio que toca as músicas e celebra o poeta; um grupo de atores que saí de São Paulo em busca de um encontro com Patativa; a visão do estrangeiro na terra que não é sua; uma massacre de civis que não foi registrado nos livros de história; a celebração; a “sem-vergonhice” faceira e encantadora.

“Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do Sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhecê bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem”

“Eu não posso lhe invejá
Nem você invejá eu,
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem”.

A montagem parece que mostra a que veio realmente, capturando de vez o público, a partir da viagem que o grupo de atores faz de São Paulo até Assaré – de carro, numa divertida solução cênica. Quando chegam, o primeiro impulso é colocar aquele homem num pedestal; quando percebem – e a montagem é sincera e acerta nisso -, que é muito mais fácil dialogar quando se olha de igual para igual. O embate entre os atores Dinho Lima Flor, que faz o Patativa, e Rodrigo Mercadante, o ator que queria conhecer o poeta, é um dos momentos mais bonitos e desafiantes do espetáculo. Quando a poesia modernista de Drummond, Bilac, conversa com a poesia simples, mas profunda, com métrica e rima, do Sertão cearense.

Espetáculo foi exibido no Teatro Marco Carmarotti, no Recife

A companhia consegue também, na própria encenação, dissolver a questão sobre se seriam capazes – já que vindos de vários lugares do país – de falar de uma coisa que não viveram. Percebe-se que era uma dúvida mesmo do grupo, que foi levada e resolvida em cena, durante o processo de montagem. Não precisavam ter vivido a seca que deixa o chão esturricado; aliás, o que é seca para cada um de nós? É dessa forma que teatro, invenção, a discussão sobre o fazer teatral, e vida real são costurados. É assim que uma das atrizes conta que é de Maringá; e que todos lá vivem na “zona”, já que não existe bairro, e sim, zona; que já fazia teatro quando morava lá e que participou de uma pesquisa para perguntar qual a programação cultural preferida na cidade. A resposta foi “churrasco”! Ou Dinho Lima Flor fala de Tacaimbó, no interior de Pernambuco, da sua praça… e convida todos a cantarem: “Só deixo o meu Cariri, no último pau de arara”.

“Repare que deferença
Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça,
Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro mando,
Bem perfumado e sadio;
Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte
Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro,
Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro
Do mais bonito metá.
Eu que não posso com isso,
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado,
Boa pedra e bom fuzí”.

A celebração ganha cheiro, gosto. Que pode ser de cachaça, cajuína ou café. Mas teatro sem conflito, não é teatro! E ainda faltava resgatar o massacre do Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que vivia como uma espécie de Canudos, tendo a frente o beato José Lourenço, e foi aniquilado no governo de Getúlio Vargas, num ataque aéreo contra civis inocentes. Essas histórias vão se amalgamando à montagem, numa parede feita de vários tijolinhos que têm na perspicácia da direção de Rogério Tarifa, no talento de elenco e músicos, o seu cimento. Conseguindo levar ao palco poesia de maneira fluida, mas profunda; fazer rir as senhoras “coqueluxe”; ou cantar junto o poema e a canção.

Cenografia, iluminação e figurino compõem esse concerto de maneira acertada, às vezes numa balburdia completa; outras na ordem focada necessária ao embate de palavras. O elenco da montagem é formado por Dinho Lima Flor, Lílian de Lima, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti e Thaís Pimpão; já o grupo de músicos – numa trilha que tem Patativa, mas também Gonzagão, Jackson do Pandeiro e ainda composições próprias, numa seleção que privilegia sempre a poesia – é composto por Jonathan Silva, Aloísio Oliver e Maurício Damasceno.

“Aqui findo esta verdade
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu Sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve tomá.
Por favô, não mexa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá”.

(Trechos de Cante lá, que eu canto cá, de Patativa do Assaré)

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Essa febre contagia

Ceronha Pontes e Hermila Guedes. Fotos: Ivana Moura

À primeira vista, o que liga os quadros de Essa febre que não passa são as tensões de mulheres em acertos de contas com o passado, com o presente e com o futuro. Criaturas em situações-limite, transbordando de afetos.

É a quarta montagem do Coletivo Angu de Teatro, depois de Angu de sangue, texto de Marcelino Freire; Ópera, texto de Newton Moreno e Rasif – Mar que arrebenta, também texto de Freire. Desta vez cena é ocupada só por mulheres.

As atrizes Ceronha Pontes, Hermila Guedes, Hilda Torres, Márcia Cruz, Mayra Waquim e Nínive Caldas se desdobram em criaturas inventadas pela jornalista e escritora Luce Pereira.

O resultado é tocante, ora suave, ora irônico, ora cortante. Sempre belo.

Dos 17 contos que compõem o livro homônimo, o Coletivo escolheu cinco para encenar: Clóvis, Nomes, Talvez já fosse tarde, Um tango com Frida Kahlo e Dora descompassada. Entre eles como uma liga orgânica, as passagens com breves depoimentos criados pelas próprias atrizes, sobre suas vidas pessoais: a relação com a irmã, com a velhice, com o mundo.

Essa febre que não passa tem uma comunicação fácil e contagiante. Tira o prosaico do cotidiano e nos fala de coisas muito caras que podem atingir a qualquer um, como dores de amores e separações. Os recalques voltam furiosos ou apaziguados com o tempo, mas não com o esquecimento. As feridas reabertas fazem tremer o corpo visível e o invisível também.

A montagem do Angu insiste em algumas características investigativas do coletivo, com o ator-narrador. Mas traz algumas variações, tem uma tonalidade mais feminina, às vezes mais frágil noutras de uma fortaleza insondável.

Os contos de Luce Pereira já expõem os nervos das personagens. E cativam na sua aparente simplicidade para falar do fim de relacionamento entre duas mulheres (e que poderiam ser quaisquer dois), com sua curva que vai da empolgação pelo desejo do duradouro no início à desatenção com as pequenas coisas, tempos depois. Clóvis como promessa de felicidade salienta na chegada sinais de desgaste da relação.

Noutro, a personagem se debate contra seu próprio nome, como se fosse um ferro de marcar gado, condenatório. Nomes para ela definem tudo. E essa figura com manias de grandeza adora os bonitos. Com criativas frases de efeito, um humor irônico e uma pontinha de crítica social, a autora vai alinhavando a vida dos vizinhos, do prédio, do bairro.

Mayra Waquim na cena Nomes

Dívidas de afeto com uma tia pouco afeita a carinhos são contabilizadas no conto Talvez já fosse tarde. É o mais duro, mais triste, mais cortante dos textos escolhidos para a montagem. E vai crescendo numa onda em que autocondenação é confessada pelo bem que deixamos de fazer aos nossos queridos. Como a negação de um beijo, abraço ou coisa parecida.

Marcia Cruz e Hilda Torres no quadro Talvez já fosse tarde

Um café com a irmã e a explosão de memórias, do desejo de crescer que não passou quando acabou a adolescência. As reminiscências compartilhadas com a mana que nunca a entendeu perfeitamente. E entre incompreensões de uma e as revelações da outra a vontade de partir. “Queria ter a alma de Frida Khalo, expulsar cores, escancarar porões, viver todas as minhas heresias sem culpa, não fazer maldades com rapazes e misses”. Elas riem por um momento cúmplices com histórias de crueldade. A ironia fina se instala.

Ceronha Pontes e Mayra Waquim em Um tango com Frida Kahlo

No conto que fecha o espetáculo, Dora descompassada, o desespero, a dor, o desânimo, são maiores que a vontade de prosseguir o caminho sozinha. Quando descobriu que eles -enquanto casal – já não se pertenciam, ela faz um balanço da relação e não suporta a perspectiva de futuro. Desistir de tudo no fim de ano traz uma carga dramática para abrir as feridas não cicatrizadas do público.

Enfim, um punhado de contos que percorrem estados de espírito. Pode predominar uma melancolia, mas todos inquietam e fazem pulsar vida em suas múltiplas possibilidades. De que é possível seguir em frente, de superação, de renúncia.

Esse material textual foi respeitado e valorizado na cena dirigida por André Brasileiro e Marcondes Lima. Os outros três espetáculos do grupo, dirigidos por Marcondes, são mais masculinos. Essa febre tem um tônus mais feminino.

Além das atrizes Ceronha Pontes, Hermila Guedes, Hilda Torres, Márcia Cruz, Mayra Waquim e Nínive Caldas, está em cena a violoncelista Josi Guimarães, que integra a cena e faz de seu instrumento, seu amado.

Cortinas compõem o cenário, representando camadas, ora revelando, ora escondendo, ora abrindo em fendas para essas mulheres contarem suas histórias.

Feito ninfas elas aparecem despindo-se ou recompondo-se para anunciar as personagens que estão por vir.

Ceronha Pontes, Hermila Guedes protagonizam o casal de Clóvis, o gato. Duas fortes atrizes explorando a cumplicidade de amor, seus recônditos insondáveis, num arco que vai da alegria, da euforia do encontro ao à tristeza da separação. Feito um bailado esse percurso é desenhado com beleza, num jogo lúdico de amorosidades que vão se diluindo. O treinamento no chamado método Viewpoints, ministrado pela paulista Amanda Lira como certeza deu sustentação para o trabalho físico.

Quadro Clovis questiona como manter acesa a chama da paixão

Nesse quadro, a promessa de felicidade já desmoronou quando o bichano é convidado a entrar. A representação do gato é bem resolvida. Hilda Torres faz o primeiro gato, o do pesadelo. E Nínive Caldas faz Clóvis lindamente, dengoso, esperto, cúmplice, mas acima de tudo felino.

Mayra Waquim faz a artista plástica que errou no nome desde o nascimento e prossegue nas suas escolhas erradas e na inveja por nomes bonitos. Na frente da televisão fazendo ginástica, ou pintando seus quadros que não vendem mais nem na feirinha, ela desfia suas mágoas, pela imensa falta de sorte desde o batismo. E sua ojeriza por coisa de gente pobre, ela mesma instalada no prédio decadente. Ela mostra domínio dessa personagem com sutilezas de detalhes. Como fazem todas as atrizes em algum momento do espetáculo.

Mayra Waquim no papel da artista plástica

Marcia Cruz incorpora não apenas uma velha, mas toda a velhice do mundo, de quem foi perdendo tudo e agora vive agregada na família da irmã. Hilda Torres faz a sobrinha que narra a história de Bernarda e de sua inabilidade com os afagos. Ela só consegue traduzir os gestos amorosos nas lembranças de datas e em qualquer mimo para os sobrinhos e sobrinhos-netos e quem mais vier. Talvez já fosse tarde dá um nó na garganta em sua poesia delicada para expor caminhos de negações, de economias de afeto, de interdições de amor.

Márcia Cruz, como Bernarda, ao fundo, e Hilda Torres

Em Um tango com Frida Kahlo Ceronha Pontes volta à cena para se digladiar com Mayra Waquim, esta no papel de Sofia. “Mas como é que pode, dois pares de olhos nascidos do mesmo pai e da mesma mãe, olhar na mesma direção e ver coisas tão diferentes?”, pergunta a atriz-narradora. Nas reminiscências, quase uma vida inteira, entre crueldades com rapazes e misses e a incompreensão da irmã.

O encontro pulsa de vida, transbordante desde o primeiro cigarro aos 14 anos, do conselho do professor Otaviano Cruz para que partisse quando a asa botasse a última pena. A narradora fala. Sofia ouve sem dizer palavras. O tom muda de acordo com as lembranças. E elas dançam belamente um tango.

Acerto de contas entre irmãs

Uma dor de amor pode ser fatal. Dora descompassada anuncia isso tristemente. Hermila Guedes faz essa mulher desesperada que ainda brinca de aparências de fortaleza e dignidade. O homem que se foi é representado por um par de sapatos. As outras atrizes compõem a cena. Uma banheira branca é instalada no meio do palco e define um quadro belíssimo de Dora na banheira tentando afogar as dores.

Hermila Guedes, em primeiro plano, interpreta Dora descompassada

A direção foi muito feliz ao criar pequenos monólogos de passagem com depoimentos das atrizes sobre algo que tenha a ver com um dos contos. A montagem também forjou uma ligação entre personagens, mudando nomes, e fazendo referências a outras histórias.

A trilha sonora e direção musical são de Henrique Macedo que ajudar a expandir ou comprimir os tempos e dar as atmosferas dos contos.

Como nos espetáculos anteriores, as projeções são grandes aliadas da montagem, estabelecendo fortes ligações com o cinema e a memória. Essa memória é salientada por fotos “reais” das atrizes e de outras pessoas da equipe de momentos importantes de suas vidas. Esse trabalho está associado a luz que salienta as camadas dessas histórias e dessas mulheres.
Os figurinos trazem uma tonalidade pastel que às vezes incomoda nesse apagamento que dá as personagens.

No fundo Essa febre que não passa é um espetáculo sobre o amor, o amor idealizado que não tem correspondência na vida e precisa da morte, desse perigoso, frágil e obscuro sentimento que nos move ou imobiliza.

A encenação é toda feita de cuidados e detalhes que o espectador vai descobrindo aos poucos. E encantando-se cada vez mais.

Parabéns a todos os envolvidos com essa febre. Muito boa a estreia na direção de André Brasileiro, com seu olhar que capta as belezas e num transbordamento ou numa repetição desesperadora como faz Dora ao ouvir ad infinitum My way como Frank Sinatra.

O elenco afinado, talentoso e competente fertiliza a cena com emoção.

Espetáculo fica em cartaz aos sábados e domingos


Serviço:
Essa febre que não passa, do Coletivo Angu de Teatro
Quando: temporada aos sábados, às 21h e domingos, às 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife)
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,