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Críticas: Gólgota Picnic

Cenário teve 25 mil pães de hambúrguer. Foto: Lígia Jardim

Cenário teve 25 mil pães de hambúrguer. Foto: Lígia Jardim

As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota
Por Pollyanna Diniz – Satisfeita, Yolanda?

Introdução
É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp.

Público caído
O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo?

Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos.

Toma que o calvário é teu
As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público.

O pão espetacularizado
É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento símbolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo.

O corpo coberto por tintas e significados
As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo.

A calmaria da redenção?
Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatro.

Montagem tem direção de Rodrigo Garcia, argentino radicado na Espanha

Montagem tem direção de Rodrigo Garcia, argentino radicado na Espanha

Pão e tinta
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica

Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.

Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.

A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.

Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.

A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.

Pianista tocou As 7 últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn

Pianista tocou As 7 últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn

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Críticas: Anti-Prometeu

Anti-Prometeu propunha jogo a partir de comandos de som e voz. Foto: Marlon Marinho

Anti-Prometeu propunha jogo a partir de comandos de som e voz. Foto: Marlon Marinho

Eu não desejei fogo algum
Por Ana Carolina Marinho – Antro Positivo

Antes que o desejo surja, Prometeu o satisfaz. Ele subverte a lógica da bondade e desloca o sujeito para a gratidão. E todos nós o saudamos, afinal, sua teimosia é inspiradora e, como visionário, ele entrega a nós o fogo e a bem-aventurança. Dizem de Prometeu como o herói civilizador, e ele se afirma em seu gesto – é que o fogo iluminou a arte, a cultura e o pensamento e somos gratos, então. Mas é preciso atentar-se, não existe nenhum virtuosismo em roubar o fogo e entregar à humanidade. Desconfio dos que assim insistem. Nem existe humanidade, o que existem são homens. É preciso discorrer sobre essa lógica de um deus que entende a entrega do fogo como um ato de amor e duvidar desse ato como sacrifício, pois proponho que talvez resida ai uma cruel compaixão. E assim começo a dizer da força que me arrebata em Anti-Prometeu, do Studio Oyunculari.

Não seja Anti-Prometeu uma ode ao deus, um retorno a sua teimosia primeira, um arauto ao sacrifício, mas uma tomada de consciência do fogo também como um elemento coercitivo. Satisfazer o desejo antes que ele surja é também reflexo de uma perversidade colonizadora, de uma cruel compaixão. Prometeu impôs a necessidade da luz e a concepção de escuridão ao homem. Como tirar isso das costas? O fardo de Prometeu é pesado e inútil e sou obrigado a carregar, começo até a me acostumar, mas os joelhos e a coluna sentem. Posso tirar isso das costas? O pensamento retarda e fragmenta-se com o corpo oprimido, sou domesticada. O fogo de Prometeu é uma espécie de obstinação intrusa, uma voz em off que deseja a minha reação. Preciso reagir, afinal, Prometeu agiu para mim – ou contra mim? Diante do breu, silencio. Diante do fogo, me queimo. É que o deus o entregou e foi embora, levou as cartilhas, os dizeres e os quereres. Deixou-nos apenas com o legado: isso é preciso pra vocês mortais, afinal é indispensável a nós deuses.

Prometeu sempre foi, pra mim, o símbolo da atitude incansável e da longa obstinação em entregar à humanidade o que a ela faltava. Mas Şahika Tekand provoca esse desejo inculto pelo fogo. Como se devesse alterar os vetores dessa imagem prometeica, ao oferecer suporte para que o desejo surja antes que o deus o satisfaça – e suspeito que resida no desejo a capacidade de interferir no mundo! -, e um desconforto com a ideia de herói civilizador comum a Prometeu. Qualquer ideia de salvação é, por si mesma, um aniquilamento. É preciso alimentar o anti-Prometeu para, enfim, superar esse olhar apiedado de quem perversamente me desloca para a escuridão para, então, dizer-me que é preciso a luz. Há um tanto de crueldade nessa bondade que escapa aos olhos, mas não ao estômago. Se profanar é devolver o que está consagrado ao uso comum dos homens, como diz Giorgio Agamben, profanar é assumir a vida como jogo. E Anti-Prometeu é, portanto, um exercício de profanação, que nos afasta do domínio do mito e nos aproxima do rito e desse campo de tensões a que se insere o jogo – e aqui ele é rigoroso e bem orquestrado, em que os homens (atores) estão a serviço de Prometeu (luz, som e legenda), é ele quem dita as regras e quem começa e termina qualquer ação. A cena, com a potência do profano, é de uma intensidade arrebatadora. Ouvi, porém, que a muitos a legenda estava ofuscada e ilegível, o que torna parte dessa reflexão impraticável, já que o texto na cena é tensão indispensável para o desenrolar do jogo.

Anti-Prometeu é, pois, o jogo da profanação, que adensa a capacidade de interferir no mundo. Não há enobrecimento nenhum na atitude do deus. Não se pode valorar o fogo, pois retira dele sua potência primeira e o destina a uma exibição e posse espetaculares. Tekand provoca em mim essa desconfiança que atenta para uma ação abusiva, que desloca as forças da esperança para o desespero e isso diz um tanto das ações abusivas a que estamos inseridos no convívio. É preciso suspeitar, inclusive das boas ações.

Público teve muita dificuldade para acompanhar as legendas

Público teve muita dificuldade para acompanhar as legendas

Sem fígado e sem fogo
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica

Em Anti-Prometeu, espetáculo da encenadora Şahika Tekand, da Turquia, os atores se movimentam e falam alternada e simultaneamente, obedecendo a uma gramática regida pelos comandos de som e pela dinâmica do dispositivo cenográfico, uma espécie de tabuleiro de luz. Dividida em três partes, a dramaturgia apresenta diferentes momentos da lida destes jogadores-peões com as demandas impostas por estímulos externos. Em um ritmo vertiginoso, o jogo ganha cada vez mais intensidade, desafiando a prontidão dos corpos na cena e das mentes na plateia.

Como em qualquer jogo, as metas e regras fazem parte de um pacto estabelecido entre as partes. O que há de trágico no homem contemporâneo, como apresentado no espetáculo, é a impossibilidade de rever os termos do pacto: a cada jogada, ele faz o que pode. O ritmo da vida urbana atual não abre espaço para o questionamento das regras, muito menos para uma revisão das metas.

Uma questão interessante a ser pensada do ponto de vista da poética da cena é que o estatuto do texto também é parte do jogo. Na segunda parte, os atores começam a responder com movimentos combinados a estímulos sonoros específicos. Por exemplo: quando os participantes que ficam na mesa de som ao fundo do palco dizem “um”, o ator que está em um quadrado iluminado fica de pé; quando o comando é “dois”, ele se vira para a direita; quando é “três”, ele apoia um joelho no chão. São cerca de dez comandos sonoros que fazem cada ator deitar, ajoelhar, levantar e virar freneticamente. (O fato de estes participantes que emitem comandos estarem em um patamar mais elevado evidencia a verticalidade da relação hierárquica.)
Quando se acende o quadrado de luz sobre o qual o ator está, ele deve começar a falar, ao mesmo tempo em que obedece à movimentação. Assim a fala é articulada como movimento, como uma tarefa física, não apenas como instrumento para a expressão de um discurso. A verbalização é um esforço a mais no virtuosismo das atuações.

No entanto, o conteúdo da fala não é aleatório nem vazio; talvez seja até ilustrativo, na medida em que os atores comentam sua condição. Se não me engano, há em algum momento uma referência a Io (personagem da mitologia grega que enfrentou uma longa jornada de esforços e provações para reaver sua condição humana). Diante desse ponto, faz-se necessário pensar a legenda, um elemento que não faz parte do espetáculo na sua criação original, mas que passa a ser uma questão estética na situação de apresentação em um país de outra língua. A relação com o texto legendado é completamente diferente, porque exige do espectador um movimento que pode ser cansativo a ponto de levar a desistência. Se ele desiste da legenda, o texto passa a ser apenas uma consequência do movimento da fala, formando uma paisagem sonora abstrata – que não deixa de ter a sua graça.

A presença da legenda também exclui a possibilidade do espectador acreditar que, em alguma medida, o jogo acontece ao vivo, que os atores estão respondendo a comandos no calor da hora. A fala também poderia parecer fragmentada pelo jogo físico, mas a legenda revela que sua intermitência é prevista e ensaiada. Enfim, a legenda evidencia o fato de que se trata da representação de um jogo, não do acontecimento de um jogo performativo de fato.

Do ponto de vista temático, a peça nos lembra o quanto nossa vida cotidiana pode ser parecida com a situação daqueles corpos que apenas respondem a estímulos, agarrados às suas cadeiras-rochas. Como Prometeu, oferecemos nosso fígado aos abutres todos os dias. Mas sem ter feito nada parecido com apresentar o fogo à humanidade.

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Críticas: Bem vindo a casa

Espetáculo de grupo uruguaio é dividido em dois episódios. Foto: Lígia Jardim

Espetáculo de grupo uruguaio é dividido em dois episódios. Foto: Lígia Jardim

O convívio teatral em frente, verso e de permeio
Por Valmir Santos – Teatrojornal

A criação da companhia uruguaia Pequeño Teatro de Morondanga resplandece o todo em cada uma de suas partes. Somos convidados a acionar o espírito lúdico e cotejar os mínimos detalhes com a disponibilidade de um ourives. Há um engenhoso paroxismo de unidade nos sujeitos, cenas, objetos e espaços descentrados de Bem-vindo a casa (2012), composição de dois espetáculos umbilicais que pedem para ser vistos em sequência, episódios um e dois, por plateias e em horários distintos, ainda que plantados no mesmo lugar. Unidade porque impressiona como tudo funciona, até os tempos mortos pulsam na gangorra entre o que é e o que assim nos parece ser.

Estamos diante de uma experiência que elabora o convívio público-artista em seu sentido estrito, reflexão cara à arte contemporânea atenta às vicissitudes do viver junto. O princípio da coabitação vaza para as ruas, a comunidade. Palco abolido, a proximidade no espaço multiuso implica plateia aninhada com os atuadores no mesmo cômodo. Parede-meia, janela, persiana e portas induzem sonoridades e frestas do que poderia ocorrer simultaneamente do outro lado. Dentro e fora em contato: um achado de geografia cênica paulatinamente afetiva ao longo das duas sessões.

A dramaturgia coletiva e a direção de Roberto Suárez são lapidares na apropriação cinematográfica que as movem e no modo como não abrem mão da materialidade teatral, do inefável que está por trás dessa linguagem deliciosamente promíscua em sua sofisticação artesanal.

A inutileza que graça no nome do grupo – “morondanga” é uma expressão depreciativa em castelhano – condiz com a plataforma do precário da qual o projeto extrai beleza. É a vitória do remendo, da sujeira, do tosco e do avesso como solução formal bem sustentada. Transgressões sutis para dar luz ao efeito que não tem nada de especial e, uma vez exposto, torna-se singular e ancestral sem o menor conflito. O roteiro saúda o teatro dentro do teatro que Pirandello legou no início do século passado e a atmosfera de Lynch no filme O Homem Elefante (1980), baseado na história real de um cidadão britânico vítima de doença congênita. Dispensa-se, para tanto, projeções. O audiovisual está a serviço da palavra e das espacialidades físicas, sonoras, além da luz.

Deformações corporais e morais atravessam a dramaturgia do texto e da cena com lampejos do “esperpento” na literatura do espanhol Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), distorcendo da realidade os atalhos para o grotesco e o absurdo. Esmiuçar o díptico à guisa de sinopse empobreceria a jornada do espectador. O mistério é uma estratégia decisiva nos espetáculos complementares. O subtexto é mais importante do que a nesga de fábula.

O brasileiro decerto encontra um pouco de dificuldade em compreender o rasqueado de uma fala ou outra, porque a língua, espanhola ou alhures, também é macerada conforme o sofrimento e a alegria impressos. Há um travo nostálgico na celebração de uma despedida assimilada como eterno retorno: quem sabe o coração do teatro resida aí. Montar, desmontar. Fazer, desfazer, ensaiar. Fazer e desfazer melhor ainda.

A narrativa golpeia por meio de paisagens da alma, do ambiente e da memória. Apoia-se no estranhamento permanente e no carisma inconcessível transfigurado na presença de cada ator: uma sobrancelha erguida fisga com a mesma intensidade de uma canção a capela. Esses criadores emanam convicção apesar do aparente desalinho. A técnica desaparece. Sobressai uma poética vesga: o campo de recepção infiltrado pelo que é enigma, suspense, interdito, sub-reptício. Não fossem esses bravos atores, a epifania de Suárez jamais se cumpriria.

Segundo episódio dá uma guinada na montagem

Segundo episódio dá uma guinada na montagem

A realidade como fracasso possível
Por Ruy Filho – Antro Positivo

O teatro é um acontecimento presencial, disso sabemos. E o que é presenciado não é de fato a verdade de uma realidade, visto ser a construção de uma ação para oferecer ao outro uma experiência e/ou narrativa. Apenas uma ficção. Então, a realidade ali compreendida é, antes, uma convenção de sua exibição, um processo estético de apresentação de uma possibilidade escolhida para um determinado objetivo. Há, ainda, o teatro que se apoia no argumento de ser a representação de outra narrativa. O tal metateatro.
Aparentemente, é o que se poderia acreditar ser esse espetáculo. Contudo, Bem-vindo a casa, de Roberto Suárez, não pode ser compreendido nem como teatro nem metateatro. Apresentado em duas partes, subverte o sentido vetorial comum da realidade que se constrói ao espectador, ampliando o procedimento teatral ao ponto de tornar a ambiência ficcional a realidade em si. O que se encontra, portanto, não é apenas a teatralização de uma segunda narrativa, mas o fracasso do teatro compor a manifestação plena do real.

Também sabemos que o teatro se realiza sobretudo na presença humana, ainda que possamos discutir outras tantas qualidades de presença à cena. Mas, mesmo o signo que lhe serve de estímulo se coloca em reconhecimento na sua relação com o homem. Portanto, é nele, pelo espelhamento, maior ou menor identificação, que sua presença se consolida. Ocorre, no espetáculo, o mesmo procedimento em relação a presença. A perspectiva do fracasso se acumula ao desenvolvimento dos personagens, suas incapacidades, faltas e derrotas.

São criaturas que passam a ter desconfigurados os elementos mais ordinários de seus reconhecimentos. Corpos caricaturados pela escolha em potencializar mínimos aspectos, desejos igualmente vitimizados na limitação literal de suas vontades, consequências mínimas tornadas argumentos para derrotas plenas. Da mesma maneira que a cena revela o fracasso do real, os atores confirmam o sentimento também em relação ao humano.

Desta maneira, responder ao teatro de Suárez é buscar argumentos que possam dar conta de reencontrar um e outro, ou a complementariedade de ambos, já que muito da realidade constrói nosso entendimento de humanidade, e muito de nossa humanidade estabelece os preceitos de construção do real.

Compreender o fracasso em relação ao humano implica em determinar como ambos se relacionam. Afinal, é essencialmente o fracasso uma condição humana ou o fracasso é uma resposta que poderia ter sido evitada? Como expõe o espetáculo, ambas as questões são consequentes à impossibilidade da superarmos a realidade como sendo um estado de ficção. Não há como mudar o destino trágico ao homem, visto não ser sua a ação de construção da realidade, assim como não há como ser outro ao homem que não apenas humano. Mesmo no hibridismo simbólico e real oferecido ao personagem deformado, chamado por Homem Elefante, em uma clara alusão à distância fisiológica do reconhecido por padrão à aparência humana, a presença de sua singularidade se assume pela escolha em compreendê-lo por sua ficcionalização.

O teatro, então, já incapaz de traduzir a dimensão humana em sua realidade. Faz-se, no contemporâneo, a narrativa de estratégia de um real possível, e não mais sua exibição como uma segunda camada. Assim como ao espectador é revelada sua função e limite ficcional como existência em sua própria realidade.

Bem-vindo a casa convida a todos a visitarem uma família. E não só. O teatro desse existir familiar. E mais. Ao próprio teatro como possibilidade familiar. Mais ainda… Convida a cada um à descoberta incômoda e fundamental de que talvez estejamos todos em pleno delírio, enquanto dormimos com a cabeça respirando o gás que foge do forno, e a realidade se esvai feito o oxigênio que lentamente acaba. O teatro de Roberto Suárez serve como a chama do fósforo que explode e nos obriga, enfim, a acordar. Portanto, prenda sua respiração e prepare-se.

Elenco fez últimas apresentações do espetáculo, que deve sair de repertório

Elenco fez últimas apresentações do espetáculo, que deve sair de repertório

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Críticas: “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali

"Nós somos semelhantes a esses sapos". Foto: Lígia Jardim

“Nós somos semelhantes a esses sapos”. Foto: Lígia Jardim

Deslocamentos e ironias vitais
Por Ivana Moura – Satisfeita, Yolanda?

Um casal de noivos entra e dá uma volta em círculo no palco. Do lado direito, um grupo de músicos. Na segunda volta, ele coloca a mão no ombro dela e fala algo ao seu ouvido. Depois parece bêbado (da festa?). Mudam de posição, de ritmo. Outro homem com perna amputada e com muletas vai atrás. O barulho metálico das muletas grita. Depois de uma volta, ele pisa no vestido da noiva e congela. Continua o percurso. Pisa novamente no vestido dela e paralisa a cena, como numa fotografia. O homem das muletas chuta a mulher. Ela cai. E depois se agarra ao pescoço dele. É arrastada. Tenta se segurar a outras partes do corpo dele. Ele pula como sapo. Ela sobe no seu ombro.

Lembrei-me da canção O Quereres, de Caetano Veloso (“Ah! Bruta flor do querer / Ah! Bruta flor, bruta flor”). Esses desejos que se alternam, esses quereres em permanente deslocamento. Deslocamento, aliás, é uma chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que apresentou em seguida o duo Ali.

As andanças pelo palco, em círculos primeiramente e em muitos outros desenhos. O deslocamento do eixo gravitacional provocado pela falta de uma perna de Hedi Thabet e que se expande para os outros dois bailarinos. A provocação do deslocamento do olhar do espectador. E ainda a projeção dos deslocamentos migratórios mundiais e suas questões de identidades, também ressaltadas pelo repertório musical (melodias tradicionais tunisianas e gregas – rebetiko) e a ascendência dos artistas.

O corpo mutilado vai à luta. Subverte lógicas. Desafia o outro. A linguagem física é rica de significações. Alteridade: um e outro no fluxo do desejo por uma mesma mulher, alternância equilíbrio/desequilíbrio dos corpos, desafio às leis da gravidade. Acrobacias de tirar o fôlego. Esses “sapos” borram fronteiras. Saem dos eixos em seus giros. Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos e de dança contemporânea, “Nós somos…” explora a aventura de um triângulo amoroso plausível, que avança em oposições contraditórias no deslocamento do desejo.

Já em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois homens. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente. E o humor e a ironia permeiam os dois espetáculos. Mais grave em “Nós somos semelhantes…”, com suas ameaças de perda e mais vitalizante em Ali, com sua força e alegria de viver.

Companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi - leva três bailarinos ao palco

Companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi – leva três bailarinos ao palco

Corpos em infinita multiplicação e mutação
Por Soraya Belusi – Horizonte da Cena

Há algo de espanto em um primeiro momento. Sensação logo transformada em beleza a ser admirada. O que antes poderia soar como piedade cede lugar à comunhão, ao encontro com o outro, à celebração. A imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência, desviando o olhar da perda para a multiplicação dos corpos em cena. Juntos, performers e espectadores atravessam a fronteira da deficiência e da individualidade para chegarem ao território da eficiência só possível de ser alcançada na complementaridade. Movimento compartilhado entre todas as partes.

“Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, programa de dois espetáculos apresentado pela companhia Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (MPTA), da França, na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. O fato de um dos bailarinos ter perdido uma de suas pernas não é ignorado pelo trabalho (nem pelo público), mas também não é seu ponto principal ou final. É a partir desta ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos.

Tendo como ponto de partida um mote até mesmo banal, a relação de amor e ódio que cerca um triângulo amoroso, nasce uma dramaturgia corporal vigorosa, em que o arquétipo da perfeição do casal, em sua caminhada nupcial, é desestabilizada por um terceiro elemento, uma espécie de intruso que insiste em se fazer presente. Enquanto um a faz girar, o outro a faz flutuar, num jogo de oposição que os transforma assim em duplos complementares, que só se definem e existem na comparação com o outro.

Desestabilizar parece ser um verbo que permeia ambos os espetáculos: reverter expectativas, romper convenções, criar outros olhares ainda não experimentados para o que se entende por (e no) corpo.

Em Ali, o trio se desfaz e cede lugar a um dueto. Numa espécie de dança-duelo, Mathurin Bolze e Hedi Thabet se perseguem, se chocam, se debatem, se conectam, redescobrem seus próprios corpos. O que antes era falta, torna-se soma. A presença constante de uma ausência. Parte-se das muletas como apoio e suporte para transformá-las em trampolins para grandes saltos, como extensões dos próprios corpos, que, mais que objetos, tornam-se também matéria, corpo, carne, membro.
Uma perna a menos se transforma em várias pernas a mais, como num milagre da multiplicação ou uma brincadeira de criança. São partes de um todo que só se constitui na hibridização desses dos corpos performáticos que dividem a cena, num movimento constante de mutação de formas, imagens, dinâmicas, perspectivas.

A quase ausência de elementos no palco (apenas um lustre e cadeiras) ressalta ainda mais o foco na escrita que nasce do corpo e para ele retorna. É na extrema fisicalidade que o trabalho encontra seu apoio. Assim como os elementos aos quais a própria companhia recorre para construir sua poética cênica, que agrega principalmente circo, dança e teatro, os corpos dos performers também assumem um caráter híbrido, estilhaçado, expandido, ampliado. Uma outra anatomia possível se configura no encontro e na metamorfose entre eles.

O virtuosismo em ambos os espetáculos deixa de ser mera exibição das habilidades técnicas dos bailarinos, embora estas sejam incontestáveis, para se tornar também possibilidade de reinvenção e reconfiguração corporal, na criação de formas não mais somente humanas, mas praticamente mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem. Ao construir um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio, o grupo francês MPTA reconstrói a própria ideia de humano na contemporaneidade, quando o apoio solitário parece não ser mais uma alternativa possível.

Um trechinho do espetáculos “Nós somos semelhantes a esses sapos”:

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Críticas: Sobre o conceito de rosto no filho de Deus

Espetáculo de Romeo Castellucci abriu a MITsp. Foto: Lígia Jardim

Espetáculo de Romeo Castellucci abriu a MITsp. Foto: Lígia Jardim

Cada espetáculo da MITsp será criticado por pelo menos dois dos veículos que integram o Coletivo de Críticos (Teatrojornal (SP), Horizonte da cena (MG), Questão de crítica (RJ), Antro Positivo (SP) e Satisfeita, Yolanda?). Os textos serão encartados na programação distribuída nos teatros e também publicados no Facebook, para que todo mundo possa comentar e repercutir as ideias traçadas sobre os espetáculos.

Para começar, as críticas de Daniele Avila Small, da Questão de crítica, e de Valmir Santos, do Teatrojornal, para Sobre o conceito de rosto no filho de Deus:

Sobre a abertura do olhar nas imagens de arte
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica

O espetáculo que abriu a programação da MIT, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci, oferece uma ampla gama de chaves de leitura. Elaborar um texto crítico propositivo sobre esta obra – em poucas horas e em um espaço reduzido – demanda uma escolha radical. Diante da complexa trama de possibilidades que se abre diante do espectador, a proposta deste breve exercício de reflexão é puxar um único fio e apontar um caminho possível de reflexão sobre a peça, sem a intenção de esgotá-lo. Trato feito, puxamos o fio: pensar a presença do rosto de Cristo no fundo do palco como a construção de uma imagem dialética e como o espetáculo opera, com isso, uma proposição ética que nos fisga para dentro da obra. Por imagem dialética, entendo o conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. O que nos convida a trazer à tona um conceito para esta tentativa de diálogo com a obra é o próprio título, uma proposição teórica estranhamente elaborada. Pelo título, a peça nos diz que o que está em jogo não é uma trama nem um tema, mas um conceito. Assim, nos propomos a jogar com cartas do mesmo baralho.

Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo que nos escapa, um movi-mento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens. O efeito da imagem dialética é a sensação de que ela nos olha – uma ideia presente em diversas declarações de Castellucci. Uma imagem dialética é uma imagem aurática, sendo o conceito de aura um aspecto importante da reflexão sobre as artes desde o texto de Benjamim A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O rosto de Cristo, como pintado por Antonello Della Messina, projetado e ampliado no fundo do palco, articulado em simultaneidade com a cena do filho que limpa diligentemente as fezes do pai que sofre de incontinência, me parece ser uma materialização precisa da imagem dialética. Afinal, a imagem de Cristo é pura aura: é sempre presença e ausência ao mesmo tempo, um homem que também é deus, um corpo ressuscitado, um corpo que se faz hóstia, um corpo-conceito.

A sua representação visual é, para os cristãos de fé, como o próprio Cristo – daí a rejeição visceral que a peça provoca nos mais fervorosos. O que o espetáculo opera com a representação desse rosto é algo que dispara o vislumbre da aura: o “fato” de que aquela imagem nos olha, a eficácia do seu olhar. O imenso rosto de Cristo no fundo da cena nos oferece uma representação literal desse efeito estético. Se somos céticos na lida com a arte, vemos apenas a projeção de uma pintura como artefato de cenografia, e assim nós apenas olhamos. Mas, se nosso olhar está aberto para as imagens de arte na sua intensa complexidade, vemos a imagem do filho de deus – e essa imagem nos olha.

A presença do olhar do Cristo é a presença assombrada de um juízo constante. O que eu tenho a dizer sobre o conceito de rosto no filho de deus é que ele nos olha. Ao dar a ver a aura na imagem desse rosto, Castellucci alimenta a força para questioná-lo e, com um golpe, infiltra a negação no cerne da afirmação do seu poder sobre nós. O “não” que aparece, como um fantasma, na frase “o senhor (não) é o meu pastor” surge como contraponto desconcertante àqueles piedosos olhos de Cristo, com uma força plástica singular, e nos olha como se nos perguntasse, expondo uma ferida histórica, de que maneira aquela frase faz sentido para nós.

No Brasil, a montagem só tinha sido vista em Porto Alegre

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A fisionomia do olhar
Por Valmir Santos – Teatrojornal

A face onisciente de Cristo no pé-direito do palco, do queixo aos fios de cabelo, justapõe as escalas do sagrado, do humano e do espaço cênico em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus. A imagem de forte carga simbólica e de construção histórica evidente redundaria o título da obra não fosse ela mesma convertida em dispositivo seminal da companhia Socìetas Raffaello Sanzio. Seu diretor, Romeo Castellucci, enquadra apenas a cabeça em vez do gesto e parte do torso da pintura do renascentista Antonello da Messina que o inspira. O enigma dessa fisionomia estabelece um campo autônomo ao observador que para ela desviará em muitas passagens do espetáculo em busca de significações ou ressignificações talvez menos exasperantes do que aquela que enreda pai e filho. Em vão.

No plano realista, eles acabaram de acordar. O velho interpretado por Gianni Piazzi senta para assistir à televisão enquanto o filho, por Sergio Scarlatella, já com o figurino do executivo prestes a sair para o trabalho, lhe prepara o café da manhã. Esse fragmento de cotidiano sai dos eixos com a prostração do pai, sem controle sobre as necessidades fisiológicas, e a consequente impotência do filho diante do estado primitivo do ser e da iminência da finitude. Alegoria dos embates divino e humano.

Ao retratar a compaixão em circunstâncias limítrofes (a limpeza das fezes e a colocação da fralda geriátrica ocorrem na cadência factual), Castellucci cuida em contrapor a presunção teatral. Ela está dada desde os primeiros longos minutos em que rastreamos a casa de móveis assépticos, de sofá, mesa, cadeiras, carpete e tudo mais tomado pelo branco, exceto o aparelho de TV de costas para o público e uma planta num vaso. Eis o set. Corpo arqueado, andar titubeante, o pai surge carregado por dois contrarregras vestidos de preto, feito manipuladores de bonecos. A partitura do filho que congela o gesto da mão estendida nas costas do pai na hora de limpá-lo ou um galão com o composto que sugere os excrementos em cena são indícios do artifício da arte ao vivo a sustentar o fio das presenças e dos mal-estares.

No segundo movimento do espetáculo a relação pai e filho, até então permeada pela parábola do sagrado, converte-se em instalação. A casa é desmontada aos olhos do espectador, menos a cama em que o pai está sentado, abatido, cabisbaixo, com o rosto entre as mãos. A narrativa ganha o contorno moral, ou seja, pertence ao domínio do espírito do homem. Crianças atiram objetos contra o Cristo de traços humanizados lá na Renascença (Kurt Cobain seria um bom modelo para encarná-lo), justamente quando a arte ganha perspectiva, dá margem para interpretações. A ação das criaturas imberbes despejando objetos de suas mochilas e atirando-os na direção da criatura icônica pode ser lida como um levante, à maneira de Jó, ou como uma figura de retórica contra as gradações do fundamentalismo na ordem global. É o futuro confrontando o passado arcaico aqui e agora.

A iconoclastia irrompe de vez no movimento final da apresentação, quando a imagem se faz verbo. Entre as razões de conduzir ou se deixar conduzido paira “o ser ou não ser” shakespeariano, reafirmando que a teatralidade é o que suporta essa aventura do olhar que desde a cultura grega atinava com o pensar e hoje padece do excesso de imagens a ver. Ver é passagem. O olhar adere e transforma. É sensorial.
Assim como os demais espetáculos que trouxe ao Brasil, a longeva Socìetas Raffaello Sanzio segue impactando nas composições plásticas e sonoras dos sentidos vitais.

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Publicamos uma crítica do espetáculo na época em que ele foi apresentado no Porto Alegre em Cena. Quem colaborou para o Yolanda foi Nayara Brito, jornalista e mestranda do PPGAC/UFRGS.

Um trecho de Sobre o conceito de rosto no filho de Deus:

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