Arquivo da tag: MITsp

Irandhir Santos, Newton Moreno e MITsp entre os vencedores do APCA

Saiu na noite de ontem (1) a lista dos vencedores do 59º Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). São diversas categorias, que incluem, por exemplo, arquitetura, literatura, cinema, teatro, dança e televisão.

No teatro, o prêmio de melhor espetáculo foi dividido entre duas montagens: O homem de La Mancha e Pessoas perfeitas; o pernambucano Newton Moreno levou o prêmio de dramaturgia ao lado de Alessandro Toller por O grande circo místico; Laila Garin (que esteve no Recife com o elenco de Gonzação, A lenda) ganhou melhor atriz por seu papel em Elis, A musical; e o prêmio especial foi para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), realizada em março. Na categoria televisão, Irandhir Santos, que estuda a possibilidade de voltar aos palcos na próxima montagem do Coletivo Angu de Teatro, levou melhor ator por Amores roubados e Meu pedacinho de chão.

A festa de premiação será realizada ano que vem.

Confira a lista completa dos premiados no APCA 2014:

TEATRO

Grande Prêmio da Crítica: Laura Cardoso

Espetáculo: O Homem de La Mancha e Pessoas Perfeitas

Eduardo Chagas e Marta Baião em Pessoas Perfeitas, do Satyros. Foto: André Stéfano

Eduardo Chagas e Marta Baião em Pessoas Perfeitas, do Satyros. Foto: André Stéfano

O Homem de La Mancha

O Homem de La Mancha

Diretor: Marco Antonio Pâmio (Assim É (Se Lhe Parece))

Dramaturgia: Newton Moreno e Alessandro Toller (O Grande Circo Místico)

O Grande Circo Místico. Foto: Leo Aversa

O Grande Circo Místico. Foto: Leo Aversa

Ator: Cleto Baccic (O Homem de La Mancha)

Atriz: Laila Garin (Elis, a Musical)

Laila Garin em Elis, A musical. Foto: Caio Galluci/divulgação

Laila Garin em Elis, A musical. Foto: Caio Galluci/divulgação

Prêmio Especial: Prêmio MitSP (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo)

Companhia lituana OKT encenou Hamlet na MITsp. Foto: Lígia Jardim

Companhia lituana OKT encenou Hamlet na MITsp. Foto: Lígia Jardim

Votaram: Afonso Gentil, Aguinaldo Cristofani Ribeiro da Cunha, Carmelinda Guimarães, Edgar Olímpio de Souza, Evaristo Martins de Azevedo, José Cetra Filho, Kyra Piscitelli, Marcio Aquiles, Maria Eugênia de Menezes, Michel Fernandes, Miguel Arcanjo Prado, Tellé Cardim e Vinício Angelici

TEATRO INFANTIL

Grande Prêmio da Crítica: Banda Mirim, pela trajetória de 10 anos (direção de Marcelo Romagnoli)

Melhor Espetáculo com Música para Crianças: Mania de Explicação, de Luana Piovani Produções Artísticas (direção de Gabriel Villela)

Melhor Espetáculo com Texto Adaptado para Crianças: As Bruxas da Escócia, do Grupo Vagalum Tum Tum (direção de Ângelo Brandini)

Melhor Espetáculo com Contação de Histórias: As Três Penas do Rabo do Grifo, da cia. Faz e Conta (Ana Luísa Lacombe)

Melhor Elenco de Peça: Cia Delas, por A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília (atrizes Cecília Magalhães, Fernanda Castello Branco, Lilian Damasceno, Paula Weinfeld e Thaís Medeiros, com direção de Carla Candiotto)

Melhor Espetáculo com Interação de Mídias: O Sonho de Jerônimo, do grupo Fabulosa Companhia (direção de Eric Nowinski)

Personalidade do Ano no Teatro Para Crianças e Jovens: Luíza Jorge, pela criação, coordenação e produção do novo Prêmio São Paulo de Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem

Votaram: Dib Carneiro Neto, Gabriela Romeu e Mônica Rodrigues da Costa

TELEVISÃO

Dramaturgia: Amores Roubados/TV Globo

Atriz: Cássia Kis Magro (Amores Roubados e O Rebu/TV Globo)

Ator: Irandhir Santos (Amores Roubados e Meu Pedacinho de Chão/TV Globo)

Irandhir Santos como Zelão em Meu Pedacinho de Chão. Foto: TV Globo

Irandhir Santos como Zelão em Meu Pedacinho de Chão. Foto: TV Globo

Direção: José Luiz Villamarim (Amores Roubados e O Rebu)

Programa de Variedades: O Infiltrado/History Channel

Programa de Humor: Tá no Ar/TV Globo

Programa Infantil: Quintal da Cultura/TV Cultura

Menção Honrosa: A Grande Família/TV Globo (pela trajetória e episódio final)

Votaram: Cristina Padiglione, Edianez Parente, Flávio Ricco, João Fernando, José Armando Vanucci, Leão Lobo e Neuber Fischer

DANÇA

Grande Prêmio da Crítica: Lia Rodrigues, por Pindorama e Exercício M

Pesquisa em Dança: Biomashup, de Cristian Duarte e Lote # 3

Projetos em Dança: Marcos Villas Bôas

Criação em Dança: Cena 11, por Monotonia de Aproximação e Fuga para 7 Corpos

Espetáculo: Tira Meu Fôlego, de Elisa Ohtake e elenco

Percurso em Dança: Vera Sala / Hideki Matsuda

Iniciativa em Dança: 7×7, projeto de Sheila Ribeiro

Votaram: Ana Teixeira, Ana Francisca Ponzio, Helena Katz e Renata Xavier

CINEMA

Filme: Praia do Futuro, de Karim Aïnouz

Diretor: Paulo Sacramento, por Riocorrente

Roteiro: Fernando Coimbra, por O Lobo Atrás da Porta

Ator: Ghilherme Lobo, por Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho

Atriz: Deborah Secco, por Boa Sorte

Documentário: São Silvestre, de Lina Chamie

Fotografia: Jacob Solitrenick, por De Menor

Votaram: Orlando Margarido, Rubens Ewald Filho e Walter Cezar Addeo

[dropdown_box expand_text=”Clique aqui para conferir o resultado das demais categorias” show_more=”” show_less=”” start=”hide”]

ARTES VISUAIS

Grande Prêmio da Crítica: Abraham Palatnik – A Reinvenção da Pintura – MAM

Exposição Internacional: Hans Hartung – Oficina do Gesto – CCBB

Exposição: Paulo Bruscky – MAM

Retrospectiva: Iberê Camargo – Um Trágico nos trópicos – CCBB

Fotografia:Luiz Braga – Retumbante Natureza Humanizada – SESC Pinheiros

Obra Gáfica: José Roberto Aguillar – 50 Anos de Arte

Iniciativa Cultural: Cidade Matarazzo Made by…. Feito por brasileiros

Votaram: Antonio Santoro Jr., Antonio Zago, Dalva Abrantes, João J. Spinelli, José Henrique Fabre Rolim, Luiz Ernesto Machado Kawall, Marcos Rizolli, Ricardo Nicola, Silvia Balady, Emilia Okubo e Rubens Fernandes Junior.

LITERATURA

Grande Prêmio da Crítica: João Adolfo Hansen e Marcello Moreira pelos cinco volumes “Gregório de Matos”; editora Autêntica

Romance: “O Irmão Alemão”, de Chico Buarque; editora Companhia das Letras

Ensaio/Crítica/Reportagem: “Música com Z”, de Zuza Homem de Mello; editora 34

Infanto-Juvenil: “A Incrível História do Dr. Augusto Ruschi”, de Paulo Tatit; editora Melhoramentos

Poesia: “Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo”, de Paulo Scott; editora Companhia das Letras

Contos/Crônicas: “O Homem-mulher”, de Sérgio Sant’Anna; editora Companhia das Letras

Tradução: Caetano Galindo, por “Graça infinita”, de David Foster Wallace; editora Companhia das Letras

Biografia/Memória: “Getúlio (1945 – 1954) – Da volta pela consagração popular ao suicídio”, de Lira Neto; editora Companhia das Letras

Votaram: Amilton Pinheiro, Felipe Franco Munhoz, Gabriel Kwak, Luiz Costa Pereira Jr. e Ubiratan Brasil

MÚSICA POPULAR

Grande Prêmio da Crítica: Nelson Motta

Grupo: Banda do Mar

Intérprete: Anelis Assumpção

Compositor: Marcelo Jeneci

Revelação: Ian Ramil (pelo álbum “Ian”)

Álbum: Encarnado, de Juçara Marçal

Show: Titãs – Nheengatu

Projeto Especial – Jazz na Fábrica – Sesc Pompeia

Votaram: Inês Fernandes Correia, José Norberto Flesch e Marcelo Costa

RÁDIO

Prêmio Especial do Juri: Milton Jung – Jornal da CBN 1ª edição

Internet: Plug Rádio USCS – Universidade Municipal de São Caetano do Sul (plugradiouscs.com.br)

Musical: Espaço Rap 2 – 105 FM

Humor: Plantão de Notícias – Rádio Globo AM

Variedades: No Mundo da Bola, 25 anos – Rádio Jovem Pan

Cultura Geral: Estadão Noite – Rádio Estadão

Destaque do Ano: Um Pouquinho de Brasil – Cultura FM

Votaram: Fausto Silva Neto, Marco Antonio Ribeiro e Sílvio Di Nardo

ARQUITETURA

Homenagem pelo conjunto da obra: Giancarlo Gasperini

Fronteiras da arquitetura: “Maneiras de expor: a arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi”, curadoria de Giancarlo Latorraca/Museu da Casa Brasileira

Projeto urbano: Ponte Bayer – passarela móvel sobre o canal Guarapiranga, São Paulo – Loeb Capote Arquitetura e Urbanismo/ arquitetos Roberto Loeb e Luis Capote

Urbanidade: reurbanização de favela do Sapé – Base 3 Arquitetos/ arquitetos Catherine Otondo, Jorge Pessoa de Carvalho e Marina Grinover

Narrativas urbanas: Cristiano Mascaro

Difusão: documentário “Bernardes”, direção Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros

Revelação: Alojamentos estudantil na Ciudad del Saber, Panamá – SIC Arquitetura / arquitetos Eduardo Crafig, Juliana Garcias, Marcio Guarnieri, Fabio Kassai e Gabriela Gurgel

Votaram: Abílio Guerra, Maria Isabel Villac, Fernando Serapião, Guilherme Wisnik, Mônica Junqueira Camargo e Nadia Somekh

Postado com as tags: , , , , , , , , , ,

Críticas: Ubu e a Comissão da Verdade

Montagem é assinada pelo sul-africano William Kentridge, diretor da Handspring Puppet Companyé. Foto: Lígia Jardim

Montagem é assinada pelo sul-africano William Kentridge, da Handspring Puppet Companyé. Foto: Lígia Jardim

As artes e o todo
Por Maria Eugênia de Menezes – Teatrojornal

Ubu e a Comissão da Verdade é exemplo do que se convencionou chamar arte “multimídia”. Aqui, saberes e linguagens são amalgamados com a intenção de conceber uma obra híbrida. Expediente que se relaciona intrinsecamente à trajetória de seu diretor, o sul-africano William Kentridge.
Em 2013, o público de São Paulo teve a chance de aproximar-se do peculiar processo criativo desse artista de múltiplas competências. Realizada na Pinacoteca do Estado, uma exposição reuniu parcela considerável de seus filmes, animações, desenhos, esculturas e gravuras.

A despeito do reconhecimento internacional que conquistou como artista visual, Kentridge não pode ser descrito como um neófito nas artes cênicas. O título apresentado na MITsp é parte de um percurso ligado ao teatro – como ilustrador de cartazes de espetáculo, ator e encenador. Outra informação interessante à apreciação da montagem é sua formação prévia como cientista político.

Ubu e a Comissão da Verdade toma elementos de Ubu Rei (a peça máxima de Alfred Jarry), mesclando-os às audiências da comissão que investigou os abusos e crimes cometidos durante o regime do apartheid. Nessa sobreposição, dá-se um oportuno encontro entre ficção e realidade.

O protagonista grotesco de Jarry impregna o imaginário ocidental justamente como personificação da inveja, da maldade arbitrária e do abuso de poder. Outro achado da produção foi captar o caráter teatral dessas comissões que percorreram a África do Sul entre 1996 e 1998. Em depoimento, Kentridge expôs sua curiosidade por essa espécie de “teatro público” realizado nessas audiências: com testemunhas que sucediam no “palco”, sempre diante de uma plateia, relatando a violência que sofreram.

Assinada por Jane Taylor, a dramaturgia consegue sustentar a potência satírica da base ficcional de onde partiu. Ressignifica a imagem de Ubu, mantendo suas características originais de bufão bruto, mas sendo capaz de dar-lhe críveis contornos de um agente de violência do Estado.

Neste espetáculo da Handspring Puppet Company, o uso de bonecos e filmes de animação também pode ser entendido como procedimento dramatúrgico. Deixa evidente, sem que seja necessário recorrer a comentários textuais, o processo de desumanização dos envolvidos na sangrenta saga de perseguição a negros que vigorou no país entre as décadas de 1960 e 1990. Intencionalmente sujos e mal-acabados, os desenhos de Kentridge corroboram a proposta.

Em momento algum, a trama propõe o enfrentamento direto entre o algoz Ubu e suas vítimas. Não existe drama. Os indivíduos são convocados a falar como ecos de um contexto que os ultrapassa. Não interessa personificar suas mazelas, mas entendê-las como fruto de um contexto histórico e de uma determinada prática social.

O resultado de uma obra de arte não é a soma exata dos recursos empreendidos em sua criação. Seria injusto ler os filmes animados de Kentridge como supérfluos ou mal-realizados. Sua potência, contudo, soa diminuída se comparada a obras de igual natureza do artista. Referenciados anteriormente, os méritos da peça também não a redimem da ausência de ambição em problematizar o complexo material político que tem nas mãos. Engenho e beleza, neste caso, podem não ser capazes de apagar uma vaga sensação de insignificância.

Diretor escolheu o caminho de uma teatralidade exacerbada e fortemente satírica

Diretor escolheu o caminho de uma teatralidade exacerbada e fortemente satírica

Meios expressivos para o poético e o grotesco do humano
Por Luciana Romagnolli – Horizonte da Cena

É sabido que cada forma implica um sistema de relações com o mundo, portanto, é também fundadora de sentidos. Assim, quando uma problemática como a da reelaboração artística de um passado político traumático assume formalizações muito distintas como em dois espetáculos presentes nesta Mostra Internacional de Teatro, as perspectivas do olhar apontam para abordagens éticas e efeitos distintos – sob certos aspectos, complementares.

Enquanto Guillermo Calderón assumiu uma representação de teor realista para a ditadura chilena em Escola, recontada sob o ponto de vista dos militantes da resistência popular armada, o sul-africano William Kentridge, diretor da Handspring Puppet Company, faz caminho inverso em Ubu e a Comissão da Verdade. O processo de denúncia dos crimes contra a humanidade cometidos pelos artífices do apartheid e de busca por uma reconciliação com os carrascos é resgatado por recurso a uma teatralidade exacerbada e fortemente satírica, na qual o protagonismo recai sobre a figura do torturador.

Além das diferenças evidentes entre os dois espetáculos, também no interior de uma só obra a concomitância de meios expressivos coloca em tensão diferenciações que resvalam no campo da ética e hão de ser percebidas pelo espectador como desdobramentos possíveis na produção de sentidos do espetáculo. O contraste se dá entre a construção caricatural de Ubu, o torturador, e sua esposa, ambos feitos por atores que investem em corpos estilizados de modo farsesco, que os desnaturaliza; e a representação das vítimas da violência racial como bonecos manipulados, ressaltando a força poética e lúdica desse meio expressivo.

A coexistência de personagens-atores e personagens-bonecos produz então um efeito de distanciamento maior em relação às vitimas, fundamental para a perspectiva que a encenação adotará: a Kentridge interessa jogar luzes sobre os atos dos agentes da violência. Iluminar suas distorções. Não opera uma identificação empática com a vítima mais do que uma necessária rejeição à atitude do agressor – capaz, espera-se, de impedir que a desumanidade se repita.

Criador do personagem Ubu, o francês Alfred Jarry (1873-1907) dizia que ele “representava todo o grotesco existente no mundo”. Dessa figura parte a dramaturga Jane Taylor para escrever o texto do espetáculo sul-africano, no qual o grotesco emerge como forma de expor a falta de sentido inerente às motivações e aos atos do torturador. Como observou o filósofo Vladimir Safatle em fala após a primeira apresentação, a forma farsesca serve à ridicularização das ações de tirania ao desconstruir pelo humor qualquer seriedade ou racionalidade possível.

Kentridge então recorre ao cômico e ao lúdico em uma encenação plena de recursos expressivos artesanais,
entre os quais estão os títeres “humanos” e uma sorte de formas animais, com os quais reforça aspectos irracionais da trama. Utiliza também vídeos – suporte para a poesia de desenhos alegóricos, friccionada por trechos documentais de brutalidades cometidas durante o apartheid. Novamente, a coexistência das linguagens poética e documental no meio audiovisual evita que se instale o sensacionalismo de imagens violentas, em favor da imaginação – uma operação libertadora para o humano.

Tanto quanto Escola, também Ubu e a Comissão da Verdade gera reflexões diretas em relação à realidade política brasileira nestes 50 anos do Golpe Militar. Embora a Comissão da Verdade esteja vigente, historicamente não houve punição aos torturadores – e nada indica que haverá. Diante das criações chilena e sul-africana, reacende também o questionamento à produção artística do país, pouco problematizadora do destino dos agentes da ditadura e de suas consequências sobre a sociedade.

Ubu e a Comissão da Verdade gera reflexões diretas em relação à realidade política brasileira nestes 50 anos do Golpe Militar

Ubu e a Comissão da Verdade gera reflexões diretas em relação à realidade política brasileira nestes 50 anos do Golpe Militar

Postado com as tags: , , ,

Críticas: Escola

Guillermo Calderón assina Escola. Foto: Marlon Marinho

Guillermo Calderón assina Escola. Foto: Marlon Marinho

Espaços para desconfiar do discurso
Por Luciana Romagnolli – Horizonte da Cena

Até o torturador cria para si histórias que o convençam de que faz o bem. Dita quase com essas palavras em Escola, tal frase é indício da perspectiva complexa com a qual o diretor Guillermo Calderón aborda temas políticos em espetáculos como Villa+Discurso, apresentado no Brasil em 2011 e 2012, e este Escola que ora traz à MITsp. É preciso desconfiar dos discursos. Deles escapam contradições, que revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção.

Em Villa, tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução.

Parece ser dessa descrença no consenso que Calderón parte em Escola. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo se encontra agora nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente.

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980. Aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto sofre das limitações comuns à aprendizagem na escola: a veiculação de um discurso quase catequizante, do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. A escola surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar.

O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo e trabalha com concepções brechtianas livremente recriadas pelo encenador chileno. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos. A defesa de uma forma de organização popular que faça uso da violência para instaurar um novo estado social, por exemplo, esbarra no baixo nível de formação política desses militantes, que pontualmente manifestam ingenuidades e contradições. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas frente à descrição do funcionamento do revolver e do explosivo. A encenação realista, em espaço diminuto e cenografia econômica, atesta ainda certa ética da representação praticada por Calderón, que se esquiva à espetacularização.

Em sua exposição de uma célula de resistência popular, Escola ganha um caráter de urgência pelo diálogo com o contexto atual da América Latina, no contraponto de um passado ditatorial com as manifestações de descontentamento político do presente. A formação política deficiente, aliás, é um dos inúmeros pontos de aproximação possível do espetáculo com os protestos iniciados em junho passado no Brasil. Outro é o questionamento em relação à ditadura ter cedido a um governo falsamente democrático, que ainda operaria sob princípios autoritários e interesses alheios à população.

Calderón dispõe um lugar especial ao espectador: o de um encontro com uma ou mais visões de mundo que não tentem convencê-lo – posto que o convencimento seria um autoritarismo – mas demandem dele o assumir de uma postura. Essa operação se torna mais potente na medida em que a dramaturgia contempla um endereçamento ao futuro, ao pressupor que aquele momento político decisivo para o Chile seria retomado adiante e que a luta popular tem o exemplo de erros e acertos de um passado não muito distante.

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980

O poder subversivo da contracultura formal
Por Valmir Santos – Teatrojornal

Os procedimentos dramatúrgicos e cênicos de Guillermo Calderón em Escola combinam elementos épicos e dramáticos que potencializam uma teatralidade feita de sutilezas e impurezas nas angulações crítica e política em que se anuncia. Seu mote é um achado, e explosivo. Ao circunscrever o treinamento dos integrantes de uma guerrilha em tempos de ditadura militar, o espetáculo dá margem para pensar noções de ideologia e de engajamento à luz dos dias que correm, quando o espaço público retoma vocação para a ágora em que manifestantes se fazem escutar.

Mas não se espere por abordagens históricas e socializantes elementares ou militantes, apenas. Elas vêm sob traços estéticos rigorosos nas mãos desse artista chileno nascido em 1971 e notabilizado pela estruturação ética e política de suas montagens.

Calderón é persuasivo ao visitar a cultura autóctone, a expressão popular, as ideias da militância de esquerda e o combate às sequelas do estágio atual do capitalismo justamente em tempos de crise de representatividade, refratários às ideologias. Os hinos revolucionários, o cancioneiro de evocação ao povo mapuche, os capuzes dos jovens movidos pela utopia são alguns dos aspectos mediadores da encenação.

A obra estabelece uma contracultura formal às expectativas pragmáticas suscitadas pelo tema. Desdramatiza os mecanismos didáticos, relativiza as tensões e rompe com a ilusão ao mesmo tempo em que dispõe documentos ou dados, às vezes projetando-os literalmente, inscrevendo imagem ou palavra no corpo dos atores. Essas transições são demarcadas pela gestualidade ou pela simbiose de luz e de cenário mínimos que delimitam o tempo e o espaço. A sugestão é de que estamos na década de 1980, sob as ordens do general Pinochet, mas o contexto é perfeitamente móvel em se tratando das realidades geopolíticas, principalmente no continente latino-americano.

Apesar da frontalidade do palco, o espectador trabalha com a visão de arena como espaço cênico. Não é incomum algumas dessas figuras postarem-se de costas para o público. Um círculo formado por bancos, cadeiras. Ao fundo, uma lousa. Há sempre um instrutor a conduzir os aprendizes com o discurso das estratégias e táticas de ação.

Esse caráter expositivo das aulas é a deixa para que a verve de Calderón aflore. As técnicas de aprendizagem no manuseio de arma ou de um artefato explosivo são rudimentares em que pese os argumentos fundamentados sobre a injustiça do regime de exceção a ser combatido. À missão conjecturada, a dramaturgia desarma-se da austeridade para desaguar momentos patéticos, um deles em clara referência ao bem-humorado e não menos corrosivo No (2012), filme de Pablo Larraín focado na campanha publicitária do plebiscito nacional que definiu o destino da ditadura no poder. São nessas contradições que enxergamos os revolucionários mascarados como seres falíveis em sua humanidade.

Escola sintetiza a capacidade de Calderón na economicidade do que tem a dizer e como o faz. Em sua trajetória recente, o teatro político não comporta a mensagem, antes a centelha do problema. Não abdica do componente ideológico em sua mirada e espera encontrar interlocutor disposto a enfrentar esse material sombrio do passado e do presente a partir das chaves do jogo teatral objetivo. Para tanto, o quinteto de atuadores conjuga o processo artístico ao processo histórico com solidez e consciência vigilantes no tablado, como podem os melhores comediantes confrontados à dimensão trágica da existência.

Postado com as tags: , , ,

Críticas: Cineastas

Cineastas acontece em dois planos. Foto: MITsp/Divulgação

Cineastas acontece em dois planos. Foto: MITsp/Divulgação

Cinematografia da realidade teatral
Por Pollyanna Diniz – Satisfeita, Yolanda?

A certa altura do espetáculo Cineastas, a declaração de um dos personagens saltou aos ouvidos: “o cinema é o ser humano fazendo o tempo parar”. Enquanto no cinema o instante se deixa capturar e reproduzir pelo aparato tecnológico, no teatro há mais coerência em dizer que ele é experimentado em conjunto. Por isso mesmo, a característica da efemeridade mostra-se, como sabemos, uma das mais intrínsecas à atividade teatral. Atores e espectadores estão em busca de uma vivência compartilhada, da fruição de pulsões e desejos, que não se dão numa via de mão única: acontecem tanto do palco para a plateia quanto vice-versa, mas significam efetivamente tempo, acontecimento e, geralmente, espaço divididos.

Em Cineastas, o dramaturgo e diretor argentino Mariano Pensotti traça paralelos e similitudes entre o teatro e o cinema e problematiza os limites entre realidade e ficção, só que utilizando, de fato, sempre a chave da ficção. A trama apresenta as vidas “reais” de quatro diretores de cinema e, concomitantemente, os filmes nos quais eles estão envolvidos. A dicotomia entre criação e realidade se estabelece a partir das representações dos filmes postos como obras de ficção quando, na realidade, tudo é simulacro do real.

As histórias se desenrolam simultaneamente e com a agilidade da linguagem audiovisual. As ações são apresentadas em planos distintos. A cena, aliás, propõe o mesmo recorte imagético do cinema nos enquadramentos bem definidos. Tudo está restrito ao que cabe naquele retângulo e, com isso, a questão: quais são os recortes que fazemos da realidade priorizando este ou aquele viés?

Nas duas telas, as narrativas exibidas se influenciam e são postas em fricção o tempo inteiro – até que ponto “realidade” e ficção podem se misturar e relacionar? De que forma esses conceitos podem ser intercambiáveis? Um dos cineastas, por exemplo, decide mudar o roteiro do filme depois que descobre uma doença terminal. Outra é afetada porque está filmando um roteiro em que um desaparecido surge anos depois desestabilizando a família; e ela enxerga ali a própria história, já que o pai dela também sumiu.

A dramaturgia está apoiada ainda nas contradições desveladas no cotidiano, entre os papéis assumidos diariamente nas diferentes situações e o que realmente somos ou gostaríamos de ser. Um dos diretores trabalha no McDonald´s, mas se dedica a rodar um filme em que teoricamente destruiria a imagem da multinacional.

Cineastas solicita o tempo inteiro que o espectador esteja acompanhando as sequências e os cortes propostos pelo diretor, retomando a narrativa de onde ela foi interrompida, como as diversas tramas em que nós mesmos, plateia, estamos envolvidos. A história de Pensotti normalmente tem um narrador, onisciente, que assume a condução da trama quando dispõe do microfone, e aí nos revela o que se passa, mesmo que os outros dois atores, por exemplo, estejam conversando. Não interessa o que dizem; aquele narrador já é capaz de traduzir não só o que está acontecendo “de fato”, como de nos contar em tom confessional o que os personagens estão pensando, os dilemas enfrentados, como se sentem. Logo depois o diálogo entre os dois pode ser retomado e virar novamente o foco principal da cena.

As possibilidades de espelhamento e construção de interferências entre realidade e ficção representadas dentro da peça nos inquietam também acerca do quanto nos resignamos diante das condições dadas pela efetividade do cotidiano. E, ao mesmo tempo, nessa perspectiva, do quanto podemos ser afetados e influenciados pela arte e, especificamente, pela experiência partilhada do teatro. Como se, sendo ou não capazes de lidar com a realidade ou suas reconstruções do dia a dia, o teatro sempre fosse um refúgio possível.

As cenas podem ser narradas pelos próprios atores

As cenas podem ser narradas pelos próprios atores

Até que se viva algo especial, não se poderá viver nada
Por Ana Carolina Marinho – Antro Positivo

O que é, diante do real, esse trabalho intermediário da imaginação? – diz Robert Bresson. Para um cineasta inquieto com o seu tempo e com o seu fazer, suponho que seja o cotidiano o suporte de seus devaneios e a imaginação a engrenagem para a realidade. Mas encontra-se aí a potência e o revés da criação. Parto dessa suspeita para propor uma reflexão a partir de Cineastas, da Companhia Marea. Sendo a criação esse território da instabilidade e do desassossego, o criador busca ordenar as formas para delas subtrair instantes de arrebatamento. E cada instante desse capturado é enquadrado, o que retira dele uma possibilidade outra de existir, na medida em que se exclui do plano um universo para, quem sabe, libertar o plano dele mesmo; deslocado de sua realidade, do instante não permanece quase nada.

Reside também nessa instabilidade a ânsia por encontrar na vida o impulso criador, a inspiração poética, o acontecimento trágico ou qualquer outra intensidade a que atribuímos à banalidade. “Até que se viva algo especial, não se poderá viver nada”, diz um dos personagens. É uma espécie de apetite que destempera o olhar. Faminto pelo estímulo criativo, o criador olha ao redor esperando que dele possa se servir. Quando não obriga a realidade a ofertar alguma coisa sequer! E se nada satisfizer a gula, me juntarei ao criador para maldizer a vida e o cotidiano. E juntos permaneceremos distantes da experiência e da criação, enquanto desejarmos destemperadamente apoderar daquilo que queremos e tomar posse daquilo que deveríamos estar absortos. Se se cria por insatisfação ao que se tem, seria a criação ressonância do fracasso?

Em Cineastas, revela-se que a insatisfação reside tanto na imagem pré-fabricada – a película – quanto na imagem imediata – a realidade. Ambas querem servir-se uma da outra para, quem sabe, gerar uma dimensão terceira, intraduzível e arrebatadora. Não há a possibilidade de reconstruir a experiência sem deformá-la, por isso, a cena escapa do domínio do real ou da ficção. Não se trata do que aconteceu ou do que poderia acontecer, mas do que está acontecendo. Assim como na tela de cinema, o espetáculo é a sobreposição de dois frames justapostos, como se fossem duas vidas paralelas acontecendo simultaneamente, mas sem conseguirmos identificá-las. Cada instante de realidade são também 24 quadros por segundo?

Percorro o desenrolar da cena com as instruções de Bresson no pensamento, “o importante não é o que eles me mostram, mas o que eles escondem de mim e, sobretudo, o que eles não suspeitam que está dentro deles” e me parece que a encenação aposta nisso e que a legenda é o suporte para tal operação. O espetáculo consegue, através da simultaneidade das cenas, esgarçar os contornos e propor novas relações. É que não há como ter o casamento da imagem pré-fabricada com a imagem imediata sem que haja a destruição das duas.

Farei uma nota. A legenda, e essa é uma sensação que tem me perseguido nessa Mostra, tem sido a grande força de imposição do discurso. Ela antecipa o pensamento e retira do espectador a ilusão de que as coisas estão acontecendo pela primeira vez ali, de que o próximo segundo é desconhecido por mim, espectadora, e por eles, atuadores. Nesse espetáculo, diferentemente, isso torna-se linguagem, na medida em que a legenda se personifica e é o suporte para que as duas imagens se colidam. Numa espécie de tela projetada, a cena se desenrola em duas projeções com a presença da legenda entre elas. E, assim, passa a não interessar de qual projeção a legenda pertence, mas sim o atrito que gera a legenda pertencer às duas simultaneamente. Chego até a duvidar se a peça existe sem ela.

Montagem fez sessões no Auditório Ibirapuera

Montagem fez sessões no Auditório Ibirapuera

Postado com as tags: , ,

Críticas: Hamlet

Hamlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”. Foto: Lígia Jardim

Hamlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”. Foto: Lígia Jardim

Tragédia da imaginação
Por Ivana Moura – Satisfeita, Yolanda?

Hamlet, da companhia lituana OKT, principia com uma pergunta: “Quem é você?”, variação do encenador Oskaras Koršunovas para a frase da peça de William Shakespeare “Who’s there?”. O questionamento é feito pelos nove atores da trupe que, de costas para a plateia, se miram no espelho. Vão do sussurro ao grito, num crescendo. O público também está refletido. O cenário é um camarim com bancadas móveis que se transfigura no reino da Dinamarca. O sistema de espelhos compõe ângulos reveladores, como o do pai de Hamlet fantasma (Dainius Gavenonis) que se olha e vê Claudius (que ele matou) dentro de si, numa alusão ao fratricídio Caim e Abel.

O diretor não inventa Elsinore no palco. Desvia do espaço vazio e compõe um local onde são sobrepostas as máscaras (ou maquiagem) como tradução do presente. Nesse metateatro, Elsinore é criado na imaginação do espectador. Hamlet traça esse enfrentamento com os meios teatrais a partir de sua consciência. Nesse jogo, busca se apossar da consciência do rei, o fantasma, o Old Hamlet, para fazer justiça e do tio Claudio para executar sua vingança. Mas como manter-se humano neste mundo desumano de Elsinore? Essa pergunta ecoa nos jogos de palavras e nas redes de intrigas.

Hamlet de Koršunovas é uma tragédia da imaginação. Isso é reforçado pela expressão Mind’s eye utilizada por Hamlet, quando diz que parece que está vendo seu pai e acrescenta: “com os olhos da alma, Horácio” (in my mind’s eye, Horatio). O protagonista opera uma memória visual ou imaginação. O encenador seduz o público para a “ratoeira” da imaginação de Hamlet, imprimindo camadas ou apagando fronteiras do teatro, o espaço da ação, atores e papéis. A música de Antanas Jasenka tem um desempenho fundamental.

Há algo de podre no Reino da Dinamarca e um enorme rato branco que mostra a cabeça e pousa a cauda nas mesas de maquiagem. O roedor volta a aparecer em vários momentos da montagem. O mundo é um teatro em que se finge e mente e essa encenação de Koršunovas não chega a iluminar possíveis lugares ainda obscuros de Hamlet. Mas traz em si acertos de conta com o passado e muitas dúvidas com relação ao futuro. Tem as referências da cultura pop e as potentes interpretações dos atores. E chama para um debate sobre camadas de representação em fogo brando.

O famoso “Ser ou não ser” é dito duas vezes pelo ator Darius Meškauskas. Na primeira vez ele joga e mente como “ser” melancólico. Na segunda vez, furioso, diante do “não ser”. Oskaras Koršunovas insiste com seus conjuntos de imagens sobre o tema do artifício que a realidade não existe mais. Apenas fragmentos dela estão espalhados e refletidos em vários espelhos.

Montagem tem visualidade bastante interessante

Montagem tem visualidade bastante interessante

Casa de espelhos
Por Maria Eugênia de Menezes – Teatrojornal

Dramas e tragédias contemporâneos têm atravessado a programação da MITsp. As problemáticas de nosso tempo contaminam as obras. A tal ponto que, mesmo ao lidar com textos que acreditávamos suspensos na história – atemporais -, os criadores são capazes de reposicioná-los, contaminando-os de presente e abrindo a possibilidade de insuspeitas leituras. Nas mãos do lituano Oskaras Koršunovas, Hamlet permanece a repercutir a angústia do príncipe da Dinamarca, dividido entre os deveres de herdeiro real e as vontades do indivíduo. Mas adquire também os contornos de uma crise que ainda não soubemos nomear, um mal-estar difuso que vemos tomar as ruas e acorrer aos consultórios médicos em busca de alívio.

A recusa em lidar com o imponderável embasa o comportamento do homem que se sabe só no mundo. Apartado dos deuses, ele tem apenas a si mesmo como alicerce. A lógica da mercadoria, que incita a ‘minimizar’ riscos e buscar ‘investimentos’ seguros, espraiou-se para a prática do sujeito. Mecanismos da publicidade e da propaganda guiam condutas: precisamos nos diferenciar dos ‘concorrentes’, estar constantemente expostos nas vitrines.

Na montagem da OKT – Oskaras Koršunovas Theater – a ficção de Shakespeare torna-se também o relato da quebra da passividade. Hamlet é aquele que ousa contradizer. Em seu infortúnio, não renega o medo. Abraça-o. Veste-se dos próprios terrores e parte para o enfrentamento. O que aparta o personagem-título daqueles que o cercam é sua desconfiança. Ofélia quer crer no amor que ele diz devotar-lhe. Gertrudes prefere a ignorância a ter o coração partido em dois. Laertes precisa seguir convicto de que sua família foi aniquilada por um sanguinário e cruel Hamlet e não pela própria imprudência. Nenhum deles levanta suspeitas. Todos permanecem imobilizados em sua fé cega.

O encenador revela essas contradições sem recorrer a transposições temporais ou preocupar-se com efeitos de realismo. Na sua montagem, tudo soa artificial. O teatro não é um retrato da vida. Será antes sua imagem invertida, deformada, aumentada. Na cenografia proposta, o espectador é remetido imediatamente ao ambiente das coxias. Como se observasse atores na intimidade de seus camarins.

Belas soluções cênicas resultam dessa opção. Em sua predileção pela artesania (e a consequente recusa aos recursos tecnológicos), a peça nos faz compactuar com verdades que não existem fora de seus limites: só ali, um ator vestido de rato é capaz de evocar o ambiente pútrido da política, uma caveira pode ser tanto o cadáver de Yorick, o bobo da corte, quanto a taça de onde a rainha sorverá o veneno mortal.

Antes de o conhecido enredo começar, os intérpretes miram-se detidamente no espelho e questionam em voz cada vez mais alta: ‘quem é você?’. Nos últimos cem anos, as teorias de Sigmund Freud iluminaram a hesitação de Hamlet. Talvez, porém, as teorias de Lacan nos tragam ferramentas mais consistentes para mirar Shakespeare a partir da perspectiva do século 21. A descrição lacaniana da fase do espelho – que ocorre entre os seis e os 18 meses de vida do bebê – pode soar oportuna. Quando assume uma imagem, o sujeito se transforma. É nesse reflexo que aprenderá a distinguir-se como indivíduo. Mas não só. A miragem de si próprio é ainda a chave para enxergar o outro. Entendê-lo como diferente. Reconhecê-lo como semelhante. Em seu jogo de espelhamentos, Koršunovas dá um mesmo rosto ao rei e a seu algoz. Banha no mesmo sangue, Hamlet e Claudio.

Várias bancadas de camarim servem como cenário

Várias bancadas de camarim servem como cenário

Postado com as tags: , ,