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Uma conversa sobre Nordeste, teatro de grupo e política
Entrevista || Magiluth e No Barraco da Constância Tem!*

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

Veja só. Foto: reprodução de tela

Piragem etnográfica do complexo, espetáculo do grupo No Barraco da Constância Tem!. Foto Edouard Fraipont

O Desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir. Foto: reprodução de tela

Não sabemos dizer ao certo se acontece noutras regiões do país, mas no Nordeste, o telejornalismo tem uma certa fixação por buracos. O desejo de estabelecer uma relação com as populações geralmente mais periféricas das cidades faz com que problemas que afetam o cotidiano das pessoas, como os buracos das ruas, ocupem bastante espaço na programação diária das emissoras. A partir desse mote e das metáforas infindáveis que pode desencadear, o grupo cearense No Barraco da Constância Tem! criou O desaparecimento do Jangadeiro Jacaré em Alcácer-Quibir, experimento audiovisual apresentado no Cena Agora, do Itaú Cultural, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas.

Sabe o cubo mágico? A edição de texto e vídeo desse trabalho é como essa quebra-cabeças com assuntos que aparentemente não teriam ligação, mas fazem todo o sentido. O trabalho resgata a história de Manuel Olímpio Meira, um pescador que lidera um grupo numa viagem de jangada de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas. A empreitada é bem-sucedida e vira até matéria na revista Time, despertando o interesse de Orson Welles, que vem ao Brasil para filmar a história dos pescadores. Mas, durante as filmagens, há um acidente e Manuel Jacaré desaparece no mar.

O experimento imbrica o sebastianismo – foi o rei D. Sebastião quem desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 –, à história do pescador, à percepção que os nordestinos têm de suas cidades (há um trecho ótimo com supostas entrevistas de crianças europeias, mas usando o áudio de um vídeo com crianças nordestinas, falando sobre a relação delas com o Crato e se elas gostariam de permanecer na cidade quando crescessem), e até ao turismo ufológico no Ceará.

Como nós, Yolandas, adoramos proporcionar encontros e intercâmbios, enviamos o link desse vídeo para algumas pessoas, inclusive para Giordano Castro, do Magiluth. E, como a gente esperava, o grupo pirou com a ideia do No Barraco… para discutir o Nordeste. Resolvemos então promover esta conversa entre esses dois coletivos que nunca se encontraram pessoalmente, mas poderiam dar match.

O trabalho que o Magiluth apresentou no mesmo evento, Cena Agora, está disponível no Instagram e no YouTube do grupo. Veja só… é uma leitura comentada da matéria publicada na Veja São Paulo, que incitou a discussão sobre Nordeste pelo Itaú Cultural, e anunciava em sua manchete: São Paulo – Capital do Nordeste. Foi a primeira vez que os atores do Magiluth leram a publicação.

O grupo No Barraco da Constância Tem! é formado por Ana Carla de Souza, Felipe Damasceno, Honório Félix, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte. Damasceno, Honório, Renan e Sarah participaram da entrevista “coletiva”. Já do Magiluth, que junta Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner, participaram Giordano e Erivaldo. Foram quase três horas de conversa e nem tinha uma cerveja gelada na mediação, o que certamente vai acontecer no próximo encontro, seja na Mamede Simões, no Recife, ou na Instituto do Ceará, em Fortaleza.

*Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA || MAGILUTH E NO BARRACO DA CONSTÂNCIA TEM!

Pollyanna Diniz: Como era o cenário de teatro no Recife e em Fortaleza quando vocês decidiram criar o Magiluth e o No Barraco da Constância Tem!, respectivamente? Por que se juntar em grupo?

Giordano Castro: Quando a gente surge, era muita coisa acontecendo aqui em Recife, dinheiro jorrando, o estado investindo. Mentira! Mas a gente tinha um cenário teatral local bem melhor do que nos últimos seis anos. O Magiluth surge em 2004. Entramos na universidade e quatro pessoas que faziam parte daquele grupo tinham mais interesse na prática do que na licenciatura. Começamos a entender que estar em grupo era a saída para furar uma bolha da cidade. É natural, vão se formando blocos e agrupamentos e o pessoal mais novo sempre tem um pouco de dificuldade. Depois que começamos a fazer, buscamos exemplos e inspirações noutros coletivos, grupos, alguns até contemporâneos. Mas estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas. 

Estar em grupo foi uma forma de sobreviver, na cidade do Recife, onde o mercado é escasso, em que não tem dinheiro, onde o estado investe minimamente nas coisas.
Giordano Castro – Magiluth

Honório Félix: O No barraco da Constância tem! surgiu em 2012. Estou desde o começo. Temos agora outra configuração de grupo, mas lá no começo éramos eu, Tayana Tavares e Ariel Volkova. Eles não saíram, mas estamos passando por um momento de transição, de entendimento de como está funcionando esse coletivo. O Barraco surgiu porque eu, Tayana e Ariel trabalhávamos juntos, mas tínhamos uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente não via na cidade. E não é porque a gente não admirava as pessoas, mas olhávamos ao redor e tínhamos vontade de fazer uma coisa que não estava ali. Tínhamos vontade de pautar e de estabelecer a nossa própria poética, mesmo não sabendo muito bem o que era isso. 

Trabalhamos muito entre o teatro e a dança, mas também partilhamos outras zonas de interesse. Esse grupo movimenta uma série de pessoas em projetos e criações diversas. Temos essa característica de ter um núcleo, digamos assim, mas estamos sempre nos juntando com alguém, trabalhando com uma série de pessoas que estão ao nosso redor.

O No Barraco surge de uma urgência de criar um agrupamento para trabalhar coisas que a gente
não via em Fortaleza. Tínhamos vontade de pautar
e de estabelecer a nossa própria poética.
Honório Félix – 
No Barraco da Constância tem!

Pollyanna: Fiquei curiosa com o nome do grupo. Qual a história?

Honório: A constância tem a ver com a qualidade de ser constante, de construir essa constância na criação, na elaboração, no exercício poético. E o barraco tem a ver com esse lugar que é acochado, mas que cabe, e tem uma relação de “barraquear”, de bater o pé, de chutar a porta, de barraco, de confusão, de contenda. Aí o Barraco é um pouco esse pandemônio, cabe muita coisa, muita gente, e se faz na elaboração constante.

Renan Capivara: Faço parte de uma leva mais recente que ingressou no Barraco, junto com Felipe e Sara em 2018. Entramos por ocasião do projeto Delirantes. Era de montagem, mas também se desdobrou e continuamos produzindo e criando mais coisas. E é interessante que essa relação não começou em 2018, porque eu conhecia Honório há muito tempo e conhecia William há um tempo. Conheci Honório no curso técnico em Dança em 2013 e acredito que trabalhar com ele agora vem um pouco dessa relação, que vem de um espaço formativo, e isso é muito importante de sublinhar.

Felipe Damasceno: Sou artista da dança, minha formação básica é da dança, mas como o Barraco trabalha com teatro, dança, e outras linguagens, não sei se faz mais sentido dizer que sou da Dança. Já nem sei mais de onde é que eu sou! Minha formação não passa pela universidade, pela estrutura acadêmica, formal, institucional. A minha formação foi sempre embasada nessa coisa de coletivo. Naquela época, ainda não existia faculdade de dança, então a formação da maioria das pessoas era muito dentro dessa lógica dos agrupamentos. Você está neste grupo tal e esse grupo, coletivamente, descobre como é que forma as pessoas, que caminhos tem que seguir. A coisa era meio entrelaçada, formação e criação.

Sarah Nastroyanni: Tenho crush no Barraco desde 2016, quando assisti Marlene pela primeira vez. Aí a gente passou um tempinho se paquerando, se queixando, até eu me tornar barraqueira em 2018 junto com Damas e Renan. E quando a gente se juntou, Renan falou um pouco de Delirantes, um dos projetos que a gente já se jogou, mas quando a gente se juntou mesmo, eu e Honório, foi para enviar cartas para artistas e espaços de exposição na cidade, apelando a autoria do mictório (Fonte), aquela obra que é atribuída formalmente ao Marcel Duchamp, ao fantasma da baronesa falida Elsa von Freytag-Loringhoven, que é a verdadeira autora . E começou com essa ação da gente escrever anonimamente cartas, mas se desdobrou. É um babado que está rolando até hoje, das cartas passou para exposição, vídeos em artes visuais, em diversas linguagens. E é um prazer conhecer vocês pessoalmente, do jeito que dá.

Pollyanna: Se vocês pudessem escolher um trabalho marcante, uma virada de chave na trajetória do grupo, qual seria?

Erivaldo Oliveira: Para mim, a virada de chave, muito simbólica, foi em Aquilo que o meu olhar guardou para você: a possibilidade de a gente trabalhar a partir do teatro, a partir do grupo. O espetáculo surgiu em 2011, num projeto também do Itaú, chamado Rumos Teatro, a primeira edição. E esse foi o primeiro edital que a gente recebeu uma grana, tinha a possibilidade de ter uma sede, um espaço onde a gente pudesse trabalhar. O grupo se modificou muito a partir daquele momento. Largamos os outros trabalhos e voltamos a entender que era dali que a gente podia se unir, ter forças, no sentido de sobrevivência, no sentido de viver daquilo que a gente veio ao mundo para fazer. Tem essa chave de estruturação.

 

Aquilo que o meu olhar guardou para você. Foto: Blenda Souto Maior

Um torto, solo do Magiluth. Foto: Pollyanna Diniz

Viúva, porém honesta. Foto: Victor Jucá

Giordano: Vou subverter, Polly, vou dizer três trabalhos que marcam coisas bem diferentes e são bem importantes. O primeiro é Um torto, um solo do grupo, que dá uma guinada nessa busca poética que Honório falou, que eles não sabiam ainda quando surgiram, a gente também, a mesma coisa, me vejo muito nesse lugar. Mas acho que Um torto, por mais verde que seja, faz uma quebra nos trabalhos que a gente tinha feito. Depois dessa quebra, seguimos essa avenida que Um torto abriu de pesquisa e pensamento. O segundo trabalho é Viúva, porém honesta. Deixando a modéstia um pouco de lado, foi um trabalho de sucesso, de lotar casas, de fazer com que a gente entrasse nos principais circuitos. Já frequentávamos circuitos de festivais, mas com Viúva, ele chuta a porta e ele é mais do que a gente, é o próprio trabalho que se impõe. E o trabalho depois desse, logo em seguida, é O ano em que sonhamos perigosamente, que é o trabalho dentro da nossa trajetória que, se a gente pensar em questões de receptividade, pode ser considerado um fracasso. Mas, para o grupo, para tudo que significa e o que aconteceu, acho que é um dos trabalhos mais fodas e interessantes que a gente fez, enquanto pesquisa de linguagem. É um trabalho que surge de um desses momentos que, como Honório falou, vocês estão vivendo uma renovação, acho que isso acontece muito e várias vezes dentro de um coletivo, a gente passou por várias guinadas. Uma guinada de amadurecimento se dá por causa desse trabalho, durante esse trabalho.

Honório: Vou falar dos mais antigos. Acho que o primeiro trabalho que é uma virada de chave é o Piragem etnográfica do complexo (2013), que construímos despretensiosamente e que nos levou  para vários lugares. É um trabalho curto, de meia-hora, mas viajamos, fizemos um bocado de canto, fazíamos desde pátio de universidade até apresentação em galeria, em festival de performance. Foi um trabalho que nos colocou noutra perspectiva: “acho que a gente pode realmente investir nisso, né? Vamos continuar trabalhando?”.

Tem uma coisa interessante que rolou no Cena Agora, nesse último trabalho, que foi O desaparecimento do Jacaré Alcácer-Quibir. Ivana perguntou como a gente pensa montagem e edição no nosso trabalho durante o debate. E logo depois Ariel, um dos membros do coletivo, me telefonou para falar sobre o Jacaré, que foi incrível, que o debate foi lindo, e que ele ficou com isso martelando na cabeça, a pergunta da Ivana. E ele falou assim: “Honório, na verdade a gente funciona muito por essa coisa de montagem, de edição”.

Nesse sentido, outra virada de chave foi quando entramos no Porto Iracema das Artes, uma escola daqui do Ceará voltada à formação e pesquisa, no laboratório de pesquisa teatral com o projeto Encenações contracenadas – entre o distanciar e o invadir. Tínhamos dois anos de grupo e fizemos esse projeto que era super ousado: convidar cinco encenadores de Fortaleza para que cada um dirigisse uma cena de cinco minutos com a gente e, a partir de como eles trabalhavam procedimentos de direção, a gente ia ver como fazia uma edição, misturar essas cinco poéticas e “roubar” a autoria deles. A gente vai roubar isso aqui, vai se apropriar, hackear os procedimentos e inventar uma maneira de colocar essas relações diferentes para contracenar. Deu um trabalho medonho, porque realmente dá trabalho editar esse material, cenas muito diferentes entre si. E gerou um trabalho chamado Nada como quando começou. O Piragem era um grande sucesso e era conhecido pelo deboche. O Nada não tinha essa característica de deboche, mas tinha uma característica de atrevimento e, em certo sentido, era um trabalho que levantou uma suspeita sobre as pessoas: o que é que eles estão fazendo? Era um grupo que não é nem de teatro, nem de dança, está fazendo uma coisa esquisita, misturando um monte de gente.

E outra virada de chave, que meio que resvala até onde estamos agora, são dois trabalhos: Marlene – dissecação do corpo do espetáculo (2016) e Rara (2017). Marlene é um espetáculo que foi um sucesso, mas demorou a engatar. É um trabalho longo, de duas horas, com várias mudanças de atmosfera, meio grandioso, quase operístico, e tem essa característica de decadência. Mas ali a gente foi entendendo e trabalhando esses procedimentos de montagem, de edição, de costura, de mistura, vou por ali, vou aqui, vou misturar essa história que tem a ver com teatro de Fortaleza com uma história de Hollywood dos anos 1950 e daqui eu vou lá para as divas do jazz. É um trabalho que vai falando um pouco sobre essa relação da decadência, da diva, da história do teatro e do porquê a gente perpetua esse imaginário. Acho que é uma virada de chave junto com Rara, nosso trabalho de ficção científica. Começamos a entender uma zona de interesse, não estabelecer uma metodologia de trabalho, mas realizar uma criação em camadas, misturar assuntos. A gente entendeu nesses dois trabalhos que isso era o que a gente fazia, foi uma tomada de consciência e de que seria interessante continuar investindo nisso.

Nada como quando começou. Foto de Luiz Alves

 

Marlene – Dissecação do corpo do espetáculo. Foto de Toni Benvenutti

Rara. Foto: Luiz Alves

Sarah: Vou falar de um trabalho marcante de um ponto de vista bem pessoal que, para mim, mobiliza muitas das características do nosso fazer, que é Auto de Danação, que foi feito no fim do ano passado, uma performance por WhatsApp, oriunda de uma residência. Quando falo que mobiliza certas características, é de constância, porque vem de uma pesquisa de 2018, que teve uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria, uma coisa muito recorrente nos trabalhos do Barraco. Quis mencionar esse porque vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. Sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui, fico curiosa para saber de vocês como é que foi esse processo de Tudo que coube numa VHS, e o que vocês estão pensando e produzindo agora, como foi se inventar a partir dessas plataformas?

Auto de Danação, uma performance por WhatsApp, mobiliza muitas das características do nosso fazer, uma série de desdobramentos em relação à dança macabra e questões de fantasmagoria. Vocês também têm um trabalho, que é Tudo que coube numa VHS, que vocês mobilizam plataformas e dispositivos. É sobre essa correlação e esses pontos de encontro e de abandono que estamos conversando aqui. Sarah – No Barraco da Constância tem!

Giordano: Sarah, esse trabalho nasce do desespero e do medo da morte. No ano de 2019, pré-pandemia, estreamos Apenas o fim do mundo, um trabalho bem recebido pela crítica, entramos nas premiações nacionais. Mas o Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. Vendo que os festivais estavam fudidos, porque muitos já estavam convidando a gente, mas faziam: “ah, a gente está meio sem grana e tal”, decidimos investir num espaço nosso aqui no Recife. Se tudo desse errado, faríamos espetáculo de domingo a domingo e tiraríamos a grana da bilheteria, o que, obviamente, não seria essas coisas, mas iríamos nos mantendo, fazendo o nosso trabalho. Aí, Sarah, a gente se fudeu. Toda a grana que tínhamos em caixa, investimos neste Casarão. Dois meses do Casarão, pandemia. E todos os festivais que a gente ia participar, que iriam ajudar a repor a grana, foram caindo. Também faríamos uma estreia em cima do Morte e Vida Severina, que caiu. Em abril, Erivaldo nos disse que a gente tinha mais um mês e meio de grana. Fudeu, véi. Foi quando começamos a pensar em criar: será que a gente adapta algum trabalho? Fomos esbarrando em questões. A internet da gente é uma bosta, as câmeras são ruins, não vamos conseguir fazer um trabalho online. Aí conversei com os meninos e disse que estava com uma ideia. E nasceu Tudo que coube numa VHS. Não foi uma pesquisa, não era algo que a gente já estava pensando. As primeiras ideias eram: como fazer um trabalho que levasse em consideração a maneira como a gente tem se comunicado, através dessas plataformas, um trabalho que fosse seguro tecnologicamente, que eu não ficasse na mão de uma internet muito boa, que as pessoas que participassem também não precisassem disso, que fosse simples. E as outras coisas fomos entendendo. A gente entendeu, por exemplo, que o trabalho não poderia ser muito longo. E, resumindo, Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas.

Erivaldo: Esse trabalho veio no sentido de nos salvar financeiramente e também a nossa sanidade porque, como Gio falou, no começo era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. E o fato de ficar todo mundo dentro de casa, grana acabando, festival caindo, Casarão fechado, isso tudo dá um bug na cabeça. Parece que, pela primeira vez na história mundial, o teatro vai morrer. Morremos, vamos morrer. Era tudo muito assustador. Essa qualidade estética criada a partir da tecnologia, do digital, foi sendo aprimorada com o passar do tempo. Lembro que a gente teve uma reunião com Lubi (Luiz Fernando Marques), porque queríamos fazer Apenas o fim do mundo, porque ele é constituído de muitos monólogos, então pensamos: todo mundo está nas suas casas, vamos fazer os monólogos e criar uma atmosfera para isso. E aí na reunião, Lubi disse: “gente, teatro não existe, não vai existir durante esse tempo de pandemia, porque o teatro requer presença”. E aí esse negócio, de que o teatro de fato requer presença, foi o que mais nos pegou. Como é que, mesmo nessa distância da tela, conseguimos estabelecer presença, no momento real? E o experimento, no momento que foi criado, tinha um frescor, a possibilidade de estar em cena. Não podíamos ir ao teatro, mas as nossas casas viraram palco. Então você está no meio de uma pandemia, de segunda a segunda, fazendo peça? A gente fazia 10 apresentações por noite, de segunda a segunda. Você tem uma ocupação, não deixa de lado os problemas, mas dá uma ressignificada, para ter sanidade e continuar acreditando na nossa potência de criação, na nossa arte. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós, fazedores, que foi importantíssimo, para além da segurança financeira. Na pandemia, diante de tudo que está acontecendo, milhares de amigos tendo que fechar as portas, não tendo como sobreviver, a gente tem que agradecer a uma junção do cosmo que fez esse trabalho existir, a partir da necessidade, do desespero. 

O Magiluth vive, financeiramente, de participação em festival e bilheteria. Isso é quase 60 a 70% da nossa grana. A menor parte é de edital, apesar de muita gente aqui no Recife achar que o Magiluth é um grupo rico. 
Giordano Castro – Magiluth

 

Tudo que coube numa VHS salvou as nossas vidas financeiramente e também a nossa sanidade.  No começo da pandemia, era muito assustadora a possibilidade de não trabalhar, de não existir o encontro, os perigos que esse encontro poderia provocar. O experimento trouxe essa fagulha de esperança e de incentivo para nós. 
Erivaldo Oliveira – Magiluth

Ivana Moura: Vocês acham que o teatro ocupa o lugar que deveria nas cidades de vocês?

Felipe: Não, o teatro não se encontra numa posição de importância, não tem um protagonismo. O que fazer para que isso mude? É acabar com o capitalismo! A louca! É pensar essas estruturas de difusão, a formação e a circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. Dentro do bojo cênicas, tem uma concentração geográfica em Fortaleza na Praia de Iracema, Centro, Benfica, Aldeota, Meireles, que tem um acesso direto, geográfico, a espaços culturais, enquanto o resto da cidade não tem tanta facilidade. Estamos falando, claro, de espaços institucionais, mas existe uma força muito grande de espaços alternativos, que fomentam uma produção própria. Mas, mesmo assim, tudo se concentra numa parte específica da cidade, que acho que não é muito diferente noutras cidades do Brasil. Estou me sentindo um político. Porque é tão óbvio, pelo menos para mim, acho que para todos que estão aqui, é uma pauta óbvia. 

O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. Direito cultural é manifestação, gente que, nos anos 1980, 1990, pautou que deveríamos ter uma escola de dança na cidade, para rivalizar com essa lógica privada de academias de dança, então precisava ter um curso de dança, um colégio de dança, que depois se transformou no curso técnico em dança. Acho que passa pela poética da arte, mas está mais atrelado à lógica política de como é que a classe artística de cada cidade e de um país se organiza para fazer essa reivindicação. E é sempre muito difícil, porque lidamos com o individualismo. Estamos sempre competindo, essa lógica de edital já incita que só um ou dois vão ganhar. Tem um ponto que sai da poética, da criação, e passa por um viés político de organização da classe.

O teatro não se encontra numa posição de importância. O que fazer para que isso mude? É pensar essas estruturas de difusão, formação e circulação do teatro, da dança, das artes visuais, do cinema. O que Fortaleza tem de iniciativa pública cultural não foi dado, tudo é luta. 
Felipe – No Barraco da Constância tem!

 

O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Por que o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife.
Giordano Castro – Magiluth

Giordano: Mas eu acho, Felipe, que é político mesmo. O espaço que o teatro ocupa no Recife é o espaço do investimento. Não tem como não pensar nessa equação. Porque o cinema pernambucano é tão forte? Porque se investe grana. Não é a água daqui do Recife. Kleber toma uma água maravilhosa e o filme dele é premiado. Obviamente tem a parte artística, do pensamento, do fazer, mas esse pensamento e esse artista só acontecem quando tem investimento. Se não, ele vai ficar pensando dentro da casa dele, ele vai ser genial dentro da casa dele. Tivemos momentos em que o teatro aqui teve uma visibilidade e ocupou um lugar forte no cenário nacional. Na época da gestão de Peixe (João Roberto Peixe, secretário de Cultura da cidade do Recife de 2001 a 2008), por exemplo, tivemos festivais de teatro que recebiam o que tinha de mais interessante, daqui e de fora. Hoje temos um momento muito difícil, porque desde que começamos a viver dentro do clã Campos, nessa política do PSB daqui, que se destruiu tudo que foi construído durante um tempo de gestão e a cultura virou evento, não virou uma política pública de manutenção, mas sim evento. E o PSB trabalha com medalhões dentro das secretarias, coloca um Ariano Suassuna para ser o secretário de Cultura, coloca uma Leda Alves para ser secretária. São pessoas fofas, maravilhosas, que têm uma história. Colocam essas pessoas como bode expiatório. E aí você chega no Recife, no aeroporto, e a primeira coisa que você vê é um caboclo de lança e um passista, fotos maravilhosas, e essa galera está fudida, porque essa galera só é boa para fazer foto, como imagem, mas não tem manutenção para essas figuras. 

Honório: Em Fortaleza, temos um investimento forte em formação, técnica, básica, e também de graduação, em diversos espaços e linguagens. E, quando se investe em formação, existe muita criação. Mas os espaços de escoamento dessa produção estão sucateados e sem investimentos. Houve um movimento, infelizmente veio a pandemia, de juntar os fóruns de várias linguagens através do Fórum de Linguagens e a gente produziu uma carta que falava de todos os equipamentos do Ceará, alguns até em desuso. Por exemplo, o Teatro Carlos Câmara, tem toda uma equipe lá, e não acontece nada, porque eles criam um mecanismo, o edital de ocupação. Vai lá uma produtora, se inscreve, passa dois anos tentando criar uma programação, acaba essa ocupação, a produtora sai, abre um novo edital, passa um ano o negócio fechado até que saia o resultado de uma nova ocupação. 

E, como o Felipe falou, essa coisa da centralização geográfica dificulta a criação do hábito de ir ao teatro. Existem outros problemas, como a mobilidade urbana e a cultura do medo, que vem de um movimento chamado “Fortaleza apavorada”, que quer reivindicar o lugar da segurança, uma coisa esquisita, a segurança ligada a uma ideia policialesca e de que a cidade é perigosa. Das pessoas criarem um medo e uma insegurança de estarem nas ruas, de quererem ser vigiadas, isso é muito forte. Foi também isso que nos mobilizou a criar essa pesquisa Delirantes, que começou em 2018 e rendeu o espetáculo Delirantes e malsãs

Queríamos criar um espetáculo nas praças públicas, a partir da epidemia de dança de Estrasburgo. Em junho de 1518, uma mulher começou a dançar no meio da rua, num vilarejo, e daqui a pouco todo mundo estava dançando, passaram dois meses dançando, e a maioria dessas pessoas morreram de tanto dançar. Vieram padres para exorcizar aquelas pessoas e também começaram a dançar, bandas de música, mas a galera se “contaminava” e dançava. Não existe uma comprovação do que causou isso, o porquê aconteceu, mas tinha a ver com aquele ambiente de final da Idade Média começo da Idade Moderna, totalitarismo e fortalecimento das monarquias absolutistas. Nos 500 anos desse fato, resolvemos fazer essa pesquisa. Iríamos estrear em março de 2020, com essa ideia de contaminação, de mobilizar uma multidão nas praças e aí acabou que mobilizou uma pandemia! 

 Giordano: Tá vendo? Foram vocês que ficaram pedindo epidemia!

 Felipe: Profético! Invocou esse troço, só pode!

 Erivaldo: E foi forte, né? Porque vocês pediram só para Fortaleza, mas veio para o mundo todo!

Delirantes e malsãs. Foto Toni Benvenutti

Honório: Quando a situação melhorou, cautelosamente começamos a ensaiar nas praças, entendendo o distanciamento social. No começo foi apavorante, entender como se juntar de novo, inclusive para adaptar o trabalho e recriá-lo do ponto de vista do distanciamento. Estreamos em outubro de 2020, fizemos uma circulação por sete praças em Fortaleza e teve público assistindo com distanciamento, num momento mais brando da pandemia. O trabalho está aí, mas só Deus sabe quando vamos dançar de novo. Também é doido entender como é que fica o nosso repertório. Será que vamos fazer algum dia? É uma coisa que tem me atormentado. 

Sarah: Fiquei com vontade de comentar uma coisa. Não é exatamente uma pergunta, mas é porque tem um trabalho de vocês, do Magiluth, que parte da Primavera Árabe e estamos falando das questões políticas que permeiam os trabalhos. Fiquei me lembrando como esse nosso imaginário em relação à forma do político tem se transformado. Vamos considerar dez anos para cá – pego esse recorte porque foi mais ou menos o tempo em que comecei a militar no movimento estudantil secundarista. Em 2013, tivemos o grande babado de junho, Copa do Mundo, tudo mais, aí visualizamos o que era uma multidão na rua, coisa que há muitos anos não tínhamos, os tensionamentos em relação à esquerda, black bloc e tal, e ninguém nunca imaginou que no fim das contas ia dar em Bolsonaro, quanto mais em não ver mais multidão na rua de jeito nenhum! Então, quando vocês fazem essa pesquisa que parte da Primavera Árabe, que passa pelas Jornadas de junho e agora todas as questões concretas de produzir na pandemia, como é que a gente está pensando, e eu fico curiosa para ouvir, a forma do político no teatro?

Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse.
Giordano Castro – Magiluth

Sobre as Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas. Não percebo como um protofascismo.
Felipe –
No Barraco da Constância tem!

 

O ano em que sonhamos perigosamente. Foto: Renata Pires

Giordano: Acho tão foda essa pergunta. Acho que fomos cooptados de uma forma muito equivocada a partir daquelas manifestações de 2013, não entendemos que estávamos criando o ovo da serpente. E por que fomos cooptados? Porque a gente não discutia política. Não entendemos que estávamos criando uma cama perfeita para que a extrema direita deitasse. Isso é uma coisa muito maior, mas em movimentos menores, muita coisa aconteceu, como o Ocupe Estelita, que foi um movimento político organizado. Naturalmente, por tudo isso que estamos vivendo, os nossos trabalhos foram desembocando nessas questões, por sermos pessoas que tentam dialogar e falar coisas referentes ao nosso tempo e as coisas que nos atravessam. Então naturalmente os nossos trabalhos foram ficando mais políticos. Mas, individualmente, cada pessoa foi sendo atravessada por essa política e por isso de uma forma diferente. Hoje, confesso que já começo a pensar noutro lugar. Essa é uma discussão que tem passado muito por nós. No começo da criação do Morte e vida, ficamos nos questionando como fazer com que esse trabalho político também fosse poético. Como conseguir equilibrar? Houve momentos em que cheguei para os meninos dizendo: aqui, Karl Marx na mesa. É isso que a gente tem que falar. E hoje penso absolutamente diferente, por estar dialogando, criando em coletivo. A gente tá trabalhando e Erivaldo vem com os cortadores de cana dançando no meio do canavial. E a gente faz “uau!”. Isso é bonito e isso é político. E como equilibrar? 

Felipe: Como não sou acadêmica, posso fazer análises da realidade sem me obrigar a ter referências e nem notas de rodapé. Acho que, após 2010, eu sentia muito um movimento de evitar esse campo político, essa estrutura manifesto, evitar o Karl Marx na mesa. E aí depois teve aquela fase de trabalhos que falavam do fim do mundo. Veio a pandemia, o fim do mundo chegou e a gente vai fazer o quê? Sobrevive, né? E agora vejo umas coisas mais poéticas. Está dado: o mundo acabou e eu vou ser poética. 

Sobre essa coisa das Jornadas de junho, é muito doido como percebemos de várias maneiras. A ideia do cooptado foi muito vendida, mas esse movimento me chega como uma insurgência popular, um levante. Mas a gente tem uma mídia complicada e, durante esse processo, ela cooptou esse movimento. Mas o movimento em si tem um bravejar de coisas, de pessoas querendo menos R$ 0,20 nas passagens, direitos trabalhistas. Não percebo como um protofascismo. O fascismo está posto há muito tempo aqui.

Giordano: Concordo com você. O que eu estou querendo dizer é que aquelas marchas foram muito confusas porque existia uma pauta a princípio: começou por causa do aumento de passagem, mas não era somente isso. Depois virou tudo. E nesse “virar tudo” começamos a criar o campo que a direita precisava: o povo está na rua, não aguenta mais, temos que começar a derrubar essa pessoa daí, essa mulher, no caso. Aqueles movimentos tinham que ser muito mais do que simplesmente invadir as ruas, tinham que se tornar movimentos políticos, é o que Mujica falava muito. Eu achava de uma sabedoria muito grande quando ele dizia: “ok que as pessoas estão na rua. E quando é que isso vira política?” 

Pollyanna: Como foi pensar o Nordeste, essa ideia proposta pelo Itaú Cultural no projeto Cena Agora?

Felipe: Tive muita dificuldade porque encarei a proposta como tema: Nordeste. Aí imediatamente lembro da África. Ah, tem Moçambique, Egito, Madagascar, África do Sul, Marrocos, 54 países, mas a gente encara assim, Nordeste. Eita, vixe! Mas, durante o processo, senti que começamos a subverter essas percepções do que é esse Nordeste. Fomos desenvolvendo essas puxadas de tapete entre nós mesmos, como processo dramatúrgico, como poética. O trabalho é deboche, é político, alfineta, passa por todos esses campos.

Honório: Para mim foi o contrário. Fiquei empolgado com a “tag”: temos um lugar para brincar, isso aqui para jogar. Tem uma coisa muito forte em termos de montagem, que aconteceu no processo de edição do vídeo, mas também de construção de roteiro. Criamos um roteiro e depois fomos realocando as coisas, isso vem para cá, isso vai pra lá, porque faz mais sentido. Aí Felipe fala: “vamos pelo buraco”.

Giordano: Como vocês acharam tanto vídeo de buraco?

Felipe: Tem uma recorrência de matéria de buraco nesses jornais da Globo. Fortaleza tem tanta notícia e a pessoa vai falar de buraco? Aí joga no Youtube: “buraco” e vai de tag.

Giordano: Achei genial! Mas o meu primeiro bug nessa proposta foi o livro do Durval, A invenção do Nordeste, que li no processo de Morte e vida, que deixa claro que quem inventou o Nordeste foi o Nordeste. E agora? Que botei essa bomba na mão? Fico achando que é uma discussão tão grande, que volto lá para 2013, será que estamos atirando para o lugar certo? O que estamos discutindo? Volto para a primeira questão: por que tantos artistas saem do Recife? Porque Recife não dá condições para esses artistas. Aí é fudido isso. Nessa encruzilhada Nordeste é que eu me encontro. A gente não cuida da gente mesmo, quando você pensa que durante anos se manteve a política da seca, pelos políticos nordestinos, todos eles, o cearense, o pernambucano, o maranhense, porque isso gerava muita grana. Quando você começa a puxar uma árvore genealógica da política pernambucana e vê que o atual prefeito do Recife estava brigando com a prima dele, que também era candidata. O prefeito que antecedeu ele é casado com uma prima de Eduardo Campos e o governador estudou com a mulher de Eduardo Campos. Está na mão de uma pessoa só, de uma família só, um brigando com o outro, as mesmas pessoas! Em Natal estão brigando os Rosados contra os Alves, essas mesmas famílias, e eles se casam entre si. Será que não estou errando o foco dessa discussão?

Ivana: O capitalismo é implacável em qualquer esfera. As elites não se diferenciam muito. As elites do Nordeste não são mais boazinhas, mais gentis, menos perversas do que as elites de outros lugares, elas sentam na mesma mesa no banquete. 

Giordano: Sabe quando a gente tem aquele bolo de fio de telefone no chão e está querendo tirar só o fio vermelho, mas ele está enrolado em tanta outra coisa? Não tem como discutir o capitalismo sem discutir pautas identitárias. O preconceito contra nordestino está ligado a questões econômicas, não tem como falar de uma coisa e não falar de outra. Caralho! Quando me deram essa bomba, eu disse: “não sei o que fazer!”.

Honório: Tem várias pegadinhas, cascas de banana, você puxa uma coisa e vem outra junto. No nosso processo li um poema que tem muito a ver com o que você está falando. É de um escritor daqui, chamado Talles Azigon. Ele publicou no facebook em outubro de 2020: “Nordeste/os coronéis, os padres, os gringos/ o ridejaneirosampaulo/ não te mataram, nem matarão/ nordeste/ escritoras simpáticas amigas de ditadores,/ mulheres que montam cavalo e usam peixeira/ mulheres mais modernas que artistas plásticos do MoMA,/ machos que matam mulheres/ nordeste,/ terra de ferocidades imensas,/ terra de revoluções,/ braços e cu do Brasil/ nordeste,/ onde ladrões são políticos, literatos/ donos de grandes bibliotecas privadas,/ e bebem suco de manga com açúcar/ lavrado com sangue dos pretos/ o nordestino é antes de tudo um forte:/ forte dos reis  magos,/ forte schoonenborch,/ forte santo antonio,/ forte de santa cruz,/ e mesmo assim/ até hoje/ invadido por europeus/ nordeste,/ quantos países precisaremos erguer/ para conseguirmos ouvir nossa voz,/de nosso sotaque?”

Acho foda porque ele vai colocando as contradições do que é esse Nordeste, dos coronéis, dessas mulheres maravilhosas que andam de cavalo e usam peixeira, mas estão sendo assassinadas por esses machos. O grande escritor cearense, literato, está ligado aos movimentos contra abolicionistas, é tudo muito bizarro. A gente sabe que Gilberto Freyre foi importantíssimo para entender o regionalismo, para fortalecer a ideia de uma arte regional, e servir a quem?

Ivana: Durval Muniz, na abertura do Cena Agora, a partir dessa história que Giordano falou dos laços familiares, da influência e da importância de Gilberto Freyre, que apadrinhou Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. 

Giordano: A gente vai abrindo portas sem fim. Mas eu sou uma das pessoas do Magiluth bem contra Ariano Suassuna.

Ivana: Ai, ai, ai. Faço todas as críticas, mas uma coisa é a cabeça, outra o coração.

Giordano: Ivana, fui pra fazenda dele comer queijo com ele, conversar, ele era um velho engraçadíssimo, maravilhoso. Mas acho uma escrotidão o movimento armorial. Um movimento que nunca existiu, que ele criou tudo, como tinha que ser o desenho, como tinha que ser a dança. Foi ele quem criou, então é um movimento que não existiu. Acho isso um egocentrismo e é muito doido porque Pernambuco compra isso, compra o movimento armorial. Mas se eu falar isso aqui, eu tô fudido, mas é isso aí. Tá vendo? É difícil para mim fazer esse trabalho. 

Acho que a gente precisa ter pé no chão, olhar essas pessoas nos olhos. Não tenho que ficar endeusando Ariano Suassuna, tenho que saber quem é Ariano Suassuna. Ele pode criar o conto de fadas dele, fazer o que ele quiser – e eu acho que, enquanto criador de literatura, dramaturgo, ele é muito foda. Mas não tenho que comprar a mentira dele e nem derrubá-lo. Não sou dessas pessoas que acreditam que tenho que acabar com o legado, desmascarar Ariano Suassuna. 

Não, eu não tenho que desmascarar Ariano Suassuna! Não tenho que desmascarar Karol Conká, minha gente! Não tenho problemas com Karol Conká! Se Karol Conká foi escrota a vida dela toda, e vai continuar sendo escrota, para mim o problema é dela. Agora eu tenho que saber que, num momento das nossas vidas, enquanto eu assistia ao Big Brother e ela me dava um Big Brother, naquele momento tivemos choques de interesses. E depois a vida continua. Entendesse? Tenho choques de interesse com Ariano Suassuna quando ele quer, por exemplo, fundar um ideal de cultura pernambucana, o armorial. Não compro essa ideia, não quero que ele dite a minha forma de fazer, mas acho massa que ele criou o conto de fadas dele, tá ligado? Não quero derrubar as coisas dele, deixa ele lá, como não quero derrubar Gilberto Freyre.

Tenho que olhar para Gilberto Freyre e saber que ele criou uma grande falácia, naquela ideia de mistura pacífica de raça. Mistura pacífica de raça? O caralho! Ninguém estava estuprando ele. É nesse lugar. Aí tenho que falar com ele e dizer: “ei, brother, na boa, tu escreveu Casa-grande & senzala, olha, parabéns por essa ficção”. Vou falar com ele desse lugar. 

CONFIRA AS COLUNAS DO SATISFEITA, YOLANDA? NO SITE DO ITAÚ CULTURAL:
Existe um teatro nordestino?
Teatro de grupo no Nordeste: motivações para criar
Todo mundo tem sotaque!
Memórias de futuro, desejos de vida

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A arte possível depois do fim do mundo

Estudo nº1: Morte e Vida, processo do grupo Magiluth, emblemático em tempos de pandemia. Foto: Vitor Pessoa

Tinham acabado de se mudar para uma casa nova. Estavam submersos no movimento de criação. A vida corria como sempre corre, havia muitas coisas de ordens diversas para dar conta. De repente, sem que ninguém se apercebesse com propriedade dos avisos que vinham de outros lugares, depois de um carnaval intenso, pararam. Foram parados. Seguindo as recomendações de quem junta lé com cré, o grupo Magiluth obedece à quarentena por conta dessa pandemia que nos assola. Inseridos numa realidade ampla, complexa e cruel de desemparo às artes no país, os pernambucanos estão preocupados com a sobrevivência como grupo e como indivíduos.

A primeira estratégia de resistência à crise foi articulada rapidamente. Como estavam em pleno processo de criação de um novo trabalho, intitulado Estudo nº1: Morte e Vida, inspirado na obra de João Cabral de Melo Neto, com direção de Rodrigo Mercadante, jogaram na internet os materiais produzidos e venderam ingressos antecipados para a temporada de estreia. Giordano Castro, ator e dramaturgo do grupo, diz que “apelamos para o carinho que o público tem com o Magiluth, como um voto de credibilidade. Fizemos uma venda de ingressos antecipada sem saber ainda qual será a data de estreia. (…) Não conseguiu sanar a situação, mas no ajudou no mês de abril”.

A situação do grupo é mais crítica porque, em janeiro, a companhia inaugurou o Casarão Magiluth, um espaço cultural na Rua da Glória, na Boa Vista, bairro central da cidade do Recife. Além de servir de terreira para a trupe, a ideia é que o local abrigue eventos, espetáculos, shows, performances, lançamento de livros, cursos e o que mais a imaginação possa permitir. O Casarão de número 465 está revestido de memórias e histórias. De 1993 a 2014, funcionou lá o Espaço Inácia Rapôso Meira, tocado na base da perseverança e da dedicação pela atriz Socorro Rapôso, que interpretou Nossa Senhora na primeira montagem do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, em 1956. Ela também integrou o elenco de outra montagem da peça, que ficou em cartaz por quase 20 anos. Devido a um aneurisma que a mantém acamada há anos, Socorro se afastou das atividades do espaço.

Casarão na Rua da Glória foi inaugurado em janeiro. Foto: Estúdio Orra

O Magiluth investiu todo o caixa do grupo na empreitada. “Tudo que tínhamos entrou no Casarão.  Foram R$ 76 mil gastos.  E agora é viver dia após dia e esperar as notícias”, conta o ator Mário Sérgio Cabral. “Fizemos um acordo com a proprietária para paralisar o aluguel e conseguimos pagar as contas no dia 5 de abril. Quando chegar 5 de maio, não sabemos como será nossa vida”, complementa.

“A verdade é que acende uma luz que vai além da vermelha. Víamos o Casarão como uma carta na manga. Entendendo que a política desse governo Bolsonaro para a cultura e para o teatro é muito deficitária, a gente sabia que, em algum momento, iríamos sofrer com esses cortes, cortes de orçamento para festivais, com o corte de orçamento para incentivo à Cultura, com a perseguição que o Governo faz ao Sesc. Sabíamos que, em algum momento, essa corda ia apertar no pescoço. A carta na manga era o Casarão. Aí fomos pegos pela pandemia. Toda a sociedade. É um balde de água fria”, explica Giordano Castro.

Sem que haja uma disputa por prioridades – já que garantir a vida é a maior delas neste momento – os atores pedem atenção dos governos, nos âmbitos do município e do estado para, por exemplo, desburocratizar pagamentos de cachês, inclusive de grandes eventos como o carnaval, e de projetos, como aqueles aprovados pelo Funcultura. “Temos projetos aprovados no Funcultura que ainda não recebemos. Um deles é o projeto de Miró, que é do Funcultura 2017/2018 que ainda não foi pago. Já foi lançado outro edital, premiado outro e esse ainda não foi pago. Isso ajudaria muito o Magiluth a conseguir mais um tempo de vida, conseguir viver de uma forma mais segura dentro dessa quarentena”, explica Giordano. “É difícil não ter um diálogo dentro da Fundarpe para saber: e aí? Como é que é? Quando vem? Uma coisa era presencial, chegar lá no espaço, bater na porta das pessoas e falar. Mas agora você não sabe com quem falar. Onde estão essas pessoas? Quem pode resolver?”, pondera.

Asmáticos, Giordano e Mário Sérgio são considerados grupo de risco para a Covid-19. “Sim, tenho medo. De 1 a 10, com certeza 10. Sou asmático e medroso”, diz Mário Sérgio. Giordano, pai do bebê Gabo, de poucos meses, também sente medo. “Eu tenho muito medo de morrer. Tenho muito medo de que as pessoas ao meu redor morram, que os meus companheiros adoeçam. E eu tenho minha família, meu filho que acabou de nascer, quero curti-lo, quero viver totalmente”.

Há também a ausência da relação mais próxima com o público, o sentimento difícil de saber que pessoas que acompanham o trabalho podem ser afetadas. “Um dos espetáculos mais potentes, que para a gente é muito feliz fazer é Aquilo que o meu olhar guardou para você. Um espetáculo que a gente traz o público todo para o palco, que estamos muitos próximos, nos tocamos, conversamos. É triste não poder fazer o trabalho que a gente gosta de fazer, mas sabemos que é fundamental parar, para que a gente mantenha a vida”, complementa.

Aquilo que o meu olhar guardou para você

Além de esperar pelos “pulos de olhos fechados nas piscinas”, como diz um trecho da dramaturgia de Aquilo, o público pode aguardar – pelo que foi postado nas redes sociais – um trabalho contundente de viés social. Depois de Apenas o fim do mundo, um texto muito voltado às relações humanas, o grupo encara a realidade das migrações, se questiona o que é ser nordestino, pensa sobre a fome, o direito à terra, as desigualdades, a ruína de um sistema capitalista. Realidades que estão ainda mais brutais, escancaradas por uma pandemia. Quando o futuro se fizer presente, certamente o que vivemos nesse tempo também estará no palco do Magiluth, no Casarão da Rua da Glória e em quaisquer outros tablados possíveis.

Resposta da Fundarpe – O Satisfeita, Yolanda? conversou com a assessoria de imprensa da Fundarpe para entender a demora na liberação do projeto sobre Miró, aprovado no Funcultura Geral 2017/2018. “O referido projeto (…) apresentou problema de documentação, o que fez com que o proponente ficasse inadimplente. O mesmo solicitou ao Funcultura uma prorrogação do prazo de entrega da documentação necessária ao empenho, para resolver a situação, mas apenas no final do ano de 2019 a documentação foi regularizada. Já não havia orçamento para empenhar o projeto, condição necessária para seu pagamento. O projeto segue em análise porém, as prioridades de pagamento são para os projetos do ano vigente. Os projetos aprovados nos editais anunciados no final de 2019 receberão os recursos tão logo a Fundarpe receba autorização de pagamento da Secretaria da Fazenda estadual”, diz a nota da Fundarpe.

Com relação ao atendimento aos artistas neste período de pandemia, “enquanto durar o isolamento social, o Funcultura está com a sua Unidade de Atendimento ao Produtor Cultural funcionando com atendimento eletrônico através do e-mail: atendimentosic@fundarpe.pe.gov.br, e telefônico pelos números (81) 9.8327.0979 e (81) 3184.3026, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h, e das 13h às 17h”.

Houve ainda a reabertura do prazo para inscrição/renovação do Cadastro de Produtor Cultural (CPD) até o dia 17 de abril. “O CPC é necessário para apresentação de projetos para os editais Geral, Música e Microprojeto, que também tiveram suas inscrições prorrogadas. O envio da documentação está sendo exclusivamente através do e-mail: cpc.funcultura@gmail.com”.

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Magiluth vasculha política nos laços afetivos

Apenas o Fim do Mundo, com o Grupo Magiluth, estreou no Sesc Avenida Paulista e celebra os 15 anos da trupe. Fotos: Cacá Bernardes / Divulgação

A ação se passa num domingo

Dormi, e sonhei, envolta nas pulsações de Apenas o Fim do Mundo, espetáculo do Grupo Magiluth, a partir do texto Juste la Fin du Monde, do francês Jean-Luc Lagarce. Esses sonhos atravessados por pesadelos sinistros ocorreram ontem, semana passada ou durante todo o ano. As irrupções temporais embaralham essa narrativa complexa e propõe uma experiência rica de sensações no espaço, na memória, na ficção.

O amor em sua plenitude, o que inclui camadas feias, deterioradas, todas as vulnerabilidades desse sentimento – que não cabe em si e por isso mesmo precisa do outro para circular – ronda a temática dessa peça. É uma montagem dura e terna, libertadora, mas dolorida. E nos empurra a um mergulho profundo para enxergar os rastros, os reflexos, os sinais que imprimimos nos mais chegados. É assustador o que as palavras e os silêncios podem causar.

Apenas o Fim do Mundo, em cartaz no 13º andar do Sesc Avenida Paulista até 5 de maio, maximiza o risco, essa ousadia que a trupe recifense se impõe paulatinamente nos 15 anos de trajetória. O Magiluth iniciou as comemorações dos 15 anos com uma “ocupação” no Sesc Avenida Paulista. Foram apresentadas as montagens do repertório Aquilo Que Meu Olhar Guardou para Você (2012) e Dinamarca (2017). Além de oficinas e uma roda de conversa sobre o teatro nordestino (com Fernando Yamamoto e eu, Ivana Moura) .

Com o texto de Lagarce, a palavra comanda o desafio. O dito e o não-dito com sua dor acumulada ao longo dos anos na teia de uma família. De uma escrita delicada e sofrida, de uma economia lírica e avassaladora.

Eu entendi que esta ausência de amor de que me queixo e que foi para mim sempre a única razão das minhas covardias,
sem que nunca até então a tivesse percebido,
que esta ausência de amor fez sofrer sempre mais os outros do que eu. Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo

Entendo que o Magiluth não renuncia ao aspecto político de suas investigações anteriores. Vislumbro um deslocamento de rota, uma escavação rumo à formação do núcleo duro do poder, o treinamento dessa atuação política – a estrutura familiar. Longe de ser o paraíso na Terra, a família é uma coisa assombrosa, prodigiosa, impregnada de sentimentos que vão dos mais sublimes aos mais sórdidos.

É na essência da família onde tudo começa e prossegue em movimentos sem trégua. A peça convoca para investigações do que é família. De que laços emotivos e de compromisso estão repletas essas ideias. A concepção psicanalítica de família concebida por Freud postula-a como uma instituição humana duplamente universal. Lacan atribui à família a responsabilidade de agenciar o procedimento de humanização do indivíduo, pela invenção da subjetividade.

É evidente que os novos contextos fazem composições de famílias bastante diferentes em questões de estrutura e dinâmica – homoparentais; transparentais, monoparentais, famílias instituídas pela ciência.

Cena simultânea em dois planos

“… diante de um perigo extremo, imperceptivelmente, sem
querer fazer barulho ou cometer um gesto muito violento que acordaria o inimigo e que te destruiria imediatamente,

assumindo o risco e sem nunca ter esperança de sobreviver,
apesar de tudo,
no ano seguinte,
eu decidia voltar a vê-los, voltar atrás,
voltar sobre os meus passos e fazer a viagem,
para anunciar, lentamente, com cuidado, com cuidado e precisão

a minha morte próxima e irremediável…”  Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo                                                                                                                            

Enquanto outras produções do grupo estão impregnadas de preocupações políticas explícitas, da militância ou de referências a movimentos espalhados pelo mundo, em Apenas o Fim do Mundo esse caráter escorre pelas brechas de uma possível política que atinge corpos individuais nas guerras executadas contra alguns.

Jean-Luc Lagarce morreu jovem, aos 38 anos, em 1995, vítima da Aids. Há, possivelmente, qualquer coisa de autobiografia em Apenas o Fim do Mundo. O protagonista da peça – Luiz – está doente, com uma perspectiva de morte próxima, mas que nunca é nomeada no texto.

Luiz (Pedro Wagner) volta à casa materna, depois de uma dúzia de anos fora, para contar que tem uma doença terminal. Ele nos conta – a nós espectadores – mas não fala para a família. Dá pra conjecturar sobre a parábola do filho pródigo.

A Mãe (Erivaldo Oliveira) utiliza todas as estratégias para que Luiz se sinta bem-vindo. O irmão Antônio, guarda mágoa pelo que considera abandono, e reage com pequenas explosões de violência. A irmã Suzana, uma quase desconhecida para Luiz, oscila entre a mágoa e a excitação. Para completar o quadro, Catarina, a atenta mulher de Antônio, que também não conhecia o cunhado.

Erivaldo Oliveira faz A Mãe

Pedro Wagner faz Luiz

Em Necropolítica (N-1 Edições), o filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe segue o pressuposto de “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.”

Então “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.” Nessa visada “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.”

Mas o que isso tem a ver com Apenas o Fim do Mundo, uma peça escrita por um francês em 1990, traduzida para o português por Giovana Soar, em 2005, sobre um filho que retorna à casa materna para anunciar sua morte próxima? O que uma reunião familiar que fala sobre o amor diz sobre quem importa e que não importa?

Projeção no começo da peça

No início das apresentações são projetadas poucas frases. Uma diz respeito à Aids e aos riscos atuais.

Na página da Fiocruz, do Ministério da Saúde, está exposta uma linha do tempo sobre a epidemia da Aids.

Alguns tópicos:
1977/78 – Estados Unidos, Haiti e África Central apresentam os primeiros casos da infecção, definida em 1982;
1982 – Confirmação do primeiro caso de Aids no Brasil e identificação da transmissão por transfusão sanguínea. Adoção temporária do termo Doença dos 5 H – Homossexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína injetável), Hookers (profissionais do sexo em inglês).
1983 – Uma reportagem publicada no jornal Notícias Populares traz como manchete: Peste-Gay já apavora São Paulo. É a pior e a mais terrível doença do século – dois brasileiros mortos.
1986 – Criação do Programa Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde.
1989 – Pressionada por ativistas, a indústria farmacêutica Burroughs Wellcome reduz em 20% o preço do AZT no Brasil.
1990 – Cazuza morre aos 32 anos. Mais de 6 mil casos de Aids são registrados no país.
1991 – O Ministério da Saúde dá início à distribuição gratuita de antirretrovirais. A OMS anuncia que 10 milhões de pessoas estão infectadas pelo HIV no mundo. No Brasil, 11.805 casos são notificados
1997 – Morre o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
1999 – O Governo Federal divulga redução em 50% de mortes e em 80% de infecções oportunistas, em função do uso do coquetel anti-Aids. O Ministério da Saúde disponibiliza 15 medicamentos antirretrovirais.
2003 – O Programa Brasileiro de DST/Aids recebe prêmio de US$ 1 milhão da Fundação Bill & Melinda Gates em reconhecimento às ações de prevenção e assistência no país, que abriga 150 mil pacientes em tratamento.
2004 – Recife reúne quatro mil participantes em três congressos simultâneos: o V Congresso Brasileiro de Prevenção em DST/Aids, o V Congresso da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids e o I Congresso Brasileiro de Aids. Mais de 360 mil casos de Aids são registrados no país.

O Programa Nacional de HIV/Aids do Brasil é reconhecido, até o ano passado, como exemplo no mundo inteiro. Entidades do setor receiam retrocessos nos direitos conquistados e na prevenção à doença no governo de Jair Bolsonaro. Acendeu o sinal vermelho sobre o futuro das políticas de saúde no país.

Parece-me que o Magiluth também fala sobre isso. Dos corpos ameaçados, do que estão na mira para serem destruídos, apagados. E as políticas públicas definem muitos desses caminhos. Para os alvos preferencias, as lutas são incessantes. E suponho que tudo começa na família.

Numa das conversas da família de Apenas o Fim do Mundo, Catarina, a cunhada, conta sobre os filhos. O menino carrega o nome de Luiz.

CATARINA – Ele tem o nome do pai de vocês,
eu acho, nós achamos, nós achávamos, eu acho que é bom,
isso era do gosto do Antônio, era uma coisa, uma coisa que ele, que ele fazia questão,

Na minha família há o mesmo tipo de tradição, …
o nome dos pais ou do pai do pai do filho macho, o primeiro rapaz, essas histórias todas.
E depois,
e já que você não tinha filhos,

o Antônio diz que você não vai ter
já que você não tem nenhum filho,
é sobretudo por isso,
já que você não vai ter nenhum filho,

parecia lógico,
foi o que nos dissemos, que nós o chamássemos Luiz,
como o seu pai, e, portanto, como você.

ANTÔNIO: Mas você continua sendo o mais velho, não há dúvida nenhuma em relação a isso.

Não há luta política confessada no texto de Lagarce. As conspirações, boicotes e desejos inconfessáveis de vingança vêm pela via do afeto, dessa ligação mais íntima com os parentes, nutridos por um cromatismo de amor.

A cidade de São Paulo entra pelas vidraças

(o que eu quero dizer)
«no fim das contas»
como que por desencorajamento, como que por cansaço de mim,
que eles me abandonaram sempre porque eu peço o abandono
Eu acordava com a ideia estranha e desesperada e indestrutível também
de que me amavam vivo como gostariam de me amar morto
sem nunca poder nem saber me dizer nada. Luiz, fala de Apenas o Fim do Mundo

A direção compartilhada entre Giovana Soar – que traduziu o texto para uma montagem da Companhia Brasileira de Teatro em 2005, e Luiz Fernando Marques, Lubi, do grupo XIX maximiza competências. Giovana traz um olhar denso para o texto, uma atenção sutil aos detalhes periféricos, o cuidado com a fala e as inflexões, ampliando as possibilidades de leitura desse peça complexa e profunda. Lubi tratou da encenação, da ocupação do espaço cênico, inventou ambientes da cena naquela sala multiuso com uma criatividade impressionante. As cenas – nascem e desaparecem – em cada canto, com os solilóquios das personagens. Eles desenvolvem uma direção envolvente, compõem com seus atores cenas admiráveis.

A disposição das situações nos cômodos fechados de uma casa e as dinâmicas entre as cenas são bem solucionados na apropriação da sala multiuso do Sesc Avenida Paulista. A varanda iluminada se abre para a cidade, remetendo ao confronto Metrópole/província e de suas articulações e projeções de desejos das personagens. É uma das paisagens mais icônicas de São Paulo e isso remete a muitas reflexões sobre poder, capitalismo, máquinas desejantes. O espetáculo foi erguido a partir da ideia de site specific, segundo o grupo.

Site specific é um termo utilizado há décadas para designar obras traçadas de acordo com o espaço na sua concepção e execução, transformando ou incorporando o espaço ao trabalho. Atualmente pode ser qualquer trabalho cênico que ocorra fora de um teatro tradicional.

No fundo, a solidão de tudo

A trajetória do Magiluth está pontuada por criações de dramaturgias próprias, montagens irreverentes de textos consagrados, com direito ao improviso, aos exageros, a expansões de teatralidades. Em Apenas o Fim do Mundo o risco passa pela contenção. É na moderação que reside o desafio. “A dramaturgia de Lagarce é poderosa, preponderante, quase insuportável”, escreve Giovana Soar no programa.

A palavra é um olho d’água que o elenco trata com sensibilidade para facilitar o rio caudaloso. Os atores fazem o jogo da presença com sutileza nas minúcias, nas ondulações. A violência interna das personagens garante uma dimensão profunda e dolorosa.

Espaço mínimo cria sensação de sufocamento

Após muitos anos longe da casa materna, sem contato com seus parentes, o escritor Luiz volta a sua cidade natal, para um almoço em família. Ele iria falar sobre morte iminente. É um domingo, mas poderia ser a vida inteira, porque os procedimentos são os mesmos. Ao encarar o peso da figura materna, sua – praticamente desconhecida – irmã mais nova Suzana, seu ciumento irmão Antônio, e sua cunhada Catarina, ressentimentos vem à tona.

Todos os artistas brilham: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner. Todos usam roupas do cotidiano, inclusive os que defendem personagens femininas. As palavras reverberam no corpo e no espaça. Esse texto não realista, inspirado em analogias realistas permite que os artistas potencializem a presença.

Pedro Wagner carrega um Luiz contido, que emana ondas de sentimentos em seus silêncios, em sua concentração. O motor do seu “ganhar o mundo” não fica claro – o abandono de que os parentes falam. Talvez o fato de ser homossexual tenha sido decisivo para a partida. Enquanto o prestígio do dramaturgo crescia, lá fora, a família acompanhava suas vitórias através do noticiário. O escritor só enviava cartões postais nos aniversários com duas ou três frases.

o que a gente espera,
é que o resto do mundo desapareça com a gente,
que o resto do mundo poderia desaparecer com a gente,
se apagar, se devorar e não mais sobreviver à mim.

Na cena 10, Luiz quase silente abre as comportas das palavras:

Que vão fazer de mim quando eu não estiver mais aqui?
A gente gostaria de mandar, de reger, de aproveitar mediocremente da perturbação deles e conduzi-los um pouco mais.
A gente gostaria de ouvi-los, eu não os ouço,
obrigá-los a dizer besteiras definitivas
e saber enfim o que eles pensam.

A figura materna suporta um peso, do conflito do amor / ódio dessa família. Erivaldo Oliveira trabalha as contradições dessa Mãe, que tenta controlar as relações humanas nessa casa, vislumbrar os segredos, entender os silêncios, as meias-verdades, as omissões.

Há diálogos incríveis e solilóquios arrebatadores para todos os papéis.

Acerto de contas entre os irmãos Antônio (Mário Sergio, em pé) e Luiz (Pedro Wagner, de costas)

Bruno Parmera faz a irmã Suzana

Mário Sergio Cabral é irmão de Pedro Wagner e são também manos na ficção. Na pele de Antônio, Mário Sérgio eleva o grau da emoção nas cenas de desabafos, que jorram de uma fonte profunda.

Suzana, a irmã, é feita por Bruno Parmera, que idealiza e deseja a vida do mais velho da prole. Giordano Castro aproveita bem o nervosismo e a submissão da cunhada, Catarina, com nuances interessantes. Giordano também investe no contraponto mais humorado em algumas cenas, para dar um respiro a tanta tensão. Lucas Torres não dispõe de nenhum papel, mas cuida das mudanças de cenas, deslocando objetos, respondendo pela contrarregragem e tocando bateria na banda.

Mesmo o fato do elenco tocar mal os instrumentos da banda parece uma camada a mais. Enquanto a trilha sonora gravada assume a função de criar ambientes, a música tocada bate em outro lugar. Esse som causa ruído… desconforto… como os insuportáveis incômodos que famílias de LGBTS provocam nos encontros que deveriam ser festivos. Aqueles vigilantes mais próximos do desejo alheio… esses seres que trafegam freneticamente entre a intimidade e a estranheza.

Na peça experimentamos estados de desconforto, nervosismo, sensação de sufocamento. Claustrofobia que vem deles e atinge o público. Os monólogos na tentativa de diálogos são fulminantes. O estranho familiar, de que fala Freud, produz esse sentimento de ultrapassagem, como o atropelamento de um estranho nem tão desconhecido assim.

Carregando o desassossego desse corajoso e implacável espetáculo intuo que a melhor opção ainda seja o amor, mesmo em segredo, mesmo que não pareça justo, mesmo que machuque.

Ficha técnica

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques
Assistência de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean Juc-Lagarce
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner
Desenho de luz: grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Estúdio Orra
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Apenas o fim do mundo
Quando: de 11 de abril a 5 de maio, de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 18h. Sessões extras: 1º/05 (quarta-feira), às 18h; 2/5 (quinta), 3/5 (sexta) e 4/5 (sábado), às 17h. Até 05/05
Onde: Sesc Avenida Paulista– Arte II (13º andar)
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 1h40 min

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Magiluth: uma nova peça para falar de amor

Magiluth comemora 15 anos com a estreia de Apenas o fim do mundo. Foto: Estúdio Orra

Grupo pernambucano comemora 15 anos com a estreia de Apenas o fim do mundo. Foto: Estúdio Orra

Desde os últimos dias do mês de março, o 13º andar do Sesc Avenida Paulista, inaugurado em abril do ano passado em São Paulo, é ocupado pelos atores do Magiluth. Através das paredes envidraçadas, a cidade se exibe, apressada e urgente, como sempre, a partir de uma das paisagens mais icônicas da capital. Do lado de dentro, apesar da aparente proteção em meio ao caos, também há urgências e a rotina está exaustiva. Prazerosa, desafiadora, mas exaustiva. Além de apresentar os espetáculos Aquilo que o meu olhar guardou para você e Dinamarca em semanas consecutivas e sessões sempre cheias, o grupo recebeu oficineiros que se inscreveram, interessados em acompanhar o processo de montagem do novo espetáculo, Apenas o fim do mundo, que estreia nesta quinta-feira (11), na mesma sala em que foi criado.  

A ação se passa em um domingo, ou ainda, ao longo de quase um ano inteiro, somos avisados logo no início do texto do francês Jean Luc-Lagarce. Talvez tenha sido mais ou menos assim a gestação de Apenas o fim do mundo. Em julho do ano passado, já tendo se aproximado da dramaturgia, o grupo fez uma residência artística no mesmo Sesc Paulista, aberta a interessados, com Giovana Soar, que traduziu o texto para uma montagem da Companhia Brasileira de Teatro em 2005, e Luiz Fernando Marques, Lubi, do grupo XIX. Em outubro, numa parceria com o Feteag, uma nova residência artística, desta vez no Centro Cultural Benfica, no Recife. Nos dois momentos, o processo contou com a apresentação de ensaios abertos ao público. Os atores passaram ainda duas semanas no sítio Valado, em Chã Grande, a 80 km da capital pernambucana, ao redor de uma mesa, dedicados ao texto.

Apesar de muito coerente com a trajetória do grupo, a escolha de montar essa dramaturgia é uma tarefa de grandes proporções para o Magiluth. “Como atores, eles nunca tinham encarado um texto com essa complexidade, tanto em tamanho quanto em profundidade e formalismo”, explica Giovana, que assume a direção ao lado de Lubi. A atriz, diretora e tradutora conheceu o grupo no Rumos Teatro, em 2011. Antes da estreia de Viúva, porém honesta, assistiu aos ensaios, mas trabalhou mais diretamente com os atores durante o processo de Dinamarca. Já com Lubi, a parceria vem desde a direção de Aquilo que o meu olhar guardou para você (2012).

Acostumados a trabalhar com dramaturgias próprias ou mesmo com adaptações, mas em processos mais livres, que permitiam, por exemplo, o improviso, os atores agora encaram palavras que precisam ser ditas com cuidado, para que não corram o risco de se perderem ou de não alcançarem a devida dimensão. “Eles estão acostumados a uma dramaturgia muito mais coloquial, a falar a palavra que querem, a colocar um caco, fazer piada com o cotidiano, e isso está proibido! Eu tenho sempre um chicote na mão!”, brinca Giovana.

Dramaturgia é do francês Jean Luc-Lagarce

Dramaturgia é do francês Jean Luc-Lagarce

Apenas o fim do mundo é um texto vertical, que esmiúça sentimentos a partir de uma relação familiar. Luiz decide reencontrar a mãe, o irmão e a irmã ao se deparar com a iminência da morte. Basicamente, é uma peça sobre o amor. Uma observação interessante é que Pedro Wagner e Mário Sérgio Cabral, irmãos na vida real, serão irmãos também na ficção. Pedro faz Luiz; Mário é Antônio; Erivaldo Oliveira é a mãe; Suzana, a irmã, é feita por Giordano; e a cunhada, Catarina, ficou com Bruno Parmera. Lucas Torres não está com nenhum personagem, mas é fundamental para o espetáculo, avisa Giovana. “Eles têm uma coisa louca de fazerem tudo! Não tem técnico de luz, de som, eles montam tudo, operam tudo! Por isso Lucas é uma peça primordial”.

Diante da iminência da morte, Luiz (Pedro Wagner) reencontra a família

Diante da iminência da morte, Luiz (Pedro Wagner) reencontra a família

Mesmo com o rigor no trabalho com a palavra, o jogo que é a base da performatividade do grupo se revela na construção das cenas. O espetáculo foi erguido a partir da ideia de site specific, da apropriação do espaço, explica o ator Giordano Castro. “Essa estreia será de muitas descobertas. Nunca vamos ter um espetáculo fechado: ele vai acontecer aqui em São Paulo, mas não necessariamente vai acontecer do mesmo jeito no Recife. Estamos usando o espaço, com o que ele nos proporciona. Em cada lugar que a gente chegar, vamos ter que repensar o trabalho novamente. Isso é muito doido!”, comenta.

A expectativa é que o Recife só veja a peça no segundo semestre. “Estamos terminando uma pesquisa sobre o bairro de São José, vamos fazer a criação de parte do roteiro de uma série em parceria com Hilton Lacerda, e ainda queremos fazer um novo espetáculo de rua. No meio disso tudo, tem a comemoração dos 15 anos do grupo. Pretendemos apresentar algumas peças do repertório e o trabalho novo”, adianta.

A temporada em São Paulo vai até 5 de maio. Antes disso, entre os dias 17 e 20 de abril, os atores ministram uma oficina intitulada “Jogo Total”. As inscrições já estão encerradas. No dia 17, às 20h30, haverá um bate-papo com Ivana Moura, uma das editoras do Satisfeita, Yolanda?, e o diretor do grupo Clowns de Shakespeare, de Natal, Fernando Yamamoto, sobre “Os últimos 15 anos de teatro no Nordeste”. A entrada é gratuita.

Ficha técnica

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques
Assistência de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean Juc-Lagarce
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner
Desenho de luz: grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Estúdio Orra
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Apenas o fim do mundo
Quando: de 11 de abril a 5 de maio, de quinta a sábado, às 21h, e aos domingos, às 18h
Onde: Sesc Avenida Paulista
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 1h40 min

 

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Magiluth no reino feliz da Dinamarca

Magiluth estreia Dinamarca, 9º espetáculo do grupo. Foto: Bruna Valença

Magiluth estreia Dinamarca, 9º espetáculo do grupo. Foto: Bruna Valença

Não é de hoje que o Magiluth pensava em enveredar por uma dramaturgia clássica. Lembro que, quando o grupo estava prestes a comemorar dez anos, o ator e dramaturgo Giordano Castro falava com entusiasmo em Otelo. A vida foi levando para outros caminhos, mas no processo de criação do espetáculo anterior, O ano em que sonhamos perigosamente (2015), eles chegaram a cogitar utilizar trechos de Shakespeare em meio ao caos fragmentado que se tornou a encenação; na ocasião, Tchékov se impôs, cabia perfeitamente, e ocupou quaisquer possíveis espaços. Ao decidirem continuar investigando o tempo presente, nas palavras do ator e diretor Pedro Wagner, “um terreno fértil para golpes, para uma direita extremamente conservadora que está tomando conta de todo os lugares do mundo”, chegaram a Hamlet.

Dinamarca, no entanto, que estreia nesta quarta-feira (2), no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, no Recife, não se trata de uma adaptação ou versão do bardo inglês. Shakespeare foi ponto de partida, mas pelas palavras dos integrantes do grupo, talvez funcione mais como esteio ou trampolim. Trechos, frases e sentidos de Shakespeare estão lá, mas não a linearidade, ou mesmo todos os personagens. “Dinamarca só existe porque existiu O ano. Entendemos que a maneira como a gente estava dialogando com o texto vinha da atmosfera e das coisas que tínhamos discutido enquanto dramaturgia ou exercício de cena para a criação do Ano“, explica Pedro Wagner, que assume a direção e, desta vez, não integra o elenco. “Não foi uma escolha inicial de ter um olhar de fora para dirigir. O que aconteceu foi que passei muito tempo durante os ensaios fazendo outros trabalhos, no audiovisual, no teatro com Felipe Hirsch e, quando voltei, o jogo entre os meninos já estava muito estabelecido. Era difícil conseguir me inserir. Foi incompetência minha mesmo”, brinca. Estão no elenco Giordano Castro, que também assina a dramaturgia, Erivaldo Oliveira, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral e o estreante Bruno Parmera (que já estava em cena substituindo Pedro Wagner em apresentações de Luiz Lua Gonzaga, mas ainda não tinha participado efetivamente de um processo de criação com o grupo).

O personagem disparador para as discussões que o grupo pretende levar à cena foi Claudius, tio de Hamlet, que casa com a cunhada um mês depois da morte do rei, pai de Hamlet. “Ele fala pro Hamlet que está tudo bem, que ele é como um filho, que Hamlet não pode ficar chorando pra sempre. Isso nos interessava, esse estado de saber que não está tudo bem, mas olhar no olho e fazer o outro acreditar nisso”, diz Wagner. No espetáculo, um grupo de pessoas participa de uma festa de casamento. Dizem beber, mesmo que não haja nenhuma bebida. Evitam conflitos. Querem viver momentos agradáveis. “No Ano, aquele grupo estava no epicentro de um furacão. Agora, estamos na periferia, e pensamos que esse furacão não nos afeta. Vivemos em bolhas. Você só vê o que quer ver, só lê o que quer, e aí desperdiçamos a possibilidade de diálogo, de crescimento, de perceber que existem pontos revelantes do outro lado. Essas bolhas não são privilégio da esquerda ou da direita”, defende Giordano Castro.

Há também uma tentativa de problematizar nossa identidade em relação ao que nos parece um modelo a ser seguido. “Elsinore não cabe na Dinamarca contemporânea, o povo mais feliz do mundo, que está em todas as listas de melhor distribuição de renda, qualidade de vida. O que seria tentar ser esse dinamarquês aqui? Vestir essa camisa que não me cabe, mas que eu tento vestir mesmo assim?”, questiona o diretor. O que pode significar, por exemplo, Erivaldo Oliveira dizer que é dinamarquês, tem olhos azuis e cabelos ruivos? Mesmo sendo óbvio que não? A felicidade a todo custo, que se instaura teoricamente pela ausência de conflitos, é uma das questões em Dinamarca.

Ainda que seja uma decorrência do O ano em que sonhamos perigosamente ( e não há a decisão sobre uma possível trilogia) a relação que o grupo vai tentar construir com o espectador é outra. Digamos…mais palatável. Talvez pela dramaturgia menos entrecortada, menos cheia de referências, por uma construção mais fluida de pensamento. Ainda assim, avisa Giordano Castro, “pedimos que as pessoas cheguem mais perto, mas não tão perto assim”, ri. De qualquer forma, as influências, seja do pop, do brega, de fácil identificação e adesão, presentes em muitos trabalhos do Magiluth, em certa medida estão de volta. Pode aguardar David Guetta ou Leonardo Sullivan, por exemplo. “Quando o amanhã chegar, vou te esperar sorrindo”, assumem em algum momento. Será mesmo?

Espetáculo é uma consequência da montagem anterior, O ano em que sonhamos perigosamente

Espetáculo é consequência da montagem anterior, O ano em que sonhamos perigosamente

Um dos destaques no trabalho deve ser a trilha sonora executada ao vivo pelo duo Pachka, formado pelos músicos Miguel Mendes e Tomás Brandão (os mesmos que trabalharam com a Remo Produções em Rei Lear). Eles fazem música não só com instrumentos, mas com dispositivos eletrônicos, e participaram de todo o processo de criação do espetáculo ao lado do Magiluth. O grupo também contou com a colaboração de Giovana Soar e Nadja Naira, da Companhia Brasileira de Teatro, como provocadoras, e voltaram a trabalhar na direção de arte com Guilherme Luigi.

Depois das poucas apresentações no Teatro Marco Camarotti (dias 2, 3, 5 e 6, às 20h), o Magiluth segue para o Barreto Júnior, no Pina. Provavelmente, no mês de setembro, o grupo faz uma temporada em São Paulo.

Ficha técnica
Direção: Pedro Wagner
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Desenho de Som: Miguel Mendes e Tomás Brandão (PACHKA)
Desenho de Luz: Grupo Magiluth
Direção de Arte: Guilherme Luigi
Fotografia: Bruna Valença
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Técnico: Lucas Torres
Realização: Grupo Magiluth

Serviço:
Dinamarca
Quando: Quarta (2), quinta (3), sábado (5) e domingo (6), às 20h
Onde: Teatro Marco Camarotti, Sesc Santo Amaro
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada)
Duração: 1h20min
Classificação : 16 anos

 

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