
Bolor, criação em dança de Gabi Holanda, Guilherme Allain e Isabela Severi,
Hermilo Borba Filho morreu em 1976 acreditando que o mamulengo poderia resistir à televisão. Quase cinquenta anos depois, numa época em que influenciadores ensinam “cultura nordestina” no TikTok, o Teatro Hermilo Borba Filho recebe uma pergunta incômoda: ainda faz sentido defender tradições populares quando quase ninguém mais sabe direito o que isso significa?
A Semana Hermilo celebra a figura de Hermilo Borba Filho (Palmares, 8 de julho de 1917 — Recife, 2 de junho de 1976), dramaturgo, advogado, escritor, crítico literário, romancista, diretor, jornalista, teatrólogo e tradutor. O evento, realizada pela Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, que começa nesta terça-feira (08) e vai até 20 de julho, não promete respostas fáceis. Pelo contrário: reúne seis espetáculos que colocam lado a lado criações experimentais sobre plantation açucareira e comédia tradicional de bonecos, oficinas com mestres da cultura oral e adaptações universitárias de Brecht. É programa para quem não tem medo de sair do teatro com mais perguntas do que entrou.
A abertura traz uma novidade editorial: o lançamento do livro Cultura, Diversidade de um Conceito, do professor Flavio Brayner, mestre em história, doutor em educação e pós-doutor em filosofia, que também ministrará palestra sobre o tema às 19h. A escolha não é casual – em tempos de disputas sobre o que constitui cultura “autêntica”, a reflexão conceitual se torna urgente.
Bolor: crítica decolonial à plantation Açucareira
O destaque da noite de abertura fica por conta de Bolor, criação em dança de Gabi Holanda, Guilherme Allain e Isabela Severi, vencedora do Prêmio O Solo do Outro, iniciativa da Prefeitura do Recife dedicada à pesquisa e criação de espetáculos de dança. O espetáculo estabelece um diálogo crítico com a obra Açúcar de Gilberto Freyre, questionando as narrativas romantizadas sobre a formação brasileira através da economia açucareira. O trabalho mergulha no “solo violentado da plantation açucareira” para dar protagonismo aos fungos como metáfora de resistência e regeneração, contrastando radicalmente com a perspectiva freyreana que enfatizava a doçura e o refinamento civilizatório do açúcar.
Enquanto Freyre celebrava o açúcar como elemento formador da identidade nacional e símbolo de miscigenação harmoniosa, Bolor revela a devastação ecológica, a violência estrutural e o empobrecimento da biodiversidade causados pela monocultura açucareira, propondo uma estética da decomposição que valoriza processos subterrâneos e invisíveis de transformação.
A obra incorpora reflexões dos pensadores Malcom Ferdinand e Anna Tsing para construir uma perspectiva decolonial sobre os legados da plantation. Ferdinand, com sua ecologia decolonial, demonstra como a plantation açucareira estabeleceu o primeiro modelo de devastação ambiental sistemática, criando padrões extractivistas que persistem no capitalismo contemporâneo e destruindo formas tradicionais de habitabilidade entre humanos e não-humanos. Anna Tsing, por sua vez, oferece o conceito de “paisagens arruinadas” e a compreensão dos fungos como agentes de regeneração em ecossistemas devastados pelo capitalismo, formando redes subterrâneas de colaboração multiespécie que facilitam o crescimento de novas formas de vida.
O espetáculo utiliza essas perspectivas para imaginar como os fungos podem regenerar terras devastadas pelo açúcar, explorando redes de resistência e solidariedade que operam no “subterrâneo quase invisível” e tramam “outras possibilidades de se construir aliança e erguer futuros” a partir das ruínas da plantation, estabelecendo assim uma crítica radical às narrativas hegemônicas sobre a formação brasileira e propondo caminhos decoloniais de regeneração ecológica e social. O trabalho tem sessões nos dias 8, 9, 19 e 20.

Vossa Mamulengecência criado a partir da obra de Ariano Suassuna em diálogo com Hermilo Borba Filho
Vossa Mamulengecência, comédia escrita e dirigida por Arthur Cardoso, celebra a rica tradição do teatro de mamulengos pernambucano. A peça – vencedora do Prêmio de Fomento e Pesquisa O Aprendiz em Cena 2024/2025, outro mecanismo de fomento da gestão municipal voltado para estimular a produção cênica na cidade, com foco na formação de novos diretores – acompanha as aventuras do mestre de mamulengos e vendedor de perfumes Cheiroso Dorabela, que utiliza o humor como ferramenta para apresentar suas peças no teatro de bonecos.
O espetáculo estabelece conexões diretas com a obra A Pena e a Lei de Ariano Suassuna e dialoga com textos fundamentais de Hermilo Borba Filho, como A Fisionomia e O Espírito do Mamulengo e o conto O Perfumista.
O elenco composto por Thiago Augusto, Victória Cavalcanti, Camomila Boudoux e João Tavares dá vida tanto aos personagens humanos quanto aos mamulengos que os acompanham, contando com uma equipe técnica que inclui preparação de elenco, produção musical de Lígia Fernandes, figurinos de Mariana Barbosa, bonecos criados por Luan Lucas Leite e iluminação de Natalie Revorêdo. Com apresentações nos dias 10, 11, 12 e 13 de julho, sempre às 19h30, o espetáculo de 1h30 de duração promete um final “digno de um espetáculo de Ariano Suassuna”.

Luz nas Trevas, adaptação de Bertolt Brecht pelos alunos da UFPE, com direção de Marcondes Lima.
A atuação universitária se faz presente de forma significativa na programação. Luz nas Trevas (15 de julho, às 20h), adaptação de Bertolt Brecht pelos alunos da UFPE sob direção do professor Marcondes Lima, explora os princípios do teatro épico brechtiano, buscando provocar reflexão crítica do público sobre questões sociais e políticas. A montagem conta com classificação indicativa de 16 anos e reúne um elenco expressivo de 24 atores: Acácia Mendes, Cheshire Mills, Clara Barbalho, Edla Ferreira, Flavio Soares, Gilliard Medeiros, Giovanna Hortência, Gusta Machado, Haru Jun, Isabelle Lemos, João Xavier, Jotapê, Lisbela de Holanda, Malu Oliveira, Marina Lino, Matheus Travassos, Max Teles, Mel Leão, Murilo Lima, Nelba Santos, Pauly, Rafael de Souza, Samuel Kapus e Victor Filho. A assistência de direção fica por conta de Gui Vicente, e a iluminação é assinada por Tycia Ferraz.
Tudo de Novo no Front (16 de julho) apresenta uma proposta igualmente experimental, nascida do exercício acadêmico. Como conclusão da disciplina Laboratório de Encenação do curso de Licenciatura em Teatro da UFPE, a montagem surge de um processo de criação coletiva conduzido pelos próprios estudantes, sob a orientação das professoras Agrinez Melo e Vika Schabbach, com assessoria do professor Marcondes Lima. Inspirada na dramaturgia de Fernando Arrabal, especificamente em sua peça Piquenique no Front, a montagem constrói uma situação de absurdo perturbador: durante uma guerra, pais visitam o filho no front e organizam um piquenique dominical ao som de tiros e bombardeios, transformando o campo de batalha em cenário de reunião familiar.
A proposta expõe a naturalização grotesca da violência através de uma inversão irônica que transforma horror em cotidiano doméstico. Essa estratégia cênica, característica do teatro do pânico de Arrabal, ecoa também as experimentações do absurdo europeu, mas dialoga diretamente com as inquietações hermilianas sobre os mecanismos sociais que tornam a brutalidade aceitável. A encenação universitária, ao escolher essa dramaturgia provocadora, coloca em questão a banalização dos conflitos armados e nossa capacidade coletiva de normalizar situações extremas, transformando-as em eventos familiares banais.
Completam a programação cênica os espetáculos de dança Dança Caminhos, de Fabinho Soares (17 de julho), e Passo, da Compassos Cia. de Dança (18 de julho), oferecendo perspectivas contemporâneas sobre movimento e expressão corporal.
Saberes Ancestrais em Cena
Um momento significativo da programação acontece no dia 18, quando a ancestralidade cultural nordestina encontra espaço central no evento. A mestra Nice Teles, primeira mulher negra condecorada mestra do cavalo-marinho da Zona da Mata Norte pernambucana, oferece uma aula-espetáculo sobre Personagens Femininos no Cavalo-marinho“. Sua presença representa o reconhecimento de saberes tradicionais e principalmente a urgência de incluir perspectivas de gênero e raça nas discussões sobre cultura popular.
A participação de Nice vai além da apresentação. Entre os dias 15, 16 e 17 (das 14h às 17h), ela ministra oficina sobre o mesmo tema, oferecendo formação prática em conhecimentos que resistiram séculos de invisibilização. É uma oportunidade rara de acessar saberes transmitidos oralmente ao longo de gerações, mantidos vivos principalmente por mulheres das comunidades rurais.
Reflexões Teóricas e Formação
A dimensão formativa da Semana Hermilo inclui palestras que articulam passado e presente das artes cênicas pernambucanas. No dia 15, o professor Roberto Lúcio aborda a Contribuição de Hermilo Borba Filho para a formação de atores e atrizes do Recife de 1950 a 1970, período crucial para a consolidação do teatro moderno pernambucano.
As rodas de conversa dos dias 16 e 19 promovem diálogos entre diferentes perspectivas teatrais. O professor Marcondes Lima conduz discussão sobre “cena épica segundo Brecht e Hermilo”, explorando conexões entre o teatro político alemão e as experimentações hermilianas. Já Felipe Koury aborda a “antropologia do gesto cênico”, campo de estudos que ganha relevância crescente nos debates contemporâneos sobre corporeidade e performance.
As oficinas gratuitas complementam a programação formativa. Antropologia do Gesto“, ministrada por Felipe Koury nos dias 11, 12 e 13 (das 9h às 12h), oferece perspectiva teórico-prática sobre estudos do movimento cênico. As inscrições para ambas as oficinas devem ser feitas pelo email centroapolohermilo.pauta@gmail.com.
Cenário Cultural em Transformação
A realização da Semana Hermilo acontece num contexto de profundas transformações no cenário cultural recifense. A cidade enfrenta desafios crescentes na manutenção de espaços dedicados às artes cênicas, enquanto a especulação imobiliária pressiona territórios históricos como o Recife Antigo. O Teatro Hermilo Borba Filho, inaugurado em 1988, resiste como um dos poucos equipamentos públicos dedicados exclusivamente ao teatro, mas enfrenta as limitações de uma infraestrutura que demanda investimentos urgentes em modernização técnica, acessibilidade e conforto. A defasagem tecnológica dos equipamentos de som e iluminação, somada à necessidade de adequações que garantam pleno acesso a pessoas com deficiência, evidencia como a precarização dos investimentos públicos em cultura compromete a qualidade das produções e a capacidade do equipamento de cumprir sua função social de democratização do acesso às artes cênicas.
Os editais que deram origem aos espetáculos principais – O Solo do Outro e O Aprendiz em Cena — representam iniciativas importantes da gestão municipal para estimular a criação teatral recifense, oferecendo oportunidades concretas para artistas emergentes e projetos experimentais. No entanto, esses mecanismos pontuais evidenciam a ausência de uma política cultural continuada que articule ações de curto, médio e longo prazo para o desenvolvimento sustentável das artes cênicas. Embora essenciais para a emergência de novos trabalhos, editais isolados não substituem investimentos estruturantes em formação de público, manutenção de equipamentos, criação de circuitos de apresentação e consolidação de uma cena teatral que transcenda a lógica de projetos individuais. O desafio permanece: como transformar iniciativas pontuais em política cultural que efetivamente consolide o Recife como território fértil para as artes cênicas, honrando o legado hermiliano?

Exposição permanente do pensamento de Hermilo Borba Filho, no corredor do teatro. Foto: Andréa Rêgo Barros
SERVIÇO
Semana Hermilo 2025
Período: 8 a 20 de julho
Local: Teatro Hermilo Borba Filho – Recife Antigo
Entrada: Gratuita
Inscrições para oficinas: centroapolohermilo.pauta@gmail.com
PROGRAMAÇÃO
08/07 (Terça-feira)
18h30 – Abertura oficial
18h45 – Lançamento do livro Cultura, Diversidade de um Conceito
19h – Palestra com professor Flavio Brayner
19h45 – Espetáculo Bolor
09/07 (Quarta-feira)
19h – Espetáculo Bolor
10/07 (Quinta-feira)
19h – Espetáculo Vossa Mamulengência
11/07 (Sexta-feira)
9h às 12h – Oficina: Antropologia do Gesto
19h – Espetáculo Vossa Mamulengência
12/07 (Sábado)
9h às 12h – Oficina: Antropologia do Gesto
19h – Espetáculo Vossa Mamulengência
13/07 (Domingo)
9h às 12h – Oficina: Antropologia do Gesto
19h – Espetáculo Vossa Mamulengência
15/07 (Terça-feira)
14h às 17h – Oficina: Personagens Femininos no Cavalo-Marinho
19h – Palestra com professor Roberto Lúcio
20h – Espetáculo Luz nas Trevas
16/07 (Quarta-feira)
14h às 17h – Oficina: Personagens Femininos no Cavalo-Marinho
19h – Roda de conversa com professor Marcondes Lima
20h – Espetáculo Tudo de novo no front
17/07 (Quinta-feira)
14h às 17h – Oficina: Personagens Femininos no Cavalo-Marinho
19h – Espetáculo Dança Caminhos
18/07 (Sexta-feira)
17h – Aula-espetáculo com Mestra Nice
19h – Espetáculo Passo
19/07 (Sábado)
17h – Palestra com professor Felipe Koury
19h – Espetáculo Bolor
20/07 (Domingo)
19h – Espetáculo Bolor