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O genial cérebro do escritor pisoteado
Crítica do espetáculo
Traga-me a cabeça de Lima Barreto

Ator baiano Hilton Cobra, da Cia. dos Comuns, do Rio de Janeiro. Foto: Kaian Alves

Sexta-feira fui assistir presencialmente ao espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto, solo magistralmente defendido pelo ator baiano Hilton Cobra. Estava acompanhada do ator recifense Carlos Ataíde, do elenco de As Conchambranças de Quaderna. No Centro Cultural São Paulo encontramos com Bruna Recchia, também do Quaderna. Sentei-me na primeira fileira (os mais chegados sabem desse meu toque!, ou é tique?), eles subiram para a terceira fileira.

Já havia visto Traga-me a cabeça de Lima Barreto online, e sabia da potência do espetáculo. Mas ao vivo, realmente!!!, é outra magia!

A encenação circula há quatro anos, celebrada por onde passa. Tantas carnes, tantos nervos, tantas humilhações e resistências em um peça de uma hora de duração. Foi em 2017, quando completou 40 anos de carreira que José Hilton Santos Almeida – o grande Hilton Cobra – ergueu essa montagem potente, criativa, decolonial, com dramaturgia de inspiração poética e política de Luiz Marfuz e direção apaixonante, precisa, ousada e aguerrida de Onissajé (Fernanda Júlia).

Traga-me a cabeça de Lima Barreto nos atravessa com questões mais que urgentes, da reafirmação do protagonismo negro, combate a depreciação intelectual histórica e ainda vigente da figura do negro, engajamento militante da Cia dos Comuns (formado majoritariamente por artistas negros) e o empenho de Hilton Cobra, entre muitas outras coisinhas miúdas.

O racismo e a eugenia são forças confrontadas na peça. O termo eugenia (ou eugenismo) foi cunhado, em 1883, por Francis Galton (1822-1911), para designar ‘bem-nascido’, uma falsa ciência. A ‘eugenia nazista’, fez parte da ignóbil ideia de ‘pureza racial’, que conduzida por Adolf Hitler desembocou no Holocausto.

O texto fictício de Marfuz apresenta um congresso com os eugenistas exigem a exumação do cadáver do escritor Lima Barreto (1881-1922), para uma autópsia, a fim de esclarecer “como um cérebro inferior poderia ter produzido tantas obras literárias – romances, crônicas, contos, ensaios e outros alfarrábios – se o privilégio da arte nobre e da boa escrita é das raças superiores?”

O monologo é guiado pelos textos de  Barreto, em especial Diários íntimos e Cemitério dos Vivos. A ação se instala em quatro movimentos: O colóquio (a personagem se dirige à plateia e a linguagem tergiversa, estica-se e retarda para encontrar a cumplicidade no tempo presente do espectador), Foro íntimo (lugar indeterminado em que ocorrem as conversas íntimas de Lima Barreto, em tom confessional, como se ele estivesse no quarto, na cama, no ambiente do hospício, a dizer coisas que não diriam em público, de viva voz), Roda de delírios (espaço dos diálogos imaginários do escritor com interlocutores ausentes, ou com suas vozes interiores, provavelmente atribuídos a crises de delirium tremus da personagem, derivadas do álcool, dos internamentos no sanatório e do estado de penúria; é também o espaço do escarro, da linguagem indomável, que se expressa por uma via pública), e o Espaço metamorfo (os diversos lugares onde ocorre o Congresso Brasileiro de Eugenia (antecâmara, tábua de dissecação, mesa do congresso, audiência, sessão de debates, púlpito. etc.).

Peguei esses detalhes da dramaturgia de artigo da pesquisadora Luiza Severo Arruda e Silva, mestranda na Universidade Federal de Uberlândia (mulher negra, estudante e moradora da periferia de Aparecida de Goiânia), intitulado História e Teatro: A Depreciação Da Intelectualidade Negra Por Meio Da Peça Traga-Me A Cabeça De Lima Barreto. São indicações do autor Luiz Marfuz no texto.

“Ora, o contexto é o contexto. O contexto só existe na cabeça de vossas indolências. O único contexto que tem aqui é o seguinte: sou preto, pobre e escritor e estou sendo julgado não pelo mérito de minhas obras, mas sim pelo fato de assim eu ter nascido”
Trecho da dramaturgia de Traga-me a Cabeça de Lima Barreto

Lima Barreto não teve sua obra reconhecida em vida. Na peça ele reivindica seu lugar revolucionário da literatura. E transita entre passado e presente com uma propriedade impressionante para nos jogar na cara que o que mudou, pouco mudou. Nós todos estamos devendo uma cadeira na Academia Brasileira de Letras para Conceição Evaristo, e quando ele sobrevoa nesse tema é de cortar os pulsos.

Muito já foi falado e escrito sobre essa peça, a genialidade de Lima Barreto, as múltiplas facetas de sua personalidade, a loucura, a pobreza, alcoolismo, o desdém por sua obra, as tristezas, o racismo, a família, a memória.

O Brasil desse tamanho tem muitos artistas incríveis, que fazem trabalhos de grandeza no teatro. Hilton Cobra, ator de 65 anos, é um erê iluminado no palco. Sua partitura corporal e os lugares / tempos que ele leva seu corpo vão da África ao futuro para desafiar as certezas. A insubordinação, deboche, irreverência contra o que está posto, as fagulhas de seus personagens , ‘a sua pátria estética’ (os pisoteados, ou loucos, os privados de liberdade) ocupam a cena numa comunidade quilombola de resistência.

Cáustico ferino mordaz, irônico contra eugenistas de todos os tempos, contra racistas disfarçados e orgulhosos, ele destila seu veneno contra os opressores. A personagem faz um jogo com o nome de Machado de Assis e as instâncias e processos de consagração. É um espetáculo genial. Que nos oferece uma dose forte de vida.

Senhores médicos da nova raça, senhores eugenistas de plantão: tão logo soube que me queriam o corpo, vim de livre e espontânea vontade; submeter-me ao acurado exame de vosso positivismo eugênico. Nem precisariam me arrancar do breu dos tempos. “Fui testemunha e exemplo vivo de que a capacidade mental dos negros é sempre discutida a priori e a dos brancos, a posteriori.”
(Reações indignadas dos congressistas)
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Vejo aqui uma justa oportunidade de defender minhas ideias, obras e personagens, pouco vistas, jamais reconhecidas. Assim, posso expectorar as sílabas silenciadas em meu cérebro, estado de júbilo tal que saí às pressas e nem tive tempo de me banhar nas águas do orixá que me guarda, lá, onde descansava. 
Palavras de Lima Barreto

 

Não tenho por hábito cumprimentar os atores após as apresentações. Por pura timidez. Mas com Hilton Cobra não resisti. Fomos os três. Algumas pessoas estavam na fila. Primeiro foi Ataíde, que ouviu de Hilton que esses abraços fortes e em silêncio são os melhores. Meu abraço com Cobra também foi forte, sussurrei ao seu ouvido que ele é maravilhoso, ele respondeu que trocamos em cena. Fiquei emocionada. Ele disse: Hamilton vai sair em primeiro. E me aconselhou a ir para casa ou tomar uma Heineken.

Fomos, eu e Ataíde, rumo à Santa Cecília, no percurso, no metrô, Ataíde eufórico convocou quatro ou cinco professoras da sua escola para irem ver a brilhante cabeça, sem falta. Conversamos com entusiasmo sobre as conexões que a peça traça do racismo e repressão do tempo de Lima Barreto com o nosso momento atual. Os olhos brilhantes, o sangue fervendo, o coração a mil. Como é bom ver teatro! Tomamos uma Heineken, cada um. Depois chegou Tay Lopez, o nosso galã, que preferiu uma Coca zero. A conversa foi seguido outros rumos, das delícias do amor. Eita que esses artistas da peça de Lima Barreto sabem fazer a cabeça da gente. Deixam a vida em ebulição.

Espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto!

Ficha Técnica:
Ator: Hilton Cobra
Dramaturgia: Luiz Marfuz –
Direção: Onissajé (Fernanda Júlia) –
Cenário: Vila de Taipa (Laboratório de Investigação de Espaços do Teatro Vila Velha), Erick Saboya, Igor Liberato e Márcio Meireles
Desenho de Luz: Jorginho de Carvalho e Valmyr Ferreira
Figurino: Biza Vianna
Direção de Movimentos: Zebrinha
Direção Musical: Jarbas Bittencourt
Direção de vídeo: David Aynan
Design gráfico: Bob Siqueira e Gá,
Produção executiva: Elaine Bortolanza e Júlio Coelho
Fotos: Adeloya Magnoni e Valmyr Ferreira
Op. câmera: Lílis Soares
Op. áudio e vídeo: Duda Fonseca
Operador de luz: Lucas Barbalho.
Participações especiais (voz em off): Lázaro Ramos, Caco Monteiro, Frank Menezes, Harildo Deda, Hebe Alves, Rui Manthur e Stephane Bourgade

Qando: Sábado, às 21h e domingos, às 20h
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia-entrada para estudantes e professores)
Compra na bilheteria e pelo sympla.com.br/corporastreado
Duração: 60 minutos
Recomendação: 14 anos
Capacidade: 50 lugares
Local: CCSP – Sala Ademar Guerra – Rua Vergueiro, n° 1000, Paraíso, São Paulo/SP

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