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Um voo coletivo pelos territórios da memória
Crítica: Ave, Guriatã!

Turma Citilante encena Ave, Guriatã!. Foto: Widio Joffre / Divulgação

Em tempos de autocentramento digital e relações líquidas, Ave, Guriatã! propõe algo potente: a pausa. A montagem do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Santo Amaro, em sua passagem de formação para profissionalização, convida quem entra no teatro a desacelerar, a sintonizar com outros ritmos – os da terra úmida dos engenhos Laureano e Jaguarana, às margens do Rio Sirigi, no município de Aliança, na Zona da Mata de Pernambuco, territórios da infância de Marcus Accioly.

Inspirado no cordel Guriatã: um cordel para um menino, de Accioly, com dramaturgia de Robson Teles, dramaturgia complementar de José Manoel Sobrinho e Samuel Bennaton, o trabalho habita a poesia, criando um território cênico onde verso e movimento, canto e silêncio se entrelaçam através da invenção teatral.

A Encenação: Encontro de Olhares. Foto: Widio Joffre / Divulgação

Para José Manoel, que já declarou querer “trabalhar a memória, como esse lugar em que todas as histórias estão contidas”, Ave, Guriatã! surge como território ideal para essa investigação. Desta vez, divide a encenação com Samuel Bennaton, diretor com formação em teatro físico e pesquisa em linguagens corporais, criando um encontro de perspectivas que enriquece a proposta cênica.

Os encenadores optam por expandir o tempo dramatúrgico, embaralhando sequências temporais e permitindo que as despedidas e os reencontros aconteçam em camadas, transformando a cena em um espaço onde a memória opera por associações livres, não por cronologia linear – uma escolha que dialoga diretamente com as inquietações de José Manoel sobre a natureza mutante da memória contemporânea.

O País-Infância Como Território Inventado. Foto: Widio Joffre / Divulgação

Ave, Guriatã! constrói cenicamente o que podemos chamar de país-infância, um território onde o imaginário resiste às urgências do tempo produtivo adulto. Sucram – Marcus de cabeça para baixo, como tudo na infância pode ser visto – perambula por esse espaço acompanhado de Leunam, o amigo que virou pássaro, que virou memória, que virou canto.

Experienciar mais do que a compreender linearmente é o convite da dramaturgia, o que se torna uma forma de resistência contemplativa. Em nossa sociedade do cansaço – onde Byung-Chul Han identifica o excesso de positividade e a hiperatividade como fontes de esgotamento mental -, esta resistência se materializa na própria estrutura temporal do espetáculo: em vez de acelerar para atender à urgência contemporânea, Ave, Guriatã! desacelera deliberadamente, criando espaços de silêncio que funcionam como antídoto à cultura da eficiência.

Fios de Enredo: A Jornada da Despedida. Foto: Widio Joffre / Divulgação

O enredo acompanha um jovem da Zona da Mata que se despede de sua infância. Na jornada, perde seu amigo-irmão, mas o leva no coração, nas histórias compartilhadas, nas lembranças. Entre os medos dos seres imaginários que surgem na cena e a busca por colo e proteção da velha curandeira, a narrativa se constrói em camadas de sentimento e em sequências de ação coreografadas com sensibilidade por Mônica Lira, que desenha movimentos que traduzem poeticamente as transformações internas das personagens.

A dimensão artesanal e colaborativa permeia todo o trabalho. Os livros de artista confeccionados pelo elenco, os pássaros criados coletivamente com Colette Dantas, os elementos cenográficos construídos em parceria – tudo respira uma estética do cuidado, do tempo dedicado, do fazer junto.

Nesse universo de memórias, o trabalho do Ateliê da Trama ao Ponto (Francis de Souza, Monique Nascimentos e Álcio Lins) ganha relevância. Há algo de desbotado nos figurinos, como se carregassem o peso do tempo e da nostalgia. Essa qualidade me leva diretamente ao poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade: “De tudo fica um pouco (…) este segredo infantil…”. As roupas em cena parecem carregar esse “pouco que fica”, esses resíduos de memória que a infância deixa em nós.

Dialogando com essa atmosfera nostálgica, Beto Trindade desenha com a luz espaços que respiram junto com as palavras, formando climas que suspendem o tempo cronológico. Suas atmosferas luminosas criam territórios temporais onde presente e passado coexistem.

Completando essa trama sensorial, Públius Lentulus compõe músicas originais que, sob a direção musical de Samuel Lira, trazem o universo do cordel para a linguagem contemporânea valorizando a complexidade da experiência infantil. Há algo de nostálgico e doído nessas composições, porque crescer dói. A infância e o crescimento carregam em si uma melancolia profunda, a consciência da perda que é inerente ao amadurecimento. Quando o elenco canta – com preparação vocal de Leila Freitas – suas vozes se somam a esse universo sonoro que se despede do país-infância.

Diversidade em Cena. Foto: Widio Joffre / Divulgação

As asas do Guriatã que Mateus Condé carrega ostentam o desejo de liberdade, respeito e dignidade que o elenco como um todo defende. Apesar de ser uma montagem direcionada preferencialmente para a infância, a peça traz os sinais visíveis da diversidade LGBTQIAPN+ como realidade humana que pode habitar todos palco.

O elenco – Anne Andrade, Bibi Santos, Caví Baso, Diogo Cabral, Djalma Albuquerque, Bruna Flores, Eva Oliveira, Felipe Prado, Fanny França, Igor Henrique, Lívia de Souza, Márcio Allan e Mateus Condé – revela diferentes graus de amadurecimento cênico. Alguns ocupam a cena com mais propriedade, estão mais brilhantes em suas performances, enquanto outros ainda exploram suas descobertas cênicas. Mas o teatro não tem contraindicação. Essa diversidade de momentos formativos enriquece a textura humana do espetáculo. Há uma generosidade cênica que nasce dessa entrega ao experimento coletivo.

Ave, Guriatã! propõe a preservação de certas formas de estar no mundo – aquelas que privilegiam o encontro sobre a eficiência, a poesia sobre a produtividade, a memória ancestral sobre o esquecimento programado. É um trabalho que voa e nos convida a voar junto, redescobrindo a capacidade de habitar o tempo de forma menos utilitária e mais poética.

Elenco e público numa das sessões da temporada no Teatro Marco Camatotti. Foto: Divulgação

FICHA TÉCNICA

Autor – Robson Teles
Obra de referênciaGuriatã, um Cordel para Menino – Marcus Accioly
Encenação e dramaturgia complementar – José Manoel Sobrinho
Encenação, dramaturgia complementar e Oficina O Silêncio no Teatro – Samuel Bennaton
Elenco: Anne Andrade, Bibi Santos, Caví Baso, Diogo Cabral, Djalma Albuquerque, Bruna Flores, Eva Oliveira, Felipe Prado, Fanny França, Igor Henrique, Lívia de Souza, Márcio Allan, Mateus Condé
Músicas Originais – Públius Lentulus
Direção Musical, Arranjos e Canto – Samuel Lira
Preparação Vocal – Leila Freitas
Direção de Arte e Oficina Livros de Artista – Colette Dantas
Assistente de Direção de Arte, Confecção de Cadeiras Artesanais e Expografia de Livros de Artista – Patrícia Lauriana
Confecção de Figurinos e Adereços – Ateliê da Trama ao Ponto: Francis de Souza e Monique Nascimentos (figurinos) e Álcio Lins (adereços)
Confecção de adereços, adornos e mobiliários – Patrícia Lauriana e Elenco
Confecção de Livros de Artista – elenco
Confecção de Pássaros – Colette Dantas e elenco
Projeto de Maquiagem – Mateus Condé
Direção de Movimentos – Mônica Lira
Consultoria em Dança – Rogério Alves
Consultoria em Interpretação (Arquetipia Humanimal) – Murilo Freire
Criação, Design de Luz, Projeto, Montagem e Operação de Iluminação – Beto Trindade
Assistente de Montagem e de Operação de Iluminação – Júnior Brow
Gravação de Trilha Sonora – Estúdio do CDRM – Sesc Casa amarela
Técnico de Gravação e Mixagem – James Azevedo

MÚSICOS NA GRAVAÇÃO:
Samuel Lira – Flauta Transversa e Teclado
Marcelo Cavalcante – Violão
Charly du Q – Percussão
Luiz Rozendo – Violino
Luiz Veloso – Violão de 7 cordas, Violão, Berimbau

Operador de Som (no espetáculo) – Saw
Criação e Designer Gráfico – Mateus Condé
Gravuras – Eduardo Montenegro
Mídia Social – Igor Henrique
Grupo de Alunos do CIT – Citilantes
Direção de Produção – Ailma Andrade e Anderson Damião
Assistentes de Produção – Patrícia Lauriana e Camila Mendes
Produção – Serviço Social do Comércio – Sesc – Unidade Santo Amaro: Curso de Interpretação para Teatro – CIT

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Questão de sobrevivência emocional

Atores Samuel Lira e Jorge de Paula. Fotos: Zé Barbosa

Atores Samuel Lira e Jorge de Paula. Fotos: Zé Barbosa

A estreia da atriz Cira Ramos na função de encenadora merece ser aplaudida. Seu olhar sensível e delicado se faz presente nos pequenos detalhes do espetáculo Em Nome do Pai. A peça iniciou temporada no último sábado (25) para o público; na noite anterior(24), fez uma pré-estreia para convidados, no Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura do Shopping RioMar, Zona Sul do Recife, onde fica em cartaz até o dia 31 de maio. A diretora trabalha como uma maestrina a harmonizar os instrumentos de que dispõe. Do elenco, mantém vivo o embate entre os personagens. E afina os talentos da equipe técnica, priorizando o jogo teatral.

O texto é do mineiro Alcione Araújo, uma referência do teatro brasileiro, autor de, entre outras peças, Há Vagas para Moças de Fino Trato, Doce Deleite, A Prima-Dona, Muitos Anos de Vida, Sob Neblina Use Luz Baixa e A Caravana da Ilusão, essa última montada no Recife anos atrás. Seus trabalhos se fincam em três eixos principais: as relações familiares, as questões sociais e políticas e a metalinguagem. Na peça Em nome do pai o confronto de gerações, os conflitos familiares e a sexualidade são explorados em cruzamento com a metalinguagem como um conduto de resolução dos problemas.

Escrita há mais de 20 anos, a peça aposta no bem querer como canal para superar as dificuldades de uma relação. O autor não escamoteia as fraturas do modelo familiar e mergulha no mar tempestuoso de emoções baratas e caras. Vai meio que na contramão dos padrões comportamentais que ficam na superfície e tem medo de pegar no nervo do sentimento.

O começo do texto, no entanto, é difícil de engrenar. Dois personagens que nunca tinham conversado de verdade: pai e filho. Após o enterro da mãe, elo de ligação entre eles, há uma necessidade de superar diferenças. Mas nesse início da peça, as falas clichês predominam, os devaneios com elucubrações mais rasas jorram de forma bastante infantil. A certa altura isso passa e aí sim o texto ganha um rumo poético no embate entre as duas figuras, suas revelações e lembranças.

O espetáculo ganha fôlego quando o filho resolve ir embora e o pai questiona a decisão. O humor refinado toma espaço na cena e o texto flui com elegância e força nas revelações corajosas e surpreendentes para ambos.

Peça mergulha nos contraditórios sentimentos de pai e filho

Peça mergulha nos contraditórios sentimentos de pai e filho

A encenação arquiteta a sombra da figura da mãe nos diálogos dos dois, que muitas vezes parece um fantasma a aterrorizar, mas também força a aproximação entre pai e filho. São caminhos sobre o viver e conviver com as diferenças, de onde brotam os afetos. Nessa comédia dramática, o enfoque existencial impõe momentos densos. Mas há espaço para o riso, como na cena em que o pai jornalista auxilia o filho a ensaiar uma peça.

O pai, interpretado por Jorge de Paula, é um escritor frustrado. O filho, defendido por Samuel Lira, é um estudante de teatro. As atuações ainda precisam ser equalizadas. O tom adotado por Jorge para demonstrar sofrimento pela perda da esposa soa falso e não convence. Sua interpretação desliza por várias gramaturas e cresce durante a encenação. Jorge de Paula é um ator potente e esses ajustes devem ser resolvidos durante a temporada.

Samuel Lira é uma grata surpresa para um papel tão denso. Ele está no elenco de alguns infantis e faz sua estreia em espetáculos adultos. O ator traz a revolta juvenil, um pouco da vingança contra o pai. Em torno da ausência da mãe, ele reflete o passado, trabalha bem as tensões do personagem e explora o dúbio o que nos oferece uma amostra da riqueza da convivência humana.

Os cenários de Marcondes Lima são especialmente criativos, com suas caixas que apontam para utilitários como sofás e malas, em designer arrebatador. Esses objetos-bagagens sugerem partidas (ou chegadas), com ou sem despedidas, e fazem uma conexão com a saída de cena da mulher da vida dos dois homens. A iluminação de Dado Soddi cria os climas, instala claustrofobias, promete libertações, controla o compasso, o ritmo da montagem, instala regiões de sombras e dá destaque até à monotonia de mútuas acusações do passado, que precisam ser superadas.

A trilha sonora, assinada por Fernando Lobo, funciona praticamente como um terceiro personagem. O saxofone provoca, acentua a teatralização das ações, marca os ciclos dessa DR, que vai da revolta, com discussões fervorosas, à reconciliação. O saxofone da trilha foi gravado pelo maestro Edson Rodrigues e o teclado por Fábio Valois.

E, nessa passagem ao tempo, entre picuinhas e ressentimentos a montagem aponta para algo mais luminoso, mesmo com as neuroses de cada um.

Serviço
Em nome do pai
Onde: Teatro Eva Herz (Livraria Cultura do Shopping RioMar)
Quando: De 25 de abril a 31 de maio, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h. ( Não haverá sessão do espetáculo no feriado do dia 1º de maio. Não haverá venda de ingressos para as sessões dos dias 10, 17, 24 e 31 de maio, pois a peça será destinada à rede pública de ensino, ONGs e instituições sócio-educativas).
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), à venda na bilheteria do teatro
Informações: (81) 3256-7500 / 9157-5555
Classificação: 14 anos

Ficha técnica
Texto: Alcione Araújo
Encenação: Cira Ramos
Elenco: Jorge de Paula e Samuel Lira
Preparação de atores e assistência de direção: Sandra Possani
Direção de arte: Marcondes Lima
Trilha sonora e direção musical: Fernando Lobo
Músicos: Edson Rodrigues (sax) e Fábio Valois (teclado)
Preparação vocal: Leila Freitas
Desenho de luz e execução: Dado Soddi
Assistente e produção de figurino: Natascha Lux
Cenotécnicos: Hemerson Cavalcante e Henrique Celibi
Programação visual e registro fotográfico: Zé Barbosa
Produção executiva: Karla Martins e Alexandre Sampaio
Produção geral: Cira Ramos, Fernando Lobo e Ofir Figueiredo
Direção de produção e elaboração de projeto: Cira Ramos e Karla Martins (Decanter Articulações Culturais)
Realização: REC Produtores Associados

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