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Atrizes orquestras e teatralidade exposta*
Crítica de Ana Lívia

Ana Lívia, espetáculo da Cia. BR116, tem texto de Caetano W.Galindo

Até Ana Lívia, peça da Cia. BR116 com texto de Caetano W. Galindo, que estreou no ano passado em São Paulo e agora participou do Festival de Curitiba, Bete Coelho e Georgette Fadel nunca haviam trabalhado juntas. Vê-las em cena, interagindo afiadíssimas, como se só elas duas – e cenário, música, iluminação – fossem uma orquestra inteira com arranjos estranhos e belos, é um dos primeiros impactos do espetáculo.

Quando a peça vai acontecendo, quem se permite embarcar na encenação pode ter o corpo impactado pela vibração e experimentação das linguagens literária e teatral e descobre, por fim, que é o próprio teatro, desnudo, que se dá a ver ali, de modo febril e pulsante, desejoso de interação, solicitando que estejamos juntos a cada nova partitura dessa música.

Nessa encenação, na qual respiramos no mesmo ritmo das atuações, pode-se considerar irônico que a incomunicabilidade seja uma das questões latentes no diálogo entre as atrizes. Como em muitas relações que se desdobram no tempo, essas duas estão naquele espaço não se sabe desde quando, talvez desde crianças, talvez sejam duas personagens, ou uma só. Mas o que se estabelece entre elas vai além da apreensão formal de sentidos e, apesar disso, a escuta e, consequentemente, o diálogo, não se torna efetivamente viável. Uma delas quer muito contar algo à outra, ler o texto que acabou de receber, a outra sente que não tem oportunidade de falar, que mesmo quando fala não é ouvida.

Ainda assim, é como se respondendo não necessariamente, ou pelo menos não unicamente, ao que uma diz à outra, os corpos reagissem aos estímulos numa sincronia cronometrada. As duas se sucedem, até se interrompem, falam a mesma frase ao mesmo tempo numa intimidade desconcertante, disputam como se estivessem numa batalha, mas não se borram.

Bete Coelho está em cena e também assina codireção. Foto: Annelize Toledo

Georgette Fadel. Foto: Annelize Toledo

Ao mesmo tempo em que cada uma possui características bastante específicas na encenação, ao ponto de um dos melhores momentos do espetáculo ser justamente a cena em que uma imita a outra, elas também estão imbricadas como se pudessem ser uma só. Há um espelhamento potencializado pela experimentação da linguagem cênica e da linguagem literária, além do apuro técnico, do domínio de cada palavra, de cada suspiro e silêncio, de cada gesto colocado no momento exato pelas atrizes.

Se cenário, iluminação, figurino e muitas vezes até o texto sugerem uma sisudez, há cenas de humor escancarado, nas quais os ensaios das atrizes se estabelecem como espetáculo pronto à interação com a plateia, aos aplausos do público. As mudanças de registro, saindo muitas vezes radicalmente, sem escalas, do gesto contido ao exagero, ajudam na composição do humor nessa tragicomédia. É um corpo disposto ao risco do jogo e do caricatural em suas possibilidades de expressão, um risco teatral sabidamente calculado em suas filigranas.

Nesse sentido, a cenografia de Daniela Thomas, parceira de trabalho de Bete Coelho há mais de três décadas, deixa a caixa do teatro exposta ao público, nessa reiteração de que o que estamos acompanhando é teatro, uma configuração completamente diversa das últimas montagens da companhia, que tiveram cenografias assinadas por Thomas e Felipe Tassara. Em Mãe Coragem (2019), um espetáculo grandioso, o ginásio do Sesc Pompeia foi transformado para receber a encenação que era também uma instalação cenográfica, um campo de batalha, uma arena, planos distintos, público dividido em vários locais no espaço. Em Molly Bloom (2022), o cenário era uma cama, disposta num plano mais alto, mas que incorporava possibilidades de difusão das imagens dos atores: o reflexo no espelho, as projeções ao vivo em várias telas.

Em Ana Lívia, o principal elemento cenográfico é uma longa mesa formada por praticáveis de teatro e três cadeiras e, nesse reforço do local em que estamos todos juntos, as atrizes no palco, nós na plateia, vemos os refletores da iluminação de Beto Bruel expostos, além de todo o ambiente do palco, as laterais, o fundo.

Quais as nossas expectativas quando vamos ao teatro? A todo tempo, Ana Lívia faz questão de lembrar que o que estamos acompanhando ali é teatro, apontando para um caminho que reconhece e explora a própria natureza da linguagem.

O espetáculo é estruturado a partir de uma teatralidade acentuada pela reiteração da linguagem teatral. Mesmo que não que precisasse, a teatralidade está posta, mas o que essa operação propicia aos espectadores?

Ao insistir na exposição da teatralidade, o espetáculo fricciona as expectativas convencionais em relação ao que um espetáculo de teatro pode ser. Esse constante lembrete da artificialidade da representação talvez funcione como um mecanismo de distanciamento, convidando os espectadores a uma postura mais analítica e menos absorvida emocionalmente pelo drama.

Caetano W. Galindo, professor curitibano, tradutor especialista em James Joyce, em sua primeira incursão como dramaturgo (mas em seu segundo trabalho com Bete Coelho, já que assinou a tradução e a consultoria dramatúrgica de Molly Bloom), oferece ao público a possibilidade de enveredar por múltiplas interpretações, além de propor um exercício formal de linguagem. A estrutura não linear supera a tradição do teatro dramático, questionando a expectativa de uma narrativa coesa e fechada. Essa estrutura aberta estimula os espectadores a participarem ativamente na construção desses significados, o que pode tanto desafiar quanto expandir o horizonte.

É um texto que envereda por polos duais: ao tratar de teatro e de ficção, faz pulsar a realidade; ao falar de morte, questiona o que fazemos e como encaramos a vida. Qual a versão real da história do quase afogamento de um cachorro? Existe verdade? A imagem da água está sempre presente, seja pelo barulho de mar que se faz ouvir insistente na mente das atrizes, seja o cenário de um lago ou o rio.

O texto e aquelas atrizes nos fazem questionar como lidar com a inquietude, o desassossego, a iminência de que tudo pode mudar a qualquer momento. O que podemos controlar? No texto de Caetano W. Galindo, quase nada. E essa é uma característica que o potencializa, porque é como se escapasse das nossas mãos, mas permanecesse ecoando no ouvido e no corpo inteiro pelo modo como foram concatenadas as palavras.

A construção do texto privilegia a sonoridade, o encontro entre as palavras, a habilidade na construção do diálogo que não necessariamente tem como intenção possibilitar a comunicação. A experimentação do que um som promove no corpo das atrizes e na plateia. Há, por exemplo, um jogo de troca de palavras com sonoridades parecidas, mas sentidos completamente diferentes, que enriquece e deixa os diálogos ainda mais interessantes e curiosos.

Espetáculo faz exercício de linguagem. Foto: Annelize Toledo

Na primeira sessão do espetáculo no Festival de Curitiba, no último dia 26, o Teatro da Reitoria estava lotado e, dependendo do lugar em que você estivesse sentado, o áudio das atrizes parecia baixo, de modo que não foi fácil acompanhar o que elas diziam em todos os momentos da peça. Mas o texto, mesmo que não ouvido em sua integralidade, proporciona saltos às cenas quando reverbera no corpo das atrizes numa expansão deliberada da oralidade ao corpo.

As atrizes estão sempre se referindo ao autor do texto que elas estão ensaiando, um “ele” indeterminado. A terceira cadeira na mesa permanece desocupada, discreta, quase imperceptível. As palavras desse autor, escritas a pedido delas, estão grafadas no caderno azul ou chegam pelo celular. E talvez nessa operação que, mais uma vez, reforça a teatralidade, a autoria desse texto para aquelas atrizes não está circunscrita apenas ao que elas querem dizer, mas em como elas podem dizer. Voltamos então nesse circuito, que é cíclico e parece não ter fim, um ensaio que é vida representada, que pode se suceder indeterminadamente, à qualidade de presença e ao jogo entre essas atrizes. Atrizes-orquestras-inteiras ocupando o palco.

O espetáculo Ana Lívia foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

A sonoridade é um dos elementos importantes na peça. Foto: Annelize Toledo

Ficha técnica:

Texto: Caetano W. Galindo
Direção: Daniela Thomas
Codireção: Bete Coelho e Gabriel Fernandes
Elenco 1: Bete Coelho e Georgette Fadel | Elenco 2: Bete Coelho e Iara Jamra
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Assistente de direção: Theo Moraes
Direção musical: Felipe Antunes
Assistente de direção musical: Fábio Sá
Figurino: Bete Coelho e Daniela Thomas
Diretor técnico: Rodrigo Gava
Desenho de luz: Beto Bruel
Assistente de luz: Sarah Salgado e Pamola Cidrack
Operadora de luz: Patricia Savoy
Operador de som: Rodrigo Gava
Contrarregra: Theo Moraes
Designer gráfico: Celso Longo + Daniel Trench
Diretor de comunicação: Maurício Magalhães
Assessoria de imprensa: Fernando Sant’Ana
Design de mídia social: Letícia Genesini
Assessoria jurídica: Olivieri e Associados
Dramaturgista da Cia.BR116: Marcos Renaux
Local de ensaio: CASAVACA
Produtora executiva: Mariana Mantovani
Direção de produção: Lindsay Castro Lima

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Núcleo Bartolomeu desafia o fascismo

Espetáculo Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, está em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, até 28 de julho. Foto: Sérgio Silva / Divulgação

O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos é um grupo teatral que articula o teatro épico com o hip-hop na pesquisa de linguagem. É um coletivo militante da autorrepresentação como discurso artístico, que vibra com questões contemporâneas. Isso pode parecer óbvio, mas como “não sei com quem estou falando” nesses tempos de cinismo exacerbado e chamamentos conservadores no teatro… Voilà, talvez apareça alguém fora da bolha (da minha pobre bolha) interessado nessas artes cênicas. Pois bem, o espetáculo Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias, do Bartolomeu, estreou nesta sexta-feira (28 de junho), às 21h, no Teatro do Sesc Bom Retiro e segue até 28 de julho.

Um dos impulsos da montagem do Núcleo é o texto Terror e Miséria no Terceiro Reich, do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956), composto entre 1935 e 1938. A produção também valeu-se das ideias de escritores e ativistas como Angela Davis, Grada Kilomba, Frantz Fanon, Achille Mbembe, Walter Benjamin, e outras, e outros, e outrxs para erguer a encenação.

Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias traça um paralelo entre a barbárie espalhada no nosso cotidiano com aqueles anos que precederam a Segunda Guerra Mundial e a ascensão do fascismo e do nazismo. A diretora Claudia Schapira sugou da realidade do presente muitos fluxos de uma arena de contradições, com vistas ao futuro.

 

Luaa Gabanini em Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias. Foto: Sérgio Silva 

Brecht traçou um panorama da decadência da sociedade alemã, sufocada pelo pavor, nas 24 cenas curtas da peça, que expõe a repercussão do regime de Hitler no cotidiano de gente comum. O ditador emporcalhou até a dinâmica familiar, como expõe uma das cenas de Terror e Miséria no Terceiro Reich, em que um professor de História sente o peso do nazismo tanto no trabalhou quanto na sua vida privada em casa.

Quando chegou ao poder na Alemanha, lá nos idos de 1933, Bozonazi (eita, ato falho!!!) Adolf Hitler surrupiou liberdades e desmantelou instituições democráticas. Fincou na História uma violenta ditadura. Deixou “tudo dominado”: economia, educação, artes, meios de comunicação etc.

Mas até corporificar o poder, o cabra não era grande coisa. Poucos levavam a sério aquele ex-militar bizarro de baixo escalão, “famoso” pelas falas contra gays, mulheres, feministas, políticos de esquerda, elites progressistas, minorias, imigrantes, mídia, judeus. Numa rápida pesquisa sobre a subida desse sujeito me deparo com a pergunta “Por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?”.

Mas estamos falando de quem mesmo???

Um anti-político que conseguia usar a mídia da época para seus propósitos, difundindo fake news. Um elemento que insuflou a agressividade de seus apoiadores – da afronta verbal à violência física. Um charlatão oportunista.

 

Nilcéia Vicente e Vinícius Meloni. Foto: Sérgio Silva 

Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com direção de Claudia Schapira chega para problematizar criticamente esses dias vivenciados com crueza em todos os recantos da vida social. Essa crise de civilização, com efeitos devastadores, é esquadrinhada na montagem pelos 11 atores MC’s : Fernanda D’Umbra, Georgette Fadel, Jairo Pereira, Luaa Gabanini, Lucienne Guedes, Nilcéia Vicente, Roberta Estrela D’Alva, Sérgio Siviero e Vinícius Meloni, Dani Nega e Eugênio Lima.

A diretora se vale do procedimento de uma peça dentro da peça numa escolha metalinguística que espelha tempos – passados e presentes. O elenco ensaia algumas cenas do Terror e Miséria no Terceiro Reich, de Brecht. A partir desse disparador é estabelecido um jogo entre atores e personagens.

Composta por 8 cenas e respectivos comentários, além do prólogo e epílogo, os artistas discutem temas contemporâneos que giram em torno da fome e da pobreza,  da flexibilização do porte de armas, da destruição do meio ambiente; da retirada de direitos conquistados na luta de classes; do genocídio negro, da LGBTfobia, do machismo e outras violências cotidianas da concentração de renda, do desemprego estrutural; o desmonte dos bens e serviços públicos; da instabilidade, da precarização, da “obsolescência planejada” em textos falados e cantados. 

Nascido no ano 2000, o o Núcleo Bartolomeu de Depoimento atua com contundência nas suas montagens. Utiliza os recursos do teatro épico e da cultura hip-hop para discutir o “ser” em processo. Na mão desses artistas o teatro é uma ótima arma.  

SERVIÇO
Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias
Quando: De 28 de junho até 28 de julho. Sextas e sábados, às 21h e domingos, às 18h
DIA 12/07 Não haverá espetáculo
Onde: Sesc Bom Retiro (Rua Alameda Nothmann, nº 185).
Ingressos: R$ 20 (inteira), R$ 10 (meia) e R$ 6 (credencial plena).
Capacidade: 250 lugares.
Duração: 120 minutos.
Classificação: 14 anos.

 

Elenco do espetáculo Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias. Foto: Sérgio Silva 

FICHA TÉCNICA
Direção: Claudia Schapira
Dramaturgia: Claudia Schapira em colaboração com Lucienne Guedes e elenco – livremente inspirado em “Terror e Miséria no Terceiro Reich” de Bertolt Brecht.
Inserções de poemas: Jairo Pereira e Roberta Estrela D’Alva
Giovane Baffô e Paulo Faria
Tradução auxiliar: Camilo Shaden
Direção Musical: Dani Nega, Eugênio Lima e Roberta Estrela D’Alva
Direção de Movimento e Coreografias: Luaa Gabanini
Assistência de Direção: Maria Eugenia Portolano
Atores-MCs: Fernanda D’Umbra, Georgette Fadel, Jairo Pereira, Luaa Gabanini, Lucienne Guedes, Nilcéia Vicente, Roberta Estrela D’Alva, Sérgio Siviero e Vinícius Meloni.
Atores-MCse DJs: Dani Nega e Eugênio Lima
Direção de arte: Bianca Turner e Claudia Schapira
Vídeo e cenário: Bianca Turner
O vídeo Contém samples dos documentários “SLAM: Voz de Levante” de Roberta Estrela D’Alva e Tatiana Lohmann (poeta Kika Sena) e “Mães de Maio – um grito por justiça” de Daniela Santana )
Figurino: Claudia Schapira
Figurinista assistente: Isabela Lourenço
Técnica de spoken word e métricas: Roberta Estrela D’Alva
Kempô e Treinamento de Luta: Ciro Godói
Danças Urbanas: Flip Couto
Preparação Vocal: Andrea Drigo
Iluminação: Carol Autran
Engenharia de Som: Eugênio Lima e Viviane Barbosa
Costureira: Cleusa Amaro da Silva Barbosa
Cenotécnico: Wanderley Wagner da Silva
Design gráfico: Murilo Thaveira
Estagiárias: Isa Coser, Junaída Mendes, Maitê Arouca
Direção de Produção: Mariza Dantas
Produção Executiva: Jessica Rodrigues e Victória Martínez (Contorno Produções) e Núcleo Bartolomeu de Depoimentos- Teatro Hip-Hop
Assistente de Produção: Leticia Gonzalez (Contorno Produções)

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