Grito pelo empoderamento feminino – primeira versão

Coletivo Soma. Foto: Wellington Dantas/ Divulgação

Coletivo Soma. Foto: Wellington Dantas/ Divulgação

Uma clima sombrio. Uma atmosfera de temor, de espreita, de perseguição traça as primeiras linhas do espetáculo Grito, do recifense Coletivo Soma, que estreou nessa sexta-feira (27), dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. As atrizes/bailarinas Anne Costa e Marta Guimarães representam, nos momentos iniciais, o medo de mulheres que andam nas ruas do Recife na volta do trabalho ou de qualquer outra atividade que precisem fazer a pé. Com pequenos deslocamentos no palco, correndo em várias direções elas delineiam um quadro assustador. O desenho de luz de Natalie Revoredo materializa de forma quase tátil essas ambientações e mudanças de conjunturas. Essa luz é quase um personagem.

É inevitável lembrar de casos recentes de estupros no Recife, de uma empresária no bairro das Graças e de uma estudante universitária, no Parnamirim. Casos esses bem explorados pela mídia. Mas sabemos que há muitos outros não registrados. Então perguntamos: o que o governo do Estado de Pernambuco e a prefeitura do Recife estão fazendo para garantir a segurança dos cidadãos e para impedir que casos como esses se repitam? E não aceitamos falácias como respostas. Reajam ao Grito.

Os shorts com motivos policiais e a camiseta regata branca do figurino aludem ao treinamento militar, com suas rotinas de condicionamentos físicos brutos e de pouco exercício de sensibilização.

Nas demonstrações de marchas, elas cantam Mulher Rendeira e Acorda Maria Bonita, duas canções de Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião, em parceria com Antonio Alves dos Santos, conhecido como Volta Seca e apontado como o mais jovem integrante do bando. Mulher Rendeira se transformou numa espécie de hino do cangaço. E ambas as música receberam centenas de versões, e estão na trilha sonora do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953).

Essa sequência das duas músicas e desses primeiros movimentos já oferece um material rico para análise da encenação projetada em seu propósito de discutir a situação da mulher e desmontar os discursos machistas entranhados na nossa sociedade. Depois da quarta vez que você ouve “Acorda, Maria Bonita/Levanta, vai fazer o café” na entonação dessas meninas, sua escuta não vai ser a mesma para essa música.

Os encadeamentos de Jogos de guerra, com repetições de pulos e rolamentos exercem metonimicamente pulsões da formação do macho que manda e/ou recebe humilhação; e de fêmeas que assumem papeis idênticos. Os movimentos repetitivos provocam seus espasmos.

Atrizes

Coletivo Soma. Foto: Wellington Dantas/ Divulgação

A direção de Lilli Rocha (muito boa estreia da atriz e bailarina nessa função) e a dramaturgia caminham por terrenos de mais intimidade, onde o corpo da mulher – esse material sagrado – é infringido, ultrajado, desrespeitado, violado, transformado em mercadoria.

São cenas fortes, nas quais os corpos das garotas criam imagens potentes para traduzir o horror que o físico feminino sofre na corrente do machismo e do capitalismo que busca transformar tudo em objeto de consumo, inclusive o desejo. A privacidade é projetada no terreno da pele tocada e no som dos sussurros. A montagem ganha proporções sensoriais.

Político, esse Grito desafia o espectador a olhar essa compleição desnuda. Mas aquele território corporal tem dono, de quem o carrega. Que alardeia em alto e bom som que faz do seu próprio corpo o que quiser.

As lutas são tantas e diárias, que o tempo de alerta é todo o tempo. Para que essa mulher já consciente de sua identidade, de seus direitos, de sua força, de sua garra, não sucumba aos apelos, às pressões, às carências de se deixar usar pelo outro, pelo grupo, pelo sistema.

Grito é um espetáculo que brada uma urgência. Pela dignidade feminina. E precisa continuar a vociferar enquanto houver tentativas de servidão. E não é apenas um jogo de cena. Mas a produção coerente do envolvimento no debate sobre gênero. E de um ano da pesquisa Ver-ter: Um olhar sobre os sentimentos periféricos, desenvolvida pelo Coletivo Soma.

Forte, corajoso, de uma poesia incômoda, a peça coreográfica articula entregas, vasculha segredos, mexe com feridas, propõe curas, empodera a mulher e encanta como arte.

FICHA TÉCNICA
Concepção: Coletivo Soma
Direção e orientação coreográfica e dramatúrgica: Lilli Rocha
Orientação da pesquisa teórica: Kiran Gorki
Orientação da pesquisa corporal: Henrique Lima
Desenho de luz: Natalie Revoredo
Vídeos: Dani Neves
Edição: Xico Pessoa
Intérpretes-criadoras: Anne Costa e Marta Guimarães

SERVIÇO

Espetáculo Grito, do Coletivo Soma
Quando: Sexta (27) e sábado (28), às 20h; e domingo (29), às 19h
Onde: Espaço Experimental – Rua Tomazina, 199, Bairro do Recife
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Vendas: bilheterias do Teatro de Santa Isabel e do Espaço Experimental
Classificação etária: a partir dos 18 anos
Duração: 45 min

Este post foi publicado em por .

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *