Corpos trans afirmam que estão na luta pela vida
Crítica de O Evangelho Segundo Vera Cruz

 Elke Falconiere, Dante Olivier, Jailton Jr., (em pé) Rodrigo Cavalcanti e Joe Andrade. Elenco da peça O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, de Pernambuco, dirigida por Rodrigo Dourado, que recria episódios da censura contra a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ocorridos em Garanhuns (PE),  em 2018.

“Negra, pobre, periférica, travesti”. É assim que Erika Hilton, a primeira vereadora transexual de São Paulo – a mulher mais bem votada no Brasil – se apresenta. Como a maioria das mulheres trans, ela foi inviabilizada durante a maior parte dos seus 27 anos de vida. Sua vitória é individual e coletiva. É uma resposta ao avanço da extrema-direita. Muitas outras vêm sendo dadas. Contra o fascismo e o conservadorismo. Na política, na arte, na arte que é política. 

É um marco. Mas nada é tão simples nesses tempos. Os paradoxos gritam. Mulheres eleitas vereadoras e prefeitas, negras, foram ameaçadas de morte. Eles continuam tentando intimidar, limar as afirmações, confiscar os lugares. 

É sobre intimidação, repressão, agressão, intolerância que trata o espetáculo pernambucano O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, dirigido por Rodrigo Dourado. O trabalho tensiona documento e ficção e convoca os episódios condenáveis de censura contra a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ocorridos em Garanhuns, Pernambuco, em 2018. A montagem foi proibida de se apresentar no Festival de Inverno de Garanhuns, depois de ter sido selecionada pela curadoria do evento.

De maneira criativa e contunde, Vera Cruz recria o périplo da Rainha do Céu, que envolve política, justiça, católicos e neopentecostais, seguidores versus arte e liberdade artística, desobediência civil e re(existência).

De forma breve, a atriz trans Renata Carvalho em corporeidade não-normativa interpreta Cristo, em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. As reflexões da peça são as pregadas pelo Cristianismo, como o perdão, compaixão, combate à intolerância preconceito, e toda forma de opressão. Não é isso que ensinam as religiões? Não é tão simples. Renata que o diga. Sua montagem sofreu muitas proibições e retaliações em vários lugares.

Em Garanhuns, a peça foi convidada, excluída da programação, reinserida pela justiça, articulada para fazer sessões paralelas, perseguida. Qual o poder dessa peça que desperta tantas reações?

O Evangelho Segundo Vera Cruz traça dobraduras para salientar que vivemos num pais racista, machista, misógino, transfóbico, LGBTfóbico e que tem horror a pobre.  Vera Cruz é o nome desse lugar fictício, que pode ser o agreste pernambucano onde se passaram os fatos, que remete ao passado colonial brasileiro; ou outro Brasil afora. Colonial, colonialismo, cristianismo, público sendo usado como privado são questões que atravessam a montagem.

Duas atrizes trans (Joe Andrade e Elke Falconiere), um ator trans (Dante Olivier) e mais dois atores cis (Jailton Júnior e Rodrigo Cavalcanti) estão no elenco. Das janelas do Zoom, elxs equalizam sentimento de indignação, revolta, insubordinação. Inflamam de verdades quem sofre na pele as perseguições e a falta de oportunidades. Articulam o clima de instabilidade e praticamente desenham para quem não quer ler o que é ser uma pessoa trans num país como o nosso.

Além das situações que a atriz Renata Carvalho viveu recriadas para a cena online, o dramaturgo e diretor Rodrigo Dourado criou um conflito paralelo à contenda pública, a trama de um casal LGBT formado por um homem cis e um homem trans, que lideram o  movimento para levar a peça à cidade. Os quadrados do Zoom funcionam bem para impor a dinâmica da reinserção e retirada consecutiva da encenação, espelhando o que ocorreu com Renata Carvalho em 2018.

Além do bom desempenho técnico com a plataforma, O Evangelho Segundo Vera Cruz garante o humor ácido e a alternância entre crítica social, posicionamento político e dose de revolta represada por séculos de opressão. O resultado é instigante.  

Em dado momento, a atriz Joe Andrade interage com a plateia, do chat da Plataforma Zoom, ao perguntar se pessoas trans subtraem as oportunidades de trabalho das pessoas cis gêneros. Isso ocorre após uma acalorada renovação da fala da atriz Renata Carvalho sobre o tema do transfake no teatro. É chamada de transfake a prática de atores cis assumirem personagens trans e travestis, Por isso, em abril de 2017 o Coletivo T criou o manifesto ‘Representatividade trans já. Diga não ao Trans Fake’ 

São muitas nuances, provocações de O Evangelho Segundo Vera Cruz, para marcar um posicionamento firme diante do cenário turbulento que inspirou a peça e da complexa realidade em que vivemos.

O mundo tão distópico quanto na ficção ganha relevo no vídeo, que conta com a participação da atriz Renata Carvalho, e é bem desconcertante. Utilizando imagens de arquivos da história do mundo, antigas e recentes, a narrativa se impõe como uma verdadeira guerra em que as vidas transgêneras se defendem para preservar a própria existência. Eu só pouparia a estátua de Ariano Suassuna. 

A esperança de futuro e a reação violenta também vão depender dos ataques. Os corpos dissidentes estão se articulando em força e inteligências para não serem mortos.  Não dá mais para recuar na busca por liberdade, com dissidência e desobediências para o pleno exercício das subjetividades.

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