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O festivo como ato político
Crítica: As cores da América Latina 

Montagem combina várias matrizes culturais. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Premiada no 34° Prêmio Shell de Teatro como Destaque Nacional e concebida a partir do Concurso-Prêmio Manaus 2022 Thiago de Mello, a criação As Cores da América Latina ressignifica tradições populares consagradas em uma nova composição cênica que potencializa sua expressividade política. Sob direção de Fábio Moura e Talita Menezes, a Panorando Cia e Produtora de Manaus entrelaça o Cavalo-Marinho (Pernambuco/Paraíba), La Tirana (Chile), Huaconada (Peru) e o Fofão (Maranhão), reimaginando fronteiras através da diversidade latino-americana.

Apresentada no Teatro Renascença, em Porto Alegre, nos dias 31 de maio e 1º de junho, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, a montagem integra um circuito que amplia seu diálogo com diferentes públicos. A obra estabelece uma intersecção entre dança, teatro e artes visuais com performances marcadas por estética de cores intensas e máscaras que transformam o espaço cênico em território de celebração identitária e reflexão política.

Espetáculo conta com intérpretes-criadores Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Originário da Zona da Mata nordestina, o Cavalo-Marinho combina teatro, dança e música em uma estrutura que pode durar mais de oito horas, com dezenas de personagens (Capitão, Mateus, Catirina, entre outros) e rica trama de toadas, loas e passos específicos. No espetáculo, contribui com sua narrativa não-linear e corporeidade desenvolvida pelos brincantes, marcada pelo jogo entre equilíbrio e desequilíbrio.

Celebrada anualmente na vila de La Tirana, na Região de Tarapacá, norte do Chile, a Fiesta de La Tirana constitui-se como festival religioso em honra à Virgem do Carmo, onde coexistem elementos indígenas, ciganos e espanhóis. Suas danças mascaradas de diabladas e chunchos inspiram cores vibrantes, a relação entre sagrado e profano e a musicalidade andina que estrutura várias cenas.

A Huaconada, dança ritual da região de Junín, Peru, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, é executada por dançarinos com máscaras características que chicoteiam o ar para afastar maus espíritos. O espetáculo extrai destas máscaras, que representam anciãos com autoridade moral, uma presença cênica que oscila entre o humano e o sobre-humano.

O Fofão do carnaval maranhense, com sua máscara de grandes bochechas, nariz avermelhado e cabelos coloridos, frequentemente veste macacões multicoloridos e carrega um bastão. Esta figura simultaneamente cômica e assustadora inspira diretamente a visualidade do espetáculo, com as máscaras utilizadas pelos performers reinventando esta tradição em contexto contemporâneo.

Este entrelaçamento de referências culturais gera uma linguagem cênica enraizada na tradição e aberta à experimentação contemporânea.

Este entrelaçamento de referências culturais exerce uma reelaboração criativa que gera uma nova linguagem cênica, simultaneamente enraizada na tradição e aberta à experimentação contemporânea.

Espetáculo defende o festivo como ato político. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

A festa popular historicamente constitui-se como espaço de liberdade e transgressão, onde hierarquias são temporariamente invertidas e normas sociais suspensas. Através da mescla de tradições diversas, As Cores da América Latina materializa esse potencial insurgente. Revestidos por máscaras e figurinos, os corpos dos intérpretes adquirem qualidade híbrida, ocupando um espaço de transformação constante.

A atmosfera da montagem, dinâmica e polifônica, constitui simultaneamente expressão cultural e manifesto político. Como observa Mikhail Bakhtin em sua análise da cultura popular, particularmente significativa é a ambivalência do riso popular, simultaneamente alegre e sarcástico, negativo e afirmativo. Tal ambivalência permeia As Cores da América Latina quando a obra aborda morte e nascimento através da linguagem da celebração, explorando contradições inerentes tanto à existência humana quanto à realidade social latino-americana.

Fronteiras e Zonas de Contato Cultural

Ileana Diéguez Caballero, em Cenários Liminares, desenvolve uma proposta teórica fértil para pensar a obra. Sua concepção de práticas cênicas que habitam zonas fronteiriças entre disciplinas, culturas e realidades sociais oferece um marco interpretativo que ilumina o trabalho da Panorando.

A criação estabelece um território cênico que emerge do encontro entre dança, teatro e ritual. Este hibridismo corresponde também a um cruzamento de fronteiras geográficas, onde manifestações amazônicas dialogam com expressões nordestinas e andinas.

O conceito de liminaridade, desenvolvido por Victor Turner, encontra eco na obra da Panorando: os intérpretes, transformados por máscaras e figurinos, tornam-se entidades entre estados, permitindo a manifestação de possibilidades existenciais normalmente invisíveis no cotidiano.

Obra aposta na corporeidade e subversão. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Os corpos dos intérpretes-criadores (Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes) estabelecem-se como territórios de contestação e afirmação identitária. Seus movimentos inspirados em animais e ritmos latino-americanos comunicam resistência e pertencimento cultural, revelando a potência política do movimento quando transpõe o familiar para o extraordinário.

A dimensão visual concebida por Fábio Moura, com figurinos coloridos de Lú de Menezes e máscaras renovadoras, cria seres híbridos. O cenário – painel de tecidos diversos com luzes ambaradas – evoca simultaneamente o doméstico e o mágico. Estes elementos funcionam como “dispositivos de memória”, ativando referências que resistem ao apagamento.

Da pesquisa musical de Talita Menezes emerge uma proposta de interculturalidade crítica, onde diferentes matrizes culturais dialogam sem perder suas especificidades. Este aspecto dialoga com o pensamento decolonial latino-americano e a noção de “pensamento fronteiriço” de Walter Mignolo, propondo um espaço onde tradições podem coexistir em suas diferenças.

As fronteiras culturais são reimaginadas como zonas de contato e criação, desafiando tanto o universalismo eurocêntrico quanto os essencialismos identitários, valorizando saberes tradicionalmente marginalizados sem romantizá-los.

 

A alegria como estratégia de sobrevivência. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS 

A alegria manifesta constitui-se como estratégia política deliberada. A experiência de contentamento democratiza o acesso à reflexão política através da emoção estética, criando um espaço onde a transmissão de saberes acontece pelo prazer, não pela imposição discursiva.

As Cores da América Latina adquire particular relevância em um contexto de crescente polarização, recordando-nos que a festa constitui potente ato político de afirmação identitária, resistência cultural e imaginação de futuros possíveis para a América Latina.

FICHA TÉCNICA
Direção: Fábio Moura e Talita Menezes
Coreografia: Criação coletiva
Intérpretes-criadores: Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes
Visualidades: Fábio Moura
Pesquisa musical: Talita Menezes
Confecção de figurino: Lú de Menezes
Produção e iluminação: Fábio Moura

Referências 
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987.
CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários Liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011.
TURNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

 

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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Entre a precisão técnica e a ousadia contida
Crítica do espetáculo Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses

Grupo Circo Híbrido, de Porto Alegre. Foto: Divulgação

Como um trapezista que domina perfeitamente o movimento, mas não arrisca o salto mortal que arrancaria suspiros da plateia, o espetáculo Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses, do Circo Híbrido, exibe impecável execução técnica, mas falha em provocar o maravilhamento que define a verdadeira magia circense. Apresentado no Teatro do CHC Santa Casa durante o Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, esta celebração dos 20 anos da companhia porto-alegrense revela-se uma experiência de contrastes: virtuosismo individual que não se traduz em narrativa envolvente como um todo.

Com duração de 80 minutos, a peça revela o notável talento dos artistas, cuja destreza é inegável. Agatha Andriola impressiona a plateia com sua elasticidade desconcertante, realizando contorções que desafiam os limites físicos imagináveis. Seus números de contorcionismo são pontos altos do espetáculo, provocando reações imediatas de admiração.

As acrobacias aéreas executadas por Lara Rocho no tecido acrobático também merecem destaque. Suas evoluções combinam força, precisão e fluidez, criando imagens de beleza visual. Tainá Borges cativa com seu equilíbrio meticuloso sobre garrafas, um número que gera momentos de tensão e admiração. Gabriel Martins exibe habilidade com os malabares, enquanto Luís Cocolichio, Guilherme Capaverde e Maílson Fantinel completam o elenco com performances tecnicamente consistentes.

No entanto, apesar das qualidades individuais de cada artista, a dramaturgia não consegue entrelaçar os números de forma a construir um tecido dramatúrgico coeso e pulsante. A sequência de quadros, embora bem executados tecnicamente, torna-se por vezes monótona, criando momentos de distanciamento que afastam a montagem da energia contagiante típica do circo tradicional.

Alice Viveiros de Castro, uma das mais importantes pesquisadoras do circo no Brasil, identifica quatro elementos fundamentais desta arte: a técnica, a surpresa, o risco e a conexão emocional com o público. No caso de Cir.co, observa-se claramente o domínio da técnica, porém há uma carência dos outros elementos. A previsibilidade das apresentações e a ausência de momentos verdadeiramente surpreendentes diminuem o impacto emocional da performance.

A dimensão política do circo, enquanto espaço de acolhimento para a diversidade, também merece atenção. Historicamente, como aponta Castro, “o circo sempre foi um espaço de acolhimento para os diferentes”, reunindo artistas de diversas origens étnicas e sociais. No caso do elenco do Circo Híbrido, predominantemente branco, a inclusão de artistas negros poderia fortalecer essa dimensão política. Além disso, a função social do palhaço (e por extensão de toda a trupe) como “crítico social, um espelho que reflete nossas contradições” mostrou-se praticamente ausente no espetáculo, aparecendo brevemente na menção aos trâmites burocráticos de editais, perdendo assim a oportunidade de exercer a crítica social inerente à essa arte.

Tainá Borges. Foto: Sal Fotografia / Divulgação

Três momentos, no entanto, conseguiram, na noite chuvosa de terça-feira, 27 de maio, romper com essa previsibilidade: a flexibilidade impressionante de Agatha Andriola; o equilíbrio preciso de Tainá Borges sobre garrafas; e a cena em que a mesma artista deixa cair papéis e as crianças da plateia, espontaneamente, a ajudam a recolhê-los – talvez o instante mais autêntico de conexão direta entre artistas e público em toda a apresentação.

A ideia de usar o Minidicionário Poético das Artes Circenses como fio condutor da narrativa é promissora, mas sua execução apresenta irregularidades que comprometem o ritmo do espetáculo. A trilha sonora, embora funcional, carece de variações dinâmicas que poderiam acentuar a intensidade dos diferentes quadros, resultando em uma paisagem sonora que não potencializa completamente a experiência visual.

Os figurinos, com sua estética contemporânea, oferecem uma releitura interessante das vestimentas tradicionais circenses, mas acabam contribuindo para certo distanciamento, afastando-se da identidade mais popular e espontânea do circo tradicional. A produção prioriza a forma, resultando em uma exibição visualmente agradável, porém por vezes carente de autenticidade.

A comicidade, elemento fundamental da tradição circense, é pouco explorada. O palhaço, figura central do circo, simboliza o encontro com o ridículo que nos torna humanos; essa dimensão não encontra tradução efetiva na encenação do Circo Híbrido, que parece mais preocupado com a execução técnica do que com a ligação emocional com a plateia.

Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses destaca-se pelo talento individual dos artistas, especialmente nos impressionantes números de contorcionismo e acrobacias aéreas. O espetáculo contribui para o panorama das artes circenses contemporâneas no Brasil, mas deixa a sensação de que o grupo ainda pode explorar mais profundamente a essência do que torna o circo uma arte tão fascinante: sua capacidade de surpreender, emocionar e conectar-se mais profundamente com o público.

FICHA TÉCNICA

Direção: Tainá Borges e Lara Rocho
Elenco: Tainá Borges, Luís Cocolichio, Lara Rocho, Agatha Andriola, Maílson Fantinel, Guilherme Capaverde e Gabriel Martins.
Cenografia: Luís Cocolichio
Trilha sonora: Viridiana
Iluminação: Carol Zimmer
Registro de Imagens: Sal Fotografia
Design e comunicação: Mônica Kern
Produção: Tainá Borges e Vado Vergara
Realização: Circo Híbrido

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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Ané das Pedras: Ritual Ancestral do Povo Kariri
Entre acolhimento e violência simbólica

 

Sob céu claro e ventos frios, a ancestralidade indígena atravessa a capital gaúcha com Ané das Pedras. Foto: Denis Gosch

Depois de alguns dias de chuva em Porto Alegre, neste sábado, 31 de maio, o céu estava claro, com temperaturas baixas e ventos frios que levaram muitas pessoas a usar casacos pesados e óculos escuros na Praça da Alfândega, no centro da cidade. Foi neste cenário que a artista indígena Bárbara Matias Kariri apresentou Ané das Pedras, uma performance ritual do repertório da Coletiva Flecha Lançada Arte (CE), com produção de Lara Alencar, que integra a programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre.

Na língua do povo Kariri, “Ané” representa o sonho, conceito que fundamenta esta performance singular. A obra estabelece um diálogo profundo com as pedras enquanto entidades ancestrais e encantadas, elementos centrais na cosmovisão desta nação indígena nordestina. “Essa prática ritual nos convida a confiar à pedra aquilo que buscamos, nossas necessidades mais íntimas, depositando nela nossos desejos e aspirações”, revela Bárbara.

Na tradição Kariri, as pedras transcendem sua materialidade aparente — são compreendidas como seres dotados de vida, ancestrais que oferecem proteção e força. “Em momentos de impossibilidade, minha avó sempre evocava a Santa Pedra”, recorda a artista. “Durante uma severa seca que assolou o Ceará, quando a fome se alastrou, meus ancestrais preparavam um caldo ritualístico com ervas e pedras. Após o preparo, retiravam as pedras, devolvendo-as respeitosamente à terra, e consumiam aquele líquido que lhes proporcionava sustento e vitalidade.”

O vasto território do Cariri, cercado por imponentes chapadas e formações rochosas, mantém uma relação simbiótica com estes elementos minerais. “As pedras não apenas nos circundam, mas caminham conosco, compartilham nossa existência, são seres vivos que integram nossa realidade”, enfatiza Bárbara. Esta perspectiva contrasta radicalmente com o pensamento ocidental, que frequentemente reduz as pedras a meros obstáculos a serem removidos do caminho, revelando cosmologias fundamentalmente distintas sobre nossa relação com o mundo mineral.

Entre a violência simbólica e o acolhimento: três encontros marcantes

A performance de Bárbara em Porto Alegre foi marcada por três episódios significativos que revelam diferentes formas de recepção ao seu trabalho e à sua identidade indígena.

O primeiro ocorreu quando uma mulher, ao ser abordada pela artista, respondeu friamente: “Você é tão jovem, vá procurar um trabalho”. Quando Bárbara tentou estabelecer um diálogo sobre a ancestralidade das pedras, a mulher declarou: “Eu não tenho essa coisa espiritual, eu sou materialista”. A artista ainda tentou explicar que a pedra é, de fato, material, mas a conexão espiritual viria do contato, ao que a mulher respondeu negativamente. O encontro terminou com um comentário sobre os dentes da artista, revelando um olhar exotizante.

O segundo episódio, considerado mais grave pela performer, envolveu uma senhora que insistentemente a chamava de “índia” (não de indígena) e oferecia dinheiro, balançando uma nota de 100 reais. “Como ela teve autorização, no meio de um monte de gente, para fazer essa provocação toda?”, questiona Bárbara, evidenciando o desconforto com a situação.

Contrastando com essas experiências, uma terceira mulher demonstrou genuíno interesse. Ao receber a pedra das mãos de Bárbara, ela não apenas se engajou na apresentação como também convidou duas amigas para participarem. “O trabalho também tem esse lugar do encontro que pode dar certo ou não, pode acontecer violência, mas também tem um lugar de identificação, de afeto e de muita força espiritual”, reflete a artista.

Público participa ativamente da performance. Foto: Denis Gosch

Os caminhos rituais do Ané das Pedras

A performance, que estreou em 2019 num festival no Crato (CE), tem circulado por festivais de teatro, performance e dança. O trabalho começa com Bárbara vestida com trajes tradicionais de palha, carregando um maracá e uma cuia com pedras. Ela caminha pelas ruas da cidade, criando encontros com as pessoas e convidando-as a participar do ritual final: o plantio das pedras.

“O percurso demora uns 22 minutos, porque não é sobre a distância, mas sobre os encontros”, diz. Ela busca ruas com grande fluxo de pessoas e vai se conectando pelo olhar, um desafio na sociedade contemporânea. O trajeto termina em uma árvore cuidadosamente escolhida, que precisa atender a requisitos técnicos específicos.

“Eu preciso de uma árvore que não tenha concreto debaixo e normalmente escolho uma que consiga receber um bom número de pessoas”, detalha Bárbara. Na apresentação em Porto Alegre, mais de 60 pessoas acompanharam o ritual até seu momento final.

Importante destacar que as pedras utilizadas são sempre do próprio local onde a performance acontece. “Eu trabalho com as pedras daquele determinado lugar que eu me encontro. Porque não adianta eu pensar só que o rio lá da minha comunidade é um ancestral. É importante que eu pense que o rio que está em São Paulo, os rios que estão em outros lugares também precisam ser protegidos”, explica.

Um ato de resistência indígena e reeducação de imaginários

TRabalho é uma forma de reexistência cultural Foto: Lara Alencar

Ané das Pedras vai além da apresentação artística, pois posiciona-se como uma forma de reexistência cultural e uma proposta de reeducação de imaginários. “A cosmovisão dos povos indígenas é uma visão de mundo muito mais anticolonial e contracolonial na sociedade capitalista que a gente vive”, defende Bárbara.

Levar para o espaço público e para as artes cênicas elementos sagrados da cultura Kariri é um ato político. “Trazer a pedra como algo importante num lugar em que o que é importante é o dinheiro, o que alguém deu valor. Trazer para o palco algo que é forte para a gente, que é importante para a gente, é também uma reeducação de imaginários”, assinala.

A exibição em Porto Alegre ganhou significado adicional após a crise climática que assolou o estado. “Para mim foi muito forte vir fazer o trabalho aqui depois dessa crise climática escancarada que o estado viveu e que todo mundo assistiu”, situa Bárbara, estabelecendo uma conexão entre seu trabalho com os elementos da natureza e as questões ambientais contemporâneas.

Uma conquista histórica no Palco Giratório

A circulação de Ané das Pedras pelo Palco Giratório do Sesc Brasil representa um marco importante tanto para a artista quanto para a visibilidade das artes indígenas no circuito nacional. “A gente é o segundo grupo do interior do Ceará a circular pelo Palco Giratório e eu acredito que a gente é o primeiro grupo indígena com um trabalho voltado para a memória indígena a circular nesse programa que tem tantos anos”, celebra.

A decisão política de permanecer no Cariri

Apesar do reconhecimento nacional e das oportunidades de circulação, Bárbara Matias mantém uma posição política clara: continuar vivendo no interior do Ceará. “Por muito tempo a gente viu as pessoas do Nordeste sendo obrigadas, em sua maioria por questões de trabalho, a se deslocar para os grandes centros. Eu reivindico continuar morando no interior do Ceará”, afirma.

Para a artista, essa escolha é também um exercício político. “Tem aeroporto, as pessoas sabem do meu trabalho, as redes sociais estão aí, tem um telefone que pode ligar, dá para atender o e-mail. Não precisamos nos deslocar do nosso território de origem”, argumenta.

Permanecer no Cariri significa manter proximidade com sua família e comunidade, elementos que alimentam sua produção artística. “Continuar morando lá é também uma forma de não perder alguma coisa que alimenta muito firmemente o meu trabalho”, conclui Bárbara, reafirmando seu compromisso com suas raízes e com a valorização do território nordestino como espaço legítimo de produção cultural contemporânea.

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Na ginga da resistência
Crítica do espetáculo Encruzilhada

Grupo de Caxias (RS), traduz em movimento a potência dos corpos periféricos, transformando o samba, a arquitetura das favelas e as referências a Exu em uma contundente manifestação artística decolonial. Foto: Paulo Pretz

O espetáculo de dança Encruzilhada leva a favela para a cena, espelhando-a como um labirinto de muitos cruzos. A peça coreográfica de Caxias (RS) dirigido por Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina, foi exibida no domingo, 25/05, no CHC Santa Casa em Porto Alegre, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

O corpo é essencialmente samba nessa Encruzilhada, carregando as marcas das diásporas, conjunções e controvérsias que formam o Brasil. Os intérpretes-criadores Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina e Thiago Roque partem de uma perspectiva decolonial para construir um mosaico coreográfico que desafia hierarquias estéticas. A hibridização de linguagens – onde a dança de salão dialoga com a gestualidade das danças urbanas, enquanto fundamentos do balé clássico são desconstruídos e ressignificados pela ginga dos ritmos afro-brasileiros – está intrinsecamente ligada às experiências pessoais dos dançarinos, que contribuem com suas próprias bagagens de vida e técnicas diversas. Essa mistura de vocabulários de movimento sugere um posicionamento político que ecoa o conceito de encruzilhada como espaço de múltiplas convergências culturais e estéticas.

Nessa estrutura narrativa fragmentada, os corpos transitam entre estados de opressão e insurgência, desenhando no espaço uma cartografia dos afetos periféricos. Os artistas constroem uma dramaturgia corporal que oscila entre a exaustão e o soerguimento, materializada de forma emblemática na “sambada do chinelo”, sequência onde o dançarino Igor Cavalcanti Medina explora os limites físicos em uma metáfora potente da persistência das comunidades marginalizadas.

Os movimentos do elenco, ora contidos e sufocados, ora explosivos e catárticos, projetam as dinâmicas sociais das encruzilhadas urbanas, criando um discurso corporal que expõe tensões, fraturas e celebrações da vida suburbana. Os corpos narram histórias e são, eles mesmos, essas histórias em suas materialidades suadas, ofegantes e resilientes.

A pesquisa dessa montagem está sustentada por material teórico, estético e político. Foto: Paulo Pretz 

Encruzilhada incorpora o conceito teórico desenvolvido por Leda Maria Martins em Afrografias da Memória, onde a encruzilhada é apresentada como “instância simbólica e metonímica” que opera como um “lugar terceiro” de interseções, desvios e múltiplas possibilidades. Ao adotar este conceito já em seu título, o espetáculo assume uma postura que valoriza o entrelaçamento de linguagens e saberes.

Na montagem cênica, a encruzilhada manifesta-se como tema e como princípio estruturante que organiza a própria dramaturgia corporal. Como morada de Exu, “linguista-tradutor do mundo”, conforme elabora Luiz Rufino em Pedagogia das encruzilhadas, a peça explora os elementos arquitetônicos das comunidades periféricas inspirados no artistas visual e performático Hélio Oiticica (937 – 1980), transformando-os em dispositivos que ativam memórias corporais e espaciais que desafiam a linearidade das narrativas hegemônicas.

Oiticica, artista que conferiu status estético às comunidades periféricas, constitui referência fundamental nas pesquisas do grupo de Caxias. Suas criações revolucionárias como os Parangolés (1964-1968), capas coloridas que incorporam o movimento e o ritmo do samba; os Penetráveis (1960-1979), instalações labirínticas inspiradas na arquitetura espontânea das favelas; e a Tropicália (1967), ambiente que sintetizava elementos da cultura brasileira marginalizada, ecoam no espetáculo Encruzilhada através do bailado corporal dos artistas e na concepção espacial que evoca os dispositivos arquitetônicos e urbanísticos dos morros.

A incorporação da ginga, do samba e da arquitetura labiríntica inspirada nas favelas opera no espetáculo como concretização do conceito de encruzilhada enquanto “lugar radial de centramento e descentramento”, como define Leda Maria Martins. Os corpos em movimento no espaço cênico apresentam-se como veículos de uma forma de conhecimento alternativa, na qual o saber não se dá apenas pelo logos, mas pelo pathos, pela corporalidade e pela performance. Ao entrecruzar a estética de Oiticica com as tradições afro-brasileiras, o espetáculo Encruzilhada propõe novos modos de existência baseados na fluidez e na negociação de identidades, rompendo com as dicotomias impostas pela colonialidade.

Em primeiro plano Ana Claudia Pereira, no espetáculo Encruzilhada. Foto: Divulgação

Os dançarinos transitam entre precisão técnica e o gesto cotidiano, com alguma improvisação, criando uma linguagem corporal que recusa categorias fechadas. A incorporação de elementos rituais, particularmente nas sequências inspiradas nas corporalidades de Exu, adiciona camadas de significado que aproxima a performance de uma experiência ritual coletiva.

Como uma narrativa integrada às corporeidades em cena, a trilha sonora de Encruzilhada é executada ao vivo por Zeca Duarte, compositor e multiinstrumentista. Suas criações autorais tecem uma dramaturgia sonora que entrelaça as tradições do samba e do choro com referências contemporâneas, evocando a sofisticação harmônica de Baden Powell e a irreverência rítmica de Jorge Ben Jor. Esta musicalidade traduz sonoramente o conceito de encruzilhada, estabelecendo-se como ponto de confluência entre diversas correntes da música brasileira.

A parceria com o percussionista Marcelo Poleze Silva adiciona camadas de complexidade rítmica que dialogam diretamente com os corpos do elenco, estabelecendo uma integração entre movimento e som que remete às práticas comunitárias das rodas de samba. Os instrumentos de percussão, fundamentais nas tradições musicais afro-brasileiras, atuam como extensões dos corpos em cena.

O ambiente visual de Encruzilhada permite ligações entre presença física e espacialidade. O cenário, marcado por desenhos que evocam a estética do grafite urbano e por representações de entidades das religiões de matriz africana, transforma o palco em um portal entre mundos, enquanto o figurino, de aparência casual mas carregado de significados, destaca-se pela deliberada apropriação da camisa amarela da seleção brasileira – um ato político de resgate de um símbolo nacional sequestrado por discursos autoritários.

As vestes, adornadas com saudações a Exu e elementos gráficos que remetem às encruzilhadas, funcionam como uma segunda pele que amplifica o discurso corporal dos intérpretes. Complementando esta narrativa visual, a iluminação alterna momentos de penumbra opressiva e clarões de esperança, construindo atmosferas que reforçam a narrativa fragmentada e pulsante que emerge dos corpos em estado de resistência e celebração.

Nas sequências iniciais, a opção por manter determinadas zonas do palco em penumbra atua como comentário social sobre os mecanismos de invisibilização operados pelo sistema capitalista contemporâneo. Esta escuridão seletiva explicita visualmente as dinâmicas de exclusão que relegam determinados corpos e territórios às sombras do panorama social. Ao longo da performance, a luz adquire qualidades quase coreográficas, dançando junto aos intérpretes, ora revelando detalhes minuciosos, ora expandindo-se em feixes amplos que abraçam toda a cena.

Encruzilhada afirma-se como manifestação artística decolonial que, através da potência expressiva dos corpos, da riqueza musical e da dramaturgia fragmentada, desconstrói estruturas de dominação historicamente estabelecidas. O espetáculo questiona a lógica racista de produção de identidades enquanto busca formas alternativas de existência e resistência. Sua força reside na capacidade de transformar linguagens artísticas em posicionamento político, sem abrir mão da experiência estética estimulante e rica em nuances. Ao celebrar a complexidade da identidade brasileira através de seus encontros e desencontros, a obra convida o público a habitar poeticamente o labirinto de possibilidades que emerge quando nos permitimos existir nas encruzilhadas.

Ficha Técnica

Direção Geral e Artística: Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina

Direção Musical e Composição: Zeca Duarte

Intérpretes Criadores: Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina
Thiago Roque

Percussão: Marcelo Poleze Silva

Sonorização: Haik Yermia Khatchirian

Assistência de Palco: Kaynan Cousseau Ribeiro

Dramaturgia, iluminação e Figurino: Paula Giusto

Produção Cultural e Executiva : Uyara Camargo

 

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

 

 

 

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Primeira antologia póstuma do vampiro
Crítica de Daqui ninguém sai

Espetáculo do Teatro de Comédia do Paraná comemora centenário de Dalton Trevisan, que morreu em dezembro de 2024, aos 99 anos. Foto: Annelize Tozetto

 

Se fossem ambientados no Recife, os contos de Dalton Trevisan poderiam ter como cenário a Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista. Imagino o contista morando em alguma casa antiga em Santo Amaro e saindo anônimo para colher histórias de personagens no bairro de São José. A Conde da Boa Vista talvez seja o equivalente à XV de Novembro em Curitiba. Será? Mas Recife tem outro ar. É fétida, dá pra sentir de pronto. O cheiro do mangue que se mistura ao calor escaldante. As cores estouradas. Os personagens suariam bicas, é verdade. No entanto, continuariam pervertidos, degenerados e escrotos. As mulheres ainda seriam agredidas por seus companheiros, homens bêbados, que batem sem dó, arrastam pelo cabelo, cospem na cara, tiram sangue, matam. Os pivetes na rua cheirando cola. As putas na praça.

Curitiba engana. Parece coisa fina, moderna. Trevisan descasca: “enjoadinha, narcisista, toda de acrílico para turista ver”. Fico pensando que nós, pernambucanos bairristas declarados que somos, só falamos mal do Recife entre os nossos. Não me venha ninguém dizer um ai da Veneza pernambucana – contém ironia – que vai ouvir poucas e boas. Dalton Trevisan teria produzido mais de 700 contos e, nessa trajetória, há uma dualidade transbordante relacionada à cidade – ódio declarado e amor que transpira. Curitiba é “província, cárcere, lar”. Foi nesta cidade que o autor viveu e morreu, em dezembro do ano passado, aos 99 anos, quando já aconteciam os ensaios de Daqui ninguém sai, obra assinada pelo Teatro de Comédia do Paraná (TCP). O espetáculo estreou no Teatro Guairinha, na Rua XV de Novembro, no Festival de Curitiba, nos dias 26 e 27 de março, em duas sessões lotadas. No dia 23 de maio, volta em cartaz de sexta a domingo, no mesmo teatro, cumprindo temporada até 15 de junho.

A direção é de Nena Inoue, que também é atriz e esteve na primeira peça que levou a obra de Trevisan ao teatro: Mistérios de Curitiba, com direção de Ademar Guerra, em 1990. Nena conta que foi a primeira vez que o público curitibano se viu representado no palco. Era de certa forma uma homenagem à cidade e aos curitibanos. Em 1992, Nena voltou a trabalhar com Guerra em O Vampiro e a Polaquinha, que ficou seis anos em cartaz, mas apresentando uma realidade mais crua e sórdida.

Em Daqui ninguém sai, havia a intenção de homenagear o centenário do autor, comemorado em junho deste ano. Para essa tarefa, Nena chamou o dramaturgo Henrique Fontes, potiguar, que escreveu e dirigiu Sobrevivente, peça em que a atriz atua com o filho, Pedro Inoue, e que estreou no Festival de Curitiba de 2023. Na nova montagem, Fontes assina dramaturgia e assistência de direção. Em cena, estão os atores Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywe, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales.

A peça, dividida em nove movimentos, um prólogo (o Movimento 0) e um epílogo, explicita em sua encenação a dificuldade do processo. No “Movimento 1 – Dalton”, os atores contam que houve uma seleção pública de elenco e que, a princípio, o trabalho seria uma ocupação num casarão abandonado no alto da XV. A ideia não foi adiante. Então, o que ficou foi uma encenação que incorpora o processo de trabalho à cena: é basicamente uma trupe de atores dramatizando contos de Dalton Trevisan num exercício de metateatro. Parece ter sido a saída possível. Não é inventiva, embora funcione ao propósito da peça.

Direção é de Nena Inoue e dramaturgia e assistência de direção são de Henrique Fontes. Foto: Annelize Tozetto

Espetáculo lida com a tensão de representar o que não podemos mais aceitar. Foto: Annelize Tozetto

Neste mesmo movimento, um questionamento expõe a dúvida que ronda obras de autores que carregam um realismo repugnante, como Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan: “Fazer uma peça sobre esse cara em 2025. Para quê?”, levanta um dos atores. Essa pergunta não é pouca coisa, nem tem resposta fácil ou direta. Na literatura, as palavras explicitam a violência, mas as imagens se materializam apenas na nossa cabeça. Não é fácil de ler, às vezes pode ser enojante, inclusive pela aparência de normalidade na desumanização dos personagens. No entanto, a linguagem nos desconcerta e nos preenche, o que o autor faz com as palavras, a forma como aquilo nos atinge, nos deixa com tesão ou com ânsia de vômito, ou as duas coisas, é fascinante. De qualquer modo, não tem materialidade. Mas levar ao palco? Como representar no teatro a forma como a mulher é tratada nos contos de Trevisan? Estupros, erotismo incestuoso, pedofilia? “Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder?”, escreve no conto O vampiro de Curitiba.

Lidar com essa tensão de representar o que não podemos mais aceitar como sociedade marca a experiência de montagem da obra de Trevisan em Daqui ninguém sai desde o início da encenação, inclusive pelas escolhas do que levar ao palco e do que ressaltar. O “Movimento 0 – Maria Bueno”, prólogo do espetáculo, é um número musical a partir do conto Maria Bueno. Nele, Trevisan conta a história real de Maria da Conceição Bueno, morta em 29 de janeiro de 1893, na provinciana Curitiba.

A mulher foi degolada por Ignácio José Diniz, que prestava serviço ao Exército. O homem não queria que Maria fosse a um baile. Na encenação, um dos versos ganha potência, cantado pelo coro: “Ninguém é dono de Maria”. Esse trecho ecoa e diz, simbolicamente, logo de início, que a obra pode ser lida de muitas maneiras. E isso é eficaz, evitando a repulsa do espectador à peça à primeira vista. Mais adiante, o anúncio da “inocência”: “no júri popular do anspeçada Inácio | o doutor brada retumbante | crime passional! defesa da honra! já livre sem culpa nem pena| à desvalida Maria quem defendeu? | ó vergonha! ó justiça indigna!”.

As escolhas da encenação vão sendo amparadas por um trabalho dramatúrgico que evidencia a realidade dos escritos de Trevisan, muito mais do que a sua suposta perversão. Tem menos pus. Não se trata de uma justificativa de montagem, porque a obra do contista diz por si do seu valor, não precisa disso, mas de uma estratégia dramatúrgica que propõe um recorte de leitura, alcançando de modo menos virulento os espectadores que não necessariamente tiveram contato prévio com a literatura dele. O texto da peça acentua que os jovens não conhecem o escritor e que nem em Curitiba o contista é, de fato, lido. Então a peça é esse passeio pela obra, tirando o acelerador da repugnância e propondo visadas que nos deixam com menos incômodo, porque é como se houvesse um contraponto. A mulher ainda é espancada, degolada, morta com tiro. A mãe ainda é estuprada pelo filho. Mas há modos e modos de nos apresentar a tudo isso.

 A frase “Todas as tristezas podem ser suportadas se você as transformar em história”, por exemplo, é dita no “Movimento 3 – Maria”. No “Movimento 5 – João e Maria”, o gozo feminino ganha primeiro plano, mesmo que isso custe a vida da mulher. Maria é debochada e diz que nunca teve prazer com João. É morta. E um dos atores pergunta: “Será que não teria outro fim para essa cena?”. Uma das atrizes contesta: “Dalton escrevia o fim real das coisas. Ele não mentia e segue atual”. No “Movimento 6 – Ministórias”, temos a história de um casal que decide se matar, mas o homem faz isso primeiro e a mulher desiste, porque a vida é boa. No “Movimento 9 – Cartas”, um dos atores reproduz a defesa de Trevisan: “Quem matou Maria não fui eu”.

Há uma curadoria afiada, numa tarefa dificílima de fazer essa primeira antologia póstuma de Dalton Trevisan e não no suporte do livro, no teatro. A dramaturgia da peça teve 27 versões. De acordo com o programa, são mais de 50 contos e trechos de cartas inéditas do autor levadas à cena. É um trabalho hercúleo, não só pela dimensão da obra de Dalton Trevisan, mas pelo fato de que o autor nunca permitiu que os seus textos fossem alterados no palco: todas as vírgulas de cada conto estão lá. É literatura levada ao teatro. Então o que os criadores fizeram, numa troca que se explicita bonita entre dramaturgia e direção, foi curar esses textos num universo gigantesco e montá-los como um quebra-cabeças que tenha sentido, alinhavando dramaturgicamente a cena com as interferências de textos criados para além da obra de Dalton. Nesse processo, o espetáculo se estende, fica longo, inclusive porque são 12 atores em cena e cada um deles têm o seu momento de maior protagonismo.

Elenco tem 12 atores. Foto: Annelize Tozetto

O elenco é todo muito competente na tarefa de materializar literatura. Uma das atrizes, Paula Roque, fala em Libras e é traduzida pelos colegas em cena, como poderia sempre acontecer. Como são muitos atores, é difícil fazer destaques, mas Simone Spoladore tem a densidade que o texto de Dalton Trevisan solicita a uma atriz. E há uma cena impagável, a que mais engaja o público, que transforma o erótico em humor com maestria, o “Movimento 7 – Noite da Paixão”, um encontro amoroso entre Nelsinho (Zeca Salles) e uma puta (Carol Mascarenhas). Eles se jogam com tanto prazer e liberdade que o gozo da puta – que com  Carol Mascarenhas é gostosa e não decrépita – é aplaudido durante a cena e a imagem do combalido Nelsinho, magricelo, exausto, joelhos colados vira um deleite.

Paula Roque fala em Libras na peça e os colegas fazem a tradução para o público. Foto: Annelize Tozetto

Simone Spoladore. Foto: Annelize Tozetto

Carol Mascarenhas e Zeca Salles. Foto: Annelize Tozetto

A imagem do combalido Nelsinho. Foto: Annelize Tozetto

Depois dos contos, há ainda um Movimento com trechos das cartas trocadas entre Dalton Trevisan e muitos intelectuais e artistas da época, como Ademar Guerra, que dirigiu sua obra no teatro em duas ocasiões, e o escritor Otto Lara Rezende. Sentados em cadeiras postas em meia lua na frente do palco, os atores contam sobre a extensão da correspondência – as que foram lidas foram escolhidas num acervo de mais de 600 cartas – e citam o nome de pessoas com quem ele se correspondeu. O espetáculo talvez prescindisse das cartas. E, novamente, o recurso de encenação não nos instiga a imaginação. Mas, como dito, trata-se de uma antologia que se pretende ampla.

Nesse movimento de antologia, há ainda um resgate simbólico: as ilustrações reproduzidas no telão no fundo do palco são de Poty Lazzarotto, ilustrador das obras do contista por décadas. Se os recursos de encenação não fossem pouco provocativos na forma, essas imagens poderiam explodir de alguma maneira para além da tela estática, expandindo a cenografia por meio das ilustrações.

Dalton Trevisan, pelo que se sabe, era afeito a antologias. Entre 1979 e 2013, organizou sete antologias de sua própria obra. Em 2023, lançou Antologia pessoal, pela Record, e, segundo o professor, tradutor e escritor curitibano Caetano Galindo, no podcast 451 MHZ – O podcast dos livros, da Quatro cinco um, logo depois desse lançamento, Trevisan teria feito outra antologia, que circulou de modo mais restrito, apenas em Curitiba.

É significativo que a primeira antologia desde a morte venha do teatro, espaço privilegiado que confere materialidade às palavras. “Só Curitiba pra ter um escritor apelidado de vampiro. Me dá uma coisa de identidade”, diz Simone Spoladore em cena. Esse vampiro, que “não se alimenta de sangue mas de sonhos, confissões, palavras ao vento”. “Já estou desaparecendo?”, pergunta o personagem Trevisan no epílogo. Não, vampiro. Não há adeus para vampiros. Nem redenção.

O espetáculo Daqui ninguém sai foi apresentado nos dias 26 e 27 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Contos: Dalton Trevisan
Direção: Nena Inoue
Dramaturgia e assistência de direção: Henrique Fontes
Pesquisa literária: Fabiana Faversani
Elenco: Carol Mascarenhas, Fábyo Rolywer, Laís Cristina, Madu Forti, Paula Roque, Paulo Chierentini, Sidy Correa, Simone Spoladore, Trava da Fronteira, Val Salles, Wenry Bueno e Zeca Sales
Composição musical: Grace Torres e Lilian Nakahodo
Composição Maria Bueno: Grace Torres, Lilian Nakahodo e colaboração do elenco
Composição Balada das mocinhas do Passeio: Paulo Chierentini
Composição Perdido: Madu Forti e Zeca Sales
Preparação vocal: Babaya
Iluminação: Beto Bruel
Figurino: Verônica Julian
Cenografia: Carila Matzenbacher
Integração somática/Hatha Yoga: Carlos Cavalcante
Preparação coreográfica: Rapha Fernandes
Projeção mapeada: Ivan Soares
Tradução para Libras: PapO Traduções Artísticas e TAÉ Libras e Cultura
Intérpretes de Libras: Beatriz Reni, Elisa Maganhoto, Jamille de Jesus, Kelly Caobianco, Lais Guebur, Letícia Guebur, Nathan Sales, Ravena Abreu e Talita Grunhagen
Tradutores em cena: Talita Grünhagen e Jessica Nascimento
Assistente de figurino: Cristina Rosa
Assistente de iluminação: Anry Aider
Costureira: Doralice Peron
Cenotécnico: Fabiano Hoffmann
Produção geral: Diego Bertazzo
Assistente de produção: Guilherme Jaccon e Daniel Militão
Ilustrações: Poty Lazzarotto
Identidade visual: Marcos Minini
Fotos: Kraw Penas

Daqui ninguém sai. Foto: Annelize Tozetto

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