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O que vi do FRTN – Parte I

Abertura do 15º Festival Recife do Teatro Nacional. Fotos: Victor Jucá/Divulgação e Pollyanna Diniz

A abertura

Não foi nada fácil colocar o Festival Recife do Teatro Nacional nas ruas este ano. Reconhecidamente foi um empenho pessoal de André Brasileiro, ator, diretor, produtor e também presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife, de Simone Figueiredo, atriz e produtora antes de tudo, e secretária de Cultura do Recife, e da equipe envolvida na produção. As dificuldades estavam estampadas – eles assumiram os cargos já no segundo trimestre do ano; a classe estava desmotivada, com raiva até, principalmente por conta dos descasos com os pagamentos de cachês; os teatros com muitos problemas de equipamentos. Um prefeito ‘muito difícil’, para ser gentil, que não teve nem a oportunidade de disputar a reeleição.

Então diante de todo esse cenário, fazer um festival que homenageia Marcus Siqueira (1940-1981), como disse Roberto Lúcio, gerente operacional de artes cênicas da Prefeitura do Recife, no catálogo da mostra, é um ato político. “(…) um ator e diretor teatral marcante, combativo, questionador, amante e defensor do teatro de grupo e do aspecto pedagógico da arte do teatro”.

É preciso mesmo contextualizar para entender a emoção de Simone Figueiredo na abertura do festival, no palco do teatro de Santa Isabel, casa que ela já dirigiu. Para entender o porquê da importância ainda maior da celebração, da reunião, de lotar o Santa Isabel logo na abertura. De ver as pessoas rindo e chorando. Vivendo o teatro.

Gonzagão – A lenda

Talvez tudo tenha a sua hora. E foram 15 anos de espera até que o diretor e dramaturgo pernambucano João Falcão pudesse participar do Festival Recife do Teatro Nacional. Ele disse que sentia uma pontinha de inveja dos amigos que diziam que tinham participado do festival, que iam participar do festival. Como é mesmo difícil santo de casa fazer milagre! No teatro então…santo de casa geralmente precisa se benzer bem muito! E foi lindo ver um Santa Isabel lotado aplaudindo João, em suspenso depois de uma apresentação que tomou os corpos e as emoções por inteiro. (Na realidade, foram duas sessões; como o grupo ainda está em cartaz no Rio, eles voltaram ainda na madrugada para apresentar o espetáculo lá no dia seguinte).

Gonzagão – A lenda tem o espírito da celebração, da homenagem. Como bem disse Ivana Moura, não há opções pelo risco. O caminho é muito estruturado, a partir das músicas, para que mesmo que você não tenha nenhuma relação com o mito Luiz Gonzaga, seja alcançado de alguma forma. Imagina então apresentar esse espetáculo aqui! São cerca de 50 músicas que vão alinhavando a tentativa de contar a história do Rei do Baião. Mas não há uma preocupação histórica, em seguir fatos cronológicos, ou ser verdadeiramente fiel. Fica muito claro desde o início; até pela opção dramatúrgica: é uma trupe teatral quem remonta a história de Gonzagão. Em várias cenas há um jogo rápido, eletrizante; é até difícil acompanhar, respirar, compreender todo o diálogo. A fala, o gesto, a música, a troca de papeis.

Gonzagão – A lenda. Foto: Pollyanna Diniz

É um espetáculo que se constrói a partir da força do grupo; não teria o mesmo impacto se as escolhas fossem pelos talentos individuais dos atores. E nisso João Falcão é craque, em formar um elenco que se complementa, que não briga em cena, que se acrescenta. Mas tenho que dizer quão foi bom ver Eduardo Rios, do Quadro de Cena, se superando, com um timing perfeito, levando a plateia junto com as suas histórias; e também conhecer o trabalho de outro pernambucano, petrolinense, Paulo de Melo. E, em se tratando de um musical, se há que se destacar alguém é a única mulher no elenco: que voz linda e forte tem Laila Garin.

Para completar, os figurinos de Kika Lopes são lindos, bem cuidados, um quê de pop-hippie-chic; e a iluminação de Renato Machado complementa a cena – muito bem marcada, entradas, saídas, trocas de personagens, tiradas e piadinhas, tudo no momento certo.

Uma montagem que começa sem muitas pretensões e que vai aos pouquinhos ganhando forma, invadindo qualquer espaço que o espectador, solícito ou não, tenha deixado entreaberto.

### Para quem perguntou, João Falcão disse que tem muita vontade de fazer uma temporada aqui com esse espetáculo; mas não há previsão. O grupo ainda está em cartaz no Rio e próximo ano vai para São Paulo.

Absurdo

Alguns espetáculos me lembram muito a minha mãe. Preciso dizer que embora ela goste de teatro, gosta mais de televisão porque acha que consegue perceber a expressão dos atores em todos os detalhes. Odeia espetáculo ‘cabeçudo’. Fiquei pensando que teria levado a surra que não tomei quando criança se tivesse feito minha mãe ir ao teatro ver Absurdo, da Cia Atores de Laura. Imaginei ela perguntando: “Pollyanna, o que é isso? Que história mais sem pé nem cabeça é essa?”. “Satisfeita, Yolanda?”. O espírito é esse!

Absurdo, da Cia Atores de Laura, do Rio de Janeiro. Foto: Pollyanna Diniz

Os Atores de Laura apostam nas ideias do Teatro do Absurdo; uma cena que seria cotidiana, mas descolada do real, as situações non sense, os diálogos aparentemente sem sentido. Talvez seja a dramaturgia que nem sempre consegue nos fazer caminhar pelo ilógico sem perder o interesse. Em alguns momentos, é chato mesmo.

A peça traz dois casais, que podem trocar de pares; eles dividem a mesma cena mesmo antes de se conhecerem e também, depois descobrimos, o mesmo filho. O jogo de aparências, o medo contemporâneo, o consumismo, a hipocrisia estão lá. Um cara que sai de casa há 20 anos tentando encontrar a sua “verdadeira” casa, os diálogos cujos textos dizem uma coisa, mas representam outra completamente diferente. Sob direção de Daniel Herz estão Ana Paula Secco, Anderson Mello, Luiz André Alvim, Marcio Fonseca e Verônica Reis. Todos muito bem em cena – não há desníveis ou queda nas atuações.

O cenário é a sala de uma casa e, mais especificamente, como elemento (des)agregador, a mesa; onde pode acontecer um velório, um jantar sem comunicação, o esconderijo eterno do filho. Para mostrar mesmo que ninguém é normal; que a fotografia pode até dar indícios, mas o teatro consegue ser muito mais efetivo na crítica do cotidiano.

A mão na face, do grupo Bagaceira, estreou no FRTN. Foto: Pollyanna Diniz

A mão na face

O cenário da nova montagem do Grupo Bagaceira, do Ceará, é o camarim de uma boate. A cantora decadente acaba de sair do palco e agora quem se prepara para entrar é um travesti. Enquanto estão ali conversam sobre a vida. O texto de Rafael Martins nos dá vários socos no estômago ao longo da encenação; mas é na oscilação entre a comédia e o drama que está a chave para a montagem. Démick Lopes (Gina) e Marta Aurélia (Mara) conseguem segurar muito bem esse jogo. Podem sair de um embate de palavras dolorido, cheio de significados, para sonoras gargalhadas.

É um texto sensível; que traz as incompletudes, as frustrações, a falta de amor, mas também a amizade, o carinho. No meio desses dois personagens está um homem que já morreu e que, ao que parece, era dividido pela cantora e pelo travesti. E com o tempo passando, até disso eles conseguem rir ou chorar.

A direção é de Yuri Yamamoto. A construção do cenário é muito interessante. Traz o espectador pra bem pertinho; como voyer de uma relação que pode ter muitas reviravoltas; mas onde as coisas não necessariamente esão explícitas. Há paredes, mesmo que imaginárias. São os espelhos que tentam revelar, mas só mostram os personagens já montados, o batom vermelho, a luz caindo aos poucos, a fumaça do cigarro no ar.

Demick Lopes faz um travesti e Marta Aurélia uma cantora

### No dia em que vi o espetáculo, a atriz Ceronha Pontes estava na plateia. O espetáculo, inclusive, foi dedicado a ela, que também é cearense. Talvez a presença de Ceronha tenha despertado em mim algo que é por demais óbvio. Como esse trabalho é próximo do coletivo Angu de Teatro! A temática, o tratamento, a estética. Impossível não pensar que aqueles personagens cairíam como luvas em Ceronha Pontes, Márcia Cruz, Arilson Lopes, Vavá Schön-Paulino. Deu ainda mais vontade de ver o projeto Abuso, que surgiu a partir do intercâmbio que as duas companhias fizeram através do edital do Itaú Cultural, ser levado aos palcos.

Matilde, la cambiadora de cuerpos

Não vou mentir que a primeira coisa que me veio à mente quando a história de Matilde, la cambiadora de cuerpos se estabeleceu no palco foi o blockbuster brasileiro E se eu fosse você?. É meio assim mesmo. Uma bandida paraguaia tem o poder de trocar de corpo com quem ela quiser. É só beijar a pessoa. E não é que o delegado resolve apostar na história louca que o homem com corpo de mulher sentado à sua frente conta? Daí para a história invadir as televisões, jornais e programas de rádio sensacionalistas é um pulo.

As atrizes Elaine Cardim e Tatiana de Lima se revezam nos papeis; é através do gestual que incorporam os personagens, além de contar com a ajuda, por exemplo, de sapatos dispostos na lateral do cenário. É na opção dramatúrgica por transformar a história numa crítica à imprensa que para mim está o erro da montagem. Pode até dar agilidade, permitir a utilização do vídeo, tornar a história mais engraçada. Mas cai nas armadilhas reducionistas, na opção pelos caminhos menos tortuosos, por um enredo que não nos surpreende. Apesar do talento das atrizes, que arrancam gargalhadas do público.

Matilde, la cambiadora de cuerpos. Foto: Victor Jucá/Divulgação

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