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O contágio de ¡Bailemos… que se acaba el mundo!
na abertura do Feteag em Caruaru

Dancemos… Que o mundo se acaba  em Caruaru. Foto: Kari Carvalho

Muitos ritmos e interação entre os participantes . Foto: Kari Carvalho

Florencia Baigorrí e Maximiliano Carrasco Garrido, comandam as coreografias. Foto: Kari Carvalho / Divulgação

No cenário carregado de memórias da Estação Ferroviária de Caruaru, bandeirinhas coloridas e luzes desenham um convite fugaz, mas irresistível. Ali, a companhia argentina BiNeural-MonoKultur apresentou ¡Bailemos… que se acaba el mundo! (Dancemos… Que o mundo se acaba), uma experiência performática interativa que exige presença e movimento. Quarta-feira, 15 de outubro de 2025. Começando a programação do Festival de Teatro do Agreste (Feteag) em Caruaru – após uma abertura no Recife com o espetáculo francês À Mon Seul Désir – a peça impulsiona o público a uma jornada de dança, reflexão e descoberta. Utilizando um audiotour imersivo, o espetáculo confere ao público a condição de protagonista na construção da coreografia coletiva. Cada comando e cada batida sonora são convites diretos para que o participante siga, interprete e manifeste a obra com seu próprio corpo, como parte pulsante do bailado.

A mecânica dessa experiência singular se revela através dos fones de ouvido: cada espectador ativo mergulha em uma bolha sonora composta por músicas, narrações e instruções. Contudo, essa bolha individual se expande e integra-se a uma dimensão grupal a partir dos comandos que chegam pelos fones, ligando os corpos em movimentos que traçam uma corrente coletiva e compartilhada.

Para orientar essa dança coletiva, em cena, como âncoras visuais e facilitadores da coreografia, estão Florencia Baigorrí e Maximiliano Carrasco Garrido, posicionados em um tablado. Eles comandam as danças, fazendo gestos e movimentos que são seguidos pelos espectadores atuantes, que respondem aos estímulos do ambiente e às interações do grupo. Assim, os participantes são levados a diferentes ritmos e estados, enquanto o mundo exterior observa, curioso, a movimentação intensa que se desenrola como um balé urbano inesperado, uma intervenção artística que ressignifica o uso e a percepção do espaço.

Dancemos... Que o mundo se acaba Foto: Kari Carvalho

Plateia empolgada Foto: Kari Carvalho

A obra investe nessa experiência que dialoga com fenômenos históricos e sociais. O espetáculo ganha ressonância ao se inspirar nas coreomanias, surtos de dança incontrolável que assolaram comunidades na Europa medieval e renascentista, muitas vezes tomados como surtos psicogênicos – fenômenos de histeria em massa ou reações psicológicas coletivas que afetam o comportamento físico em um grupo de pessoas – ou até mesmo reações a toxinas como o ergot, um fungo que cresce em cereais como o centeio e pode causar uma condição conhecida como ergotismo, com sintomas que incluem alucinações, convulsões e espasmos musculares.

O caso mais célebre é a intrigante Epidemia de Baile de Estrasburgo de 1518, quando Madame Troffea começou a dançar incessantemente nas ruas e, em poucas semanas, centenas de pessoas se juntaram a ela, movendo-se ininterruptamente por dias e noites, até a exaustão, com relatos de mortes por ataque cardíaco, derrame ou exaustão física.

A BiNeural-MonoKultur habilmente relaciona esse evento histórico com a pulsante necessidade de encontro, expressão física e catarse no mundo contemporâneo. Gestado durante o período da pandemia de COVID-19, o espetáculo reflete a privação do contato físico, a sensação de isolamento e a urgência de conexão humana que marcaram aquele período. O espetáculo   evoca a memória de um passado distante, recontextualizando e subvertendo a ideia de um “contágio” perigoso e incontrolável em um “contágio” de gozo, de movimento consciente e de libertação. 

Diálogos Filosóficos

¡Bailemos… que se acaba el mundo! convida a subverter as convenções sociais da dança e a refletir sobre o corpo que também é mente, bem longe de dicotomias reducionistas. A dramaturgia entrelaça questões filosóficas ao desenho coreográfico, evocando a ideia cartesiana do corpo como máquina que converte energia em movimento, a analogia entre coração e relógio como mola propulsora deste corpo-máquina. E solta a inquietação: quando a corda do relógio acabar, quando a corda acabar para nós? Essas indagações sobre nossa possível condição de autômatos, sobre a plausível mecanicidade de nossa existência, atravessam a experiência performática, instaurando outras camadas para interpretações.

Essa perspectiva se aprofunda com referências, sem citar nomes, às investigações de Michel Foucault sobre como os corpos são disciplinados desde muito cedo através de instituições e práticas sociais, como uma forma de poder que molda os corpos para torná-los dóceis e úteis. A dramaturgia ainda instiga com perguntas sobre o que somos: androides, ciborgues ou simplesmente humanos, buscando a autenticidade do movimento em um mundo cada vez mais mediado pela tecnologia.

Durante a apresentação, outras ações aconteciam simultaneamente na Estação Ferroviária: um grupo de jovens ensaiava seus passos com uma caixa de som em volume considerável, curiosos transitavam, e o burburinho natural do espaço público pulsava. 

Uma “danceteria” na rua para a para atuação de 45 pessoas do público. Foto: Kari Carvalho

Tempo e Profundidade na Experiência: Uma Reflexão Crítica

Os participantes chegam à “boate” da BiNeural-MonoKultur já com uma abertura para a entrega e uma disponibilidade para se jogar na dança. Em Caruaru, havia um grupo diversificado, mas predominantemente jovem, desimpedido, engajado e festivo. Essa motivação preliminar é crucial para a performance, pois o êxito da experiência depende diretamente dessa entrega. O experimento, com uma duração aproximada uma hora e a rápida sucessão de provocações e transições entre estados corporais, levanta uma instigante questão crítica: embora a intenção do grupo de investigar a resposta a comandos e a disponibilidade dos participantes seja plenamente contemplada, seria o tempo suficiente para uma imersão verdadeiramente profunda nas muitas indagações e provações que o trabalho propõe?

Por outro, é possível que essa combinação – a duração concisa, a total disponibilidade e baixa resistência dos participantes, e as transições rápidas entre estados corporais – seja exatamente o que o grupo busca investigar norteados pelo espírito deste tempo. ¡Bailemos… que se acaba el mundo!, nesse sentido, funcionaria como um laboratório social que, por meio de dança, música, palavras, história, reflexões e direcionamentos diretos, testa o “efeito de manada” e a capacidade humana de responder a impulsos e comandos em um curto espaço de tempo, explorando a psicologia das massas e a conformidade social. Assim, a “fantasia da dança” mira apontar como a coletividade reage e se transforma sob estímulos específicos e controlados, explorando a força do impulso e da resposta imediata, e a maleabilidade da identidade individual dentro de um coletivo guiado, questionando os limites da autonomia e da influência externa.

A BiNeural-MonoKultur, fundada em 2004 por Christina Ruf (Alemanha) e Ariel Dávila (Argentina), se dedica à pesquisa em formatos que transformam o ato cênico em travessia imersiva. Seja em espaços teatrais convencionais ou ambientes site-specific, a interatividade é a espinha dorsal de seu trabalho, direcionando um público que se torna cocriador da narrativa.

Ficha artística

Conceito, dramaturgia, direção, edição e produção geral: Christina Ruf + Ariel Dávila (BiNeuralMonoKultur)
Tradução para o português: Iara Roccha
Coreografias: Florencia Baigorri + Adrián Andrada
Em cena no Brasil: Florencia Baigorrí + Maximiliano Carrasco Garrido
Vozes em português: Ana Luiza Leão + Thomas Huszer
Design sonoro: Guillermo Ceballos
Design e realização de palco, equipamentos e iluminação: Agustina Marquez
Design gráfico: Natalia Rojo

 

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