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Tulio Carella por inteiro
em Orgia e compadrio

Biografia de Alvaro Machado resgata a memória do escritor e dramaturgo argentino que transformou o exílio no Recife em literatura transgressora. Na imagem, Carella em entrevista para a revista Qué, de Buenos Aires, 1956, no lançamento de seu livro Tango – mito y esencia. Foto: Autoria desconhecida. Acervo Mario Tesler

Capital pernambucana dos anos 1960: o Recife de Tulio Carella. Foto: Reprodução

Um das imagens do livro, com a legenda: Faixa com anúncio da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, com o Teatro de Arena de São Paulo, montagem apresentada no Teatro de Santa Isabel, em 1960, com apoio da Prefeitura do Recife e do MCP

A publicação de Orgia e compadrio. Tulio Carella, drama e revolução na América Latina, obra do jornalista e doutor em artes cênicas Alvaro Machado, constitui um esforço essencial para iluminar a vida e o legado do escritor argentino Tulio Carella. Nascido em 1912, e desde cedo de notável talento poético, o filho de emigrantes calabreses pobres logrou construir uma carreira de sucesso nos principais palcos de Buenos Aires, recebendo prêmios e aclamação de público e crítica. De outro lado, a trajetória literária de Carella foi permeada por uma audácia intelectual e pessoal que, muitas vezes, cobrou um alto preço. Após receber orientações diretas de Federico García Lorca, quando contava apenas 21 anos, o portenho deu início a uma produção vasta e variada, que começou com farsas teatrais e, com o tempo, voltou-se para a representação de figuras marginalizadas da sociedade, explorando patrimônios da cultura popular, como o lunfardo, o tango e o gênero teatral chamado sainete criollo.

O destino de Carella tomou um rumo decisivo em 1960, quando aceitou o convite dos dramaturgos Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho para lecionar teatro na Universidade do Recife. Essa mudança para a capital pernambucana representou, além de um deslocamento geográfico, uma imersão profunda de Carella em um universo sensorial e cultural completamente novo, nas palavras de Alvaro Machado. Longe dos bairros mais abastados, Carella optou por fixar residência no Recife Antigo, a área portuária repleta de vida e diversidade, habitada por população predominantemente negra e mestiça. Ali, ele encontrou um ambiente de liberdade e efervescência cultural que o cativou.

Durante sua intensa permanência no Brasil, que se estendeu por cerca de um ano e meio, Carella manteve diários íntimos detalhados. Neles, registrou suas experiências sexuais homoeróticas e centenas de perspicazes observações sobre a sociedade recifense. Essas anotações seriam a base de seu livro mais controverso, Orgia, publicado no Brasil em 1968. A obra, que descreve sem constrangimento encontros amorosos e aborda a sexualidade livre em um Brasil ainda bastante conservador, revelou um Carella que não hesitava em desafiar barreiras e questionar as normas sociais de seu tempo.

A coragem de Orgia trouxe consigo sérias consequências. Em um cenário político de crescente tensão e forte sentimento anticomunista, Carella, um estrangeiro que interagia abertamente com as camadas populares, foi erroneamente identificado como “traficante de armas de Cuba”. Em 1961, foi sequestrado, detido e torturado por militares brasileiros na ilha de Fernando de Noronha. Sua libertação veio após a descoberta, por policiais, de seus diários numa gaveta de quitinete alugada, com páginas que esclareciam a natureza sexual de seus encontros, dissipando a ideia de um complô político. Contudo, foi imediatamente dispensado da universidade e forçado a deixar o país.

O impacto de Orgia se fez sentir muito além de sua expulsão do Brasil. A publicação do livro conduziu a um verdadeiro “cancelamento” de Carella em sua terra natal, a Argentina, resultando em ostracismo social e profissional. Após sua morte, em 1979, seus manuscritos originais foram destruídos por sua ex-esposa e por suas sobrinhas, sob a justificativa de que “encerravam coisas tremendas”. No entanto, o tempo, como observa Machado, validou a relevância da obra. O que inicialmente foi estigmatizado como pornográfico, gradualmente conquistou reconhecimento como um documento histórico e literário crucial sobre a homossexualidade no Brasil dos anos 1960. A obra de Carella passou a inspirar artistas e pesquisadores, tornando-se uma referência para criações como o filme Tatuagem (2013), do cineasta Hilton Lacerda e o álbum Orgia (2022) do cantor Johnny Hooker.

A biografia de Alvaro Machado, Orgia e compadrio, representa um esforço grandioso para corrigir esse silenciamento. Machado vê Carella como um “perfil humanista no sentido renascentista do termo”, alguém que, ao mergulhar no cotidiano do Recife, destoava muito em aparência da população local, o que, segundo o biógrafo, “o deixava tão excitado quanto os populares seus interlocutores”. Embora por vezes desconcertante, o olhar de Carella sobre os corpos negros era, na visão do biógrafo, permeado por um “lirismo” que transformou as descrições eróticas “nas páginas mais bonitas do livro”.

Conversamos com Alvaro Machado sobre essa jornada de resgate e a profunda conexão que ele estabeleceu com o autor argentino ao longo de quinze anos de pesquisas.

Entrevista: Alvaro Machado

Jornalista, pesquisador, doutor em Artes Cênicas Alvaro Machado. Foto: Juliana Kase / Divulgação

“Após tantos anos de pesquisa,
ouso dizer que Tulio Carella sou eu”

Alvaro Machado

Ao longo de sua extensa pesquisa sobre Tulio Carella, desde antes da edição de Orgia, os Diários do Recife (ed. Opera Prima) em 2011, até Orgia e compadrio, sua compreensão do personagem e da obra passou por uma notável transformação. Para além de um aprofundamento, essa biografia crítica representa uma revisão da sua interpretação inicial sobre o significado político e literário de Carella? E, ousaria perguntar, em que medida você se tornou, metodologicamente, um “Carella contemporâneo”, transgredindo fronteiras disciplinares da mesma forma que ele transgredia fronteiras sexuais e nacionais? 

Alvaro Machado – O aprofundamento é natural pela metodologia científica que a gente é obrigado a adotar nos cursos de pós-graduação, na defesa de tese. Então, a partir da minha experiência de leitura do Orgia, fui tocado pelo registro do cotidiano do Recife, dos muitos tipos, das relações afetivas e sexuais, todas muito bem descritas. Pela sinceridade inicial do escritor, eu fui ler toda a obra dele, que não é pequena, a obra publicada é razoável. E li todos os livros, a fim de fazer o que eu me propunha, que era sua biografia.

Uma biografia mais ou menos completa, apesar da grande ausência de fontes com as quais eu me deparei inicialmente. Mas, enfim, com os depoimentos de Buenos Aires, do Recife, de Leda Alves, de Antonio Cadengue, de Luís Reis, do Anco Márcio, e de todo esse pessoal que estuda teatro, e principalmente de um amigo dele remanescente em Buenos Aires, Mário Tesler, bibliófilo, bem como do filho de um colaborador dele, Ral Veroni, filho do gravador Raul Veroni. Então passei a coletar documentos e me aprofundei no conhecimento do personagem. Mas, principalmente pelas obras que li – tem também obras autobiográficas que eu abordo no livro, como As portas da vida –, e pelas cartas que a senhora Leda Alves me forneceu acesso, que são cerca de 300 cartas enviadas. E aí eu entendi que ele era realmente um grande escritor, obliterado pelo escândalo causado pelo livro Orgia, tanto no Brasil como na Argentina. E isso embora ele tenha pertencido a muitos círculos literários e teatrais argentinos importantes. Comecei a entender a posição dele nesse cenário e achar cada vez mais injusta a falta de pesquisa no próprio país dele, que até hoje se observa. O Orgia só foi publicado neste ano lá, agora há um mês, em espanhol, a partir da tradução do Hermilo Borba Filho, com revisão crítica da tradução, introdução e minhas notas.

Seu trabalho transborda uma evidente paixão intelectual por Carella, um sentimento que, como você já expressou, foi crucial para se debruçar sobre a figura dele. Como você equilibra o rigor acadêmico com esse envolvimento afetivo tão particular? E, provocativamente, será que a crítica literária não deveria ser, em sua essência, também um ato de amor?

Alvaro – Eu não teria me debruçado sobre a vida do Tulio Carella se eu não tivesse um mínimo de identificação com esse personagem, desde o início. E, após tantos anos de pesquisas e reflexões, posso dizer que “Tulio Carella sou eu”. Eu endosso praticamente todas as posições dele; são raras as posições que eu não endossaria, que eu não tento compreender, ou que não compreendo, quando muita gente deixou de compreender, então tenho uma tolerância grande em relação às atitudes dele por me identificar desde o começo, desde o princípio. E… se eu vou ser marginalizado não sei, mas mesmo na universidade, a partir do objeto de estudo não foi muito fácil conseguir interlocução.

Eu tive de explicar bastante a posição dele para os orientadores, porque partia de um escândalo sexual, mas as pessoas começaram a entender a trajetória, e a compreender que ele tem um aspecto político muito importante, por isso fui fazer o doutorado com o professor, Sérgio de Carvalho, que é especializado, digamos, em orientar teses históricas. E deu muito certo, mas confesso a você que cheguei a ser visto assim como um pássaro fora do ninho.

Mas continuamos, e eu acho que deu certo de fato agora, com a publicação, com muitas fotos históricas e desenhos artísticos, com Carella contextualizado completamente na história do Recife e de Buenos Aires. Então agora não tem mais por que existir essa prevenção.

A formação cultural argentina de Carella, marcada pelo criollismo, pela imigração europeia e pelo tango, indubitavelmente moldou sua sensibilidade para as margens sociais. Em que medida o Brasil, especificamente o Recife, funcionou como um “laboratório” que validou ou expandiu as teorias que ele já vinha desenvolvendo sobre as dinâmicas sociais de Buenos Aires?

Alvaro – Ele conheceu uma evolução de pensamento muito grande desde os anos 1940, onde ele estava no criollismo e na herança da cultura barroca espanhola, inserido na elite de Buenos Aires, dos governantes de origem hispânica, ou pelo menos na cultura criolla. Porque em 1940, Buenos Aires já era uma metrópole bastante heterogênea. A população de imigrantes compunha um panorama bem diferente daquele do século XIX. Mas ele cultivou essa tradição antiga. De início, com as farsas dele levadas no Teatro Nacional Cervantes, que foram seus maiores sucessos. Criollismo que provinha, de certa forma, culturalmente, do chamado Século de Ouro espanhol, dos grandes dramaturgos de então, mas logo ele começou a perceber outras perspectivas na cena teatral de Buenos Aires, até mesmo as do teatro de revista, do teatro político e do cabaré teatral, e aos poucos enveredou por uma linha política mais amplamente nacional. Nacional e ao mesmo tempo crítica do nacionalismo, sabe?, porque contemplou as margens, as franjas sociais ostensivamente ignoradas no panorama nacional “oficial”. Depois de viajar para a Europa em 1956, a fim de conhecer alguns países e as suas origens itálicas, ele assumiu a mudança radical de adotar uma perspectiva latino-americana, com raízes culturais indígenas. E quando Carella veio para o Brasil, ele ampliou esse olhar com a cultura negra. Realmente, o Brasil significou uma ampliação dessa perspectiva latino-americanista ou pan-americanista, mas não no sentido bolivariano, que é beligerante, mas no sentido humano e cultural. O Bolívar é derivado das lutas armadas na América e ele não tinha essa propensão. Ele era um pacifista.

Foto de Tulio Carella de junho de 1956. Autoria desconhecida

Uma das dimensões mais fascinantes de Carella é o caráter performático de suas ações. Observando sua trajetória, há a impressão de que a performance se dava não apenas nos palcos, mas em sua própria vida cotidiana – desde a escolha de morar no Recife Antigo até a forma como registrava suas experiências íntimas. O que suas investigações revelaram sobre essa teatralidade existencial de Carella? Ele era, de certa forma, o personagem mais original que criou?

Alvaro – Acredito que essa sua afirmação sobre ele ter criado no Recife um personagem original a partir de si mesmo corresponda à verdade. Sim, a partir da escolha de morar em quitinete na avenida Sete de Setembro e dos passeios e derivas diárias pela porção histórica da cidade, ele passou a estabelecer com muito gosto uma espécie de diálogo cênico – composto tanto de olhares e gestos como de palavras – com os tipos populares que manifestavam curiosidade por sua figura corpulenta de dois metros de altura, sua pele alva e suas roupas de tecidos e cortes diferentes. Não se negava a qualquer diálogo, com quem quer que o abordasse. Praticou esse intercâmbio com tanta intensidade e com tamanha ausência de censuras que isso se tornou, de fato, como uma  performance teatral pública, como observou, por exemplo, o pesquisador alagoano Severino J. Albuquerque, professor emérito da Universidade de Wisconsin (Madison), em ensaios que publicou sobre o portenho. Antes de dedicar-se ao ensino da Literatura, Severino formou-se em Medicina no Recife, portanto conhece muito bem a cidade.   

Em sua biografia, você escreve que Carella “confrontou-se com um meio intelectual de difícil penetração, fomentador de intrigas e vassalagens” tanto no Recife quanto em Buenos Aires. Essas “cortes culturais” parecem ter sido um obstáculo constante na trajetória do escritor argentino. A partir de seus levantamentos, como essas disputas de poder intelectual se manifestavam concretamente no Recife? E como você compreende essas dinâmicas de poder?

Alvaro – Em 1960-61, quando Carella esteve entre nós, existia no Recife uma aguda polarização política, e o estado de Pernambuco era como uma ponta de lança dos debates e lutas sociais travadas nos anos seguintes no Brasil e que desembocaram na tragédia do golpe civil-militar de 1964 e do progressivo solapamento da democracia a partir de então, por longos 25 anos. Os militares e os policiais da região jamais aceitaram os governos do socialista declarado Miguel Arraes na prefeitura da capital e no governo do estado. Assim, todo o setor militar e policial, a maior parte do Judiciário a cabresto de latifundiários e senhores de engenho, parte da imprensa e mesmo instituições criadas especialmente para minar a organização de movimentos pela Reforma Agrária, alfabetização, voto popular etc. conduziram à prisão e à tortura do dramaturgo argentino – contratado por parceiros de Arraes –, após um diálogo vigiado que ele manteve com o artista e líder comunista Abelardo da Hora numa cantina de repartição pública. Em outro polo de intrigas, mais tarde, já no final dos anos 1960, a primeira esposa de Hermilo Borba Filho, Débora Freire, espalhou amplamente, no Recife, boatos de que o argentino teria sido amante de seu ex-marido.

Em seu trabalho, você notou uma transformação na perspectiva sobre Carella, inclusive por parte de Leda Alves, uma fonte importante, no Recife, para seus estudos. Poderia nos detalhar essa mudança na forma como Carella é percebido? E, na sua opinião, o que motivou essa alteração de atitude ou de visão sobre ele?

Alvaro – Desde antes de 2011, quando eu comecei a conversar com Leda Alves, que foi, por tanto tempo, secretária da cultura do Recife etc., foi uma odisseia esse contato, porque ela era refratária a tratar do assunto, não tinha interesse, sabe? Havia um claro tabu. Mas, devido à minha insistência, e ao pagamento de um valor razoável para o contrato de republicação do Orgia na tradução do Hermilo Borba Filho (revisada), principalmente porque ela andava precisando de dinheiro, estava operando a vista, ela concordou. Desde então passei a conversar com ela. Era obrigatório. Ela conheceu bastante meu personagem. E, com o tempo, Leda  mudou a postura dela, até um ponto que eu diria radicalmente, em seus três últimos anos de vida. Inclusive assinou contrato para a realização de um filme a partir de Orgia, que seria feito pelo Karim Aïnouz e pelo Marcelo Gomes. Durou sete anos esse contrato, mas a produtora do João Júnior Vieira, do Recife, não conseguiu levantar o dinheiro para um filme de época. Esse filme ainda pode ser feito, já que Karim está lendo a biografia que publiquei agora.

Então, a Leda foi mudando nas conversas telefônicas, ela assinou o contrato não só para o livro, mas para o filme, sabe? E conversando comigo no telefone, ela foi mudando a postura, foi valorizando o Carella, o contato pessoal que ela teve com ele e as coisas boas da relação. Por quê? Porque ela tinha um trauma que está contado no livro, que era o da fofoca detonada no Recife inteiro após o desquite, ou o divórcio, não sei, na época acho que era desquite, do Hermilo da primeira mulher dele, a Débora Freire, que ficou maluca de Hermilo assumir a Leda Alves, a atriz, ex-atriz do grupo… ex-secretária dele… ficou maluca e começou a dizer no Recife que o ex-marido e Carella tinham sido amantes… E isso apavorou Leda… Ela não queria tratar desse trauma… e Débora chegou a escrever cartas com ofensas para Carella… como também está registrado em meu livro. Então, com os anos Leda ela foi mudando. E me afirmava que ele tinha sido um sujeito muito legal… que tinha as suas idiossincrasias… os seus gostos… e “fazia escondido”… como ela dizia… entre aspas… sem incomodar ninguém… e que era muito discreto na sua vida pessoal… e que principalmente ele influenciou a conversão de Hermilo ao catolicismo, à Igreja Católica. Inclusive com o casamento dela celebrado por Dom Helder Camara, extraoficialmente, porque não podia, o Hermilo já era casado, já tinha sido casado. E até o final, um ano antes da morte dela, mais ou menos, ela falava coisas muito legais do Carella, mudou totalmente a cabeça.

Meu livro é pelo menos vinte por cento sobre o Hermilo. Porque  eles influenciaram muito um ao outro, sabe? Isso é muito importante. 

Chegada ao Recife em 1961. Foto na coluna Diário Artístico, de Joel Pontes, do Diario de Pernambuco 

Seu livro surge em um período de recrudescimento conservador na América Latina. Diante disso, que conexões você estabelece entre este cenário e a trajetória de Carella?? 

Pois é, sobre essa questão de ideologia de gênero, do momento político atual:  realmente assume agora uma grande importância a posição pan-americanista dele e do Hermilo, que era uma ideologia almejada pelos dois,  em especial neste momento de retrocesso de posições, de enfraquecimento da esquerda política em toda a América Latina. Também por isso ele foi para o Recife, por isso se estabeleceu na cidade e pretendia permanecer nela até morrer, se não tivesse sido expulso. Porque ele dividia essa ideologia, esse ideal mais que ideologia, porque partilhava esse ideal com o Hermilo e com outros brasileiros. Assim, o Orgia se tornou o mais importante de todos os livros do Carella, e o mais estudado.

E então se tornam agora ainda mais importantes os livros dele, como o também autobiográfico Las puertas de la vida [As portas da vida], muito citado em minha biografia por essa posição de abertura e valorização das culturas autóctones da América, dos indígenas dos dois países e dos escravizados que começaram a ser trazidos no século XVI e se estabeleceram aqui para tomar parte da brasilidade. Mas Carella também possuía a sua herança cultural específica. Então a valorização desses elementos é uma coisa na qual ele foi pioneiro. E também o seu repúdio à cultura europeia. E se ele não discutia propriamente ideologias de gênero,  assumiu a bissexualidade ao publicar Orgia em 1968 a pedido do Hermilo. E mais ainda no começo de 1969, ao distribuir mais de trinta cópias desse livro em Buenos Aires, orgulhosamente, sem medo. Isso acarretou a separação de sua mulher, que não aguentou essa revelação da bissexualidade, e ele passou a viver sozinho, ficou muito na dele, muito tranquilo, muito no pensamento estoico e cínico que perseguia, com uma certa pobreza de meios, num bairro pobre de Buenos Aires, que é o Congreso, ainda hoje é pobre, não é um bairro abastado, mas feliz, tranquilo, em paz, de bem com a vida, sem ressentimentos de ninguém, só o forte desejo de voltar para o Recife, que não realizou, infelizmente. Mesmo no final da vida ele teria voltado.

A decadência física dele foi um tanto rápida, em um ano ele estragou a saúde… fumava muito… e tinha outros problemas também, de próstata etc.. 

Como você imagina que Carella reagiria aos debates contemporâneos sobre identidade de gênero e diversidade sexual na América Latina?

Alvaro – Acho que se ele estivesse vivo hoje, ele não participaria desse debate todo que a gente vive, racial e de gênero. Eu acho que ele ia preferir realmente atuar literariamente. Ele nunca deu esse tipo de palestra durante a vida dele e eu acho que ele se isentaria, se ausentaria mesmo. E preferiria uma luta, uma trincheira, de fato, literária, ou na crítica. Penso que nem seria explícita, porque, apesar de ter escrito Picaresca porteña, esse livro é composto de ensaios sobre características históricas da cultura argentina, e não atualidades, não debate político atual. 

Após uma imersão tão profunda, o que, porventura, ficou por ser dito sobre Carella neste livro? Você sente que esgotou as possibilidades interpretativas dessa figura tão complexa, ou ainda há territórios a explorar?

Alvaro – Eu não considero que esgotei o Carella, não, de forma nenhuma. É um personagem rico demais e merece ainda muitas pesquisas. Mandei essa biografia há um mês para a Biblioteca do Congresso Nacional, em Buenos Aires, e ela foi aceita no acervo, para que outras pessoas possam pesquisar a obra dele, porque apesar de o livro ser extenso, com 360 páginas, existem muitas facetas e textos dele muito bons, desconhecidos, porque tudo que ele  fazia era com alto nível de excelência na escrita. Então acredito que foi uma pesquisa até inaugural.

 

 

 

Orgia e compadrio :
Tulio Carella, drama e revolução na América Latina
Autor: Alvaro Machado
Editora: Cosac
R$ 132,00

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Companhia do Latão lança peças de resistência

Festa de lançamento de três peças de Sérgio de Carvalho conta com participações de Maria Theresa Vargas, Sérgio Mamberti, Cecília Boal, Paulo Arantes e “outras surpresas possíveis e inimagináveis”. Imagem da peça Lugar nenhum. Foto Maurício Battistuci / Divulgação

O Pão e a Pedra. Foto Lenise Pinheiro / Divulgação

Se lá fora faz frio e o clima é hostil, é tempo de saudar os pirilampos. E, neste sábado (9), um dos grupos teatrais mais importantes do Brasil faz uma jornada festiva para celebrar o lançamento do box Três peças da Companhia do Latão, pela Editora Temporal. A publicação inclui as peças Os que ficam, Lugar Nenhum e O Pão e a Pedra, que investem em reflexões sobre o Brasil das décadas de 1960, 1970 e 1980.  As obras dramatúrgicas são de Sérgio de Carvalho, que compôs os textos em cooperação com sua trupe de artistas.

A Companhia do Latão aposta na reflexão crítica da sociedade atual, a partir, principalmente, do legado de Bertolt Brecht. O grupo trafega pela pesquisa estética avançada e politização da cena. Na trajetória do Latão, o teatro questiona o jogo político, o contexto social e a criação cultural no Brasil em suas intricadas relações e seus enfrentamentos,

A peça Lugar Nenhum investiga democracia e o espírito democrático e se desenrola no fim dos anos 1980, no período findo da ditadura. Um sopro de esperança daqueles tempos em contraste com o que se tornou a democracia no futuro brasileiro, nosso presente. Expõe as veias abertas de uma democracia em crise, em colapso e degradação após o golpe que sequestrou o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff.

O Pão e a Pedra (2017) é inspirada na histórica greve de 1979 no ABC paulista e segue várias figuras do mundo do trabalho, sobretudo uma mulher operária que se disfarça de homem para disputar melhores cargos e salários -, em meio à greve dos metalúrgicos de 1979 no ABC.

A peça-ensaio Os que Ficam (2015) reprocessa a dramaturgia de Augusto Boal, a partir da labuta de um grupo teatral que arrisca montar Revolução na América do Sul.

Bem, se o pessimismo apocalíptico assume a avaliação do quadro brasileiro, temos pequenas vitórias a comemorar. E, a cada conquista, celebremos.

#LulaLivre.

Salve a resistência antifascista dos incansáveis vaga-lumes!

Box com as três peças da Cia do Latão

Encenador e dramaturgo Sérgio de Carvalho. Foto: Reprodução do Facebook

JAÍLTON – Ah, mais um recado para os críticos de plantão. Que gostam de dizer que a nossa trégua é desmobilizadora. A união é a coisa mais importante num momento como esse, em que a elite do país começou a notar que nós existimos. Estamos unidos, Arantes?
ARANTES – Uma união contraditória.”

O Pão e a Pedra. Editora Temporal.

 

Lançamento das Três Peças da Companhia do Latão

Quando: Sábado, 9 de novembro, das 17h30 às 19h – intervenções artísticas, leituras e falas com convidados especiais; 19h – coquetel; 20h às 21h – canções e cenas das peças publicadas
O evento é gratuito
Onde: Estúdio do Latão, Rua Harmonia, 931, Sumarezinho
Quanto: Descontos Especiais de lançamento de Três peças da Companhia do Latão. A
caixa com 3 livros sai por R$ 100 (Custa R$ 149 nas livrarias)

TRÊS PEÇAS DA COMPANHIA DO LATÃO

OS QUE FICAM (Diálogo teatral com Augusto Boal)
peça de Sérgio de Carvalho
partituras de Martin Eikmeier
posfácio de Iná Camargo Costa
relato de processo de Julian Boal
fotos de Sérgio de Carvalho

O PÃO E A PEDRA
peça de Sérgio de Carvalho
partituras de Lincoln Antonio
posfácio de Mario Sergio Conti
relato de processo de Maria Lívia Goes
fotos de Bob Sousa

LUGAR NENHUM
peça de Sérgio de Carvalho
partituras de Nina Hotimsky, Cau Karam e João Filho
posfácio de Maria Rita Kehl
relato de processo de Helena Albergaria
fotos de Sérgio de Carvalho

Programação

PARTE I
Abertura do autor e editores
Maria Theresa Vargas com surpresa teatral
Sérgio Mamberti recita textos De Plínio Marcos
Cecília Boal canta com Paulinho Tó
Paulo Arantes recita Sr. Keuner, de Brecht
As Cantadeiras e Trupe dos Encantados do MST
Elenco faz cena de O Mundo Está Cheio De Nós
Marcelo Pretto canta com Lincoln Antonio
E outras surpresas possíveis e inimagináveis

PARTE II
Coquetel e autógrafos

PARTE III
CENAS, CANÇÕES e TEXTOS pelos elencos de O PÃO E A PEDRA, LUGAR NENHUM e de OS QUE FICAM, com:
Ademir de Almeida, Beatriz Bittencourt, Carlos Escher, Carlos Santos, Débora Rebecchi, Érika Rocha, Gabriel Stippe, Helena Albergaria, João Filho, Leonardo Ventura, Rogério Bandeira, Ney Piacentini, Sol Faganello e Thiago Claro França
MÚSICA de Lincoln Antonio, Lucas de Sá, Martin Eikmeier, Nina Hotimsky e Walter Garcia
E participações especiais: Bruno Marcos, Kiko do Valle, Lourinelson Vladmir e Virginia Maria

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Greves históricas – primeiros apontamentos

Helena Albergaria faz Joana Paixão / João Batista em O pão e a pedra. Foto: Lenise Pinheiro / Divulgação

Helena Albergaria faz Joana Paixão / João Batista em O pão e a pedra. Foto: Lenise Pinheiro / Divulgação

Há muitas entradas para leituras do espetáculo O pão e a pedra, da Companhia do Latão, escrita e dirigida por Sérgio de Carvalho, em cartaz até domingo, no Teatro Hermilo Borba Filho, às19h, dentro da programação do 18º Festival Recife do Teatro Nacional. O mosaico complexo de contradições sociais é explorado pelo grupo em camadas e fissuras e problematizações. A greve dos operários do ABC Paulista em 1979 e os espelhamentos da crise política atual tencionam o embate no palco dos peões com o cruel mundo do capital, a invisibilidade da mulher, da luta dentro da luta dos nordestinos no mapa da ditadura civil-militar brasileira.

É denso. E não permite simplificações de heróis, salvadores da pátria, bonzinhos versos vilões. Os paradoxos da realidade atual se desdobram no palco a partir da greve histórica do final da década de 1970, que projetou para o Brasil como força política a figura de Luiz Inácio da Silva, o Lula, na época líder do Sindicato dos Metalúrgicos.

A investigação do autor diretor Sérgio de Carvalho passa pelas “dificuldades do aprendizado político daqueles trabalhadores que enfrentaram a polícia da ditadura e o aparato midiático patronal, num processo que durou 60 dias (15 dias de máquinas paradas e 45 dias de “trégua” com mobilização dentro e fora das fábricas). Sob relativa influência do imaginário desses grupos contraditórios, o novo sindicalismo, a Igreja progressista e o movimento estudantil de esquerda, os operários de O Pão e a Pedra travam um embate com a própria vida coisificada” [1].

Lá para o meio da peça, um ator explica que a encenação foi erguida nos tumultuados primeiros meses deste ano e que Lula não será representado. Uma ausência que se faz presente como uma sombra do passado, no presente.

O sumiço do líder sindical que por dois dias saiu de cena em 1979 abre brechas para muitas especulações que pairam no ar do teatro. Desde negociações isoladas com os patrões, até a possível blindagem para não quebrado pela polícia. Entre um ponto, muitas possibilidades expressadas por personagens da cena.

O cenário em que forças regressivas da política brasileira que se alinharam com a grande imprensa e com o judiciário e suas estranhas razões para depor um governo eleito democraticamente invade em ondas de pensamento enquanto acompanhamos a trajetória daquele grupo de trabalhadores fabris de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Na espiral do tempo, a conta do arranjo vai ser paga pelos trabalhadores cada vez mais acossados por uma realidade surrealista.

Há muitos caminhos para chegar ao coração da greve. Não é possível abarcar muitos em tão pouco tempo. Assisti ao espetáculo ontem e as imagens, as palavras, os procedimentos estão ruminando na minha cabeça, os sentidos se erguem e assustam, são desfeitos, comungam com muitas questões. Preciso de dias, semanas, meses, para desembarcar a bagagem marxista do espetáculo.

É muito. É tanto. É eletrizante. Às vezes parece choque no nervo. A imagem da personagem Luísa (Sol Faganello), uma militante universitária que adentra no campo dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo com a ambição de politizar os peões. O movimento mostra uma amazona montada em cavalo trêmulo, num ritmo frenético, ao som percussivo. É um quadro potente inspirado no conto Na galeria, um texto curto de Franz Kafka, publicada no Brasil no livro Um médico rural. A narrativa do escritor tcheco é visual e de tirar o fôlego. E é incrível como esse “poema em prosa”, como chama o tradutor Modesto Carone, carrega questões importantes para a montagem. O conto expõe uma hipótese, cria uma oposição; anula a primeira disposição, apresenta outra. Dinâmica semelhante faz a montagem.

“Se uma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.

Mas uma vez que não é assim…”

Foto: Sérgio de Carvalho

Os atores Rogério Bandeira (Fúria Santa) e Ney Piacentini (Arantes). Foto: Sérgio de Carvalho

O círculo do cenário instalado no centro do palco é nomeado de espaço da fábrica – da linha de montagem ao banheiro-, estádio da Vila Euclides palco das assembleias sindicais e outros locais onde os trabalhadores se encontravam, de bares à igreja.

Os peões da lida vão fazer a máquina parar. Na sua luta eles estão sempre ameaçados a serem marcados pelo ferro quente do capital. Nesse cenário masculino, a voz feminina está diluída ganhando um salário menor, carregando em silêncio o filho na barriga. E ganha destaque na metamorfose de personagem Joana Paixão, papel defendido por Helena Albergaria, que se disfarça de homem para poder receber os mesmos salários que seus pares em situações semelhantes.

No elenco da peça estão Míriam (Beatriz Bittencourt), ocupada no início com o bronzeamento; Irene (Érika Rocha), o Fúria Santa (Rogério Bandeira) e Arantes (Ney Piacentini) impõe um ritmo lento a peça, que me pareceu calculado para causar um efeito estético de incômodo no espectador.

Vou assistir novamente ao espetáculo.

O texto vai continuar…

[1] Companhia do Latão, Um tempo diferente, In: Programa O Pão e a Pedra – espetáculo da Companhia do Latão, 2016.

 

Serviço:
O pão e a pedra
Onde:Teatro Hermilo Borba Filho, (R. do Apolo, 121 – Recife)
Telefone: (81) 3355-3320
Quando: De 23 a 27 de novembro, às 19h; de quarta a domingo.
Quanto: R$ 10 e R$ 5
Indicação etária: 16 anos

Ficha técnica:
Autoria e Direção: Sérgio de Carvalho
Elenco: Beatriz Bittencourt, Beto Matos, Érika Rocha, Helena Albergaria, João Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello e Thiago França.
Assistência de direção: Beatriz Bittencourt
Direção musical, composição e execução: Lincoln Antonio
Cenografia e figurinos: Cassio Brasil
Iluminação: Melissa Guimarães e Silviane Ticher
Direção de produção: João Pissara
Assistência de produção: Olívia Tamie
Núcleo de divulgação: Marcelo Berg

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