Devo confessar: Rita Lee, com suas músicas, suas ideias, suas posturas, embalou os meus mais preciosos sonhos. Como tantas brasileiras, cresci ouvindo aquela voz que misturava pop, rock, nonsense e crítica social numa mesma canção, que enfrentou a polícia, a Igreja e a caretice. A vida de Rita Lee é extraordinária por todos os papéis que assumiu, por toda luta que encarou, pela coragem e beleza que concentrou na música, no rock nacional, pela linda e comovente história de amor com Roberto de Carvalho.
É justamente essa grandeza biográfica que Rita Lee – Uma Autobiografia Musical consegue capturar nos palcos. Como já cantava Belchior: “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa” – e a montagem compreende essa dimensão.
Após um ano bem-sucedido em cartaz em São Paulo, o espetáculo já circula há meses por diferentes praças do país, comprovando que certas biografias possuem potência dramatúrgica capaz de mobilizar públicos diversos. É importante que as novas gerações conheçam uma artista que rompeu tantas barreiras, e a montagem é certeira em trazer esses quadros selecionados de sua trajetória. No Recife foram seis sessões esgotadas neste fim de semana.
A montagem adota estratégias cênicas para dar conta de tamanha riqueza biográfica. Um procedimento emblemático da encenação acontece quando Mel Lisboa, diante da plateia, encaixa a peruca característica de uma das fases de Rita Lee. Esse gesto, repetido algumas vezes, é poderoso para ressaltar o teatro, estabelecendo um pacto honesto de teatralidade que demarca os territórios da representação.
Mas depois, Mel Lisboa, por uma atuação “quase espiritual”, encarna Rita Lee de forma tão convincente que parece estarmos vendo em cena a própria artista que desafiou o patriarcado, a moral e os bons costumes. A atriz alcança comunhão artística onde técnica depurada e sensibilidade geram presença cênica que emociona e convence.
Essa transformação interpretativa encontra seu veículo mais poderoso na construção musical do espetáculo. A música conduz o espectador por uma narrativa de múltiplos amores: por Roberto, pela música, pelo rock, pelo Brasil, pela democracia, pelas mulheres, pelos animais. O enfrentamento ao machismo está organicamente costurado em toda a dramaturgia.
Para dar conta dessa amplitude temática e emocional, é natural que a equipe faça escolhas dramatúrgicas específicas. Sob a encenação de Débora Dubois e Márcio Macena, com dramaturgia baseada no livro autobiográfico e direção musical de Marco França e Marcio Guimarães, Rita Lee surge firme nos seus princípios, rebelde sempre, de uma combatividade furiosa, mas também ternamente humana.
Essas escolhas se refletem na construção interpretativa do elenco, que opera em diferentes registros conforme a função narrativa de cada personagem. Bruno Fraga, como Roberto de Carvalho, trabalha no mesmo registro de Mel Lisboa, construindo a parceria musical e amorosa que sustenta o eixo emocional do espetáculo. A química entre os intérpretes traduz a cumplicidade que marcou a relação do casal na vida real.
Paralelamente, os demais atores operam no registro da estilização consciente. Fabiano Augusto surpreende ao criar Ney Matogrosso através de síntese gestual que captura a essência andrógina. Débora Reis como Hebe Camargo privilegia traços emblemáticos da apresentadora, enquanto Flávia Strongolli oferece Elis Regina condensada em momentos vocais característicos.
Ainda na galeria de ícones, Yael Pecarovich constroi Gal Costa luminosa, Gustavo Rezende agarra Raul Seixas através de economia gestual eficiente, Antonio Vanfill altern entre Arnaldo Baptista e Charles Lee (o pai de Rita), Roquildes Junior interpreta Gilberto Gil com sotaque baiano acentuado, e Carol Portes personifica a Censora Solange como símbolo do autoritarismo enfrentado.
Esta diferenciação de registros revela-se estratégia dramatúrgica consciente e eficaz. Enquanto Mel Lisboa e Bruno Fraga mergulham na cumplicidade dos personagens centrais, os demais trabalham no terreno da síntese teatral – procedimento que destila personalidades complexas em signos cênicos reconhecíveis.

Antonio Vanfil (Arnaldo Baptista), e Gustavo Rezê (Sérgio Dias) ladeiam Mel Liboa na formação de Os Mutantes no musical. Foto: João Caldas / Divulgação
As cenas com Arnaldo Baptista exemplificam esta estratégia: o encontro, o programa de Ronnie Von, o batismo dos Mutantes, o casamento e a separação são apresentados como quadros sintéticos, rasos e paródicos, que privilegiam o movimento narrativo. Esta teatralização mantém o ritmo dinâmico e o foco na protagonista, ainda que não se aprofunde em camadas históricas mais complexas.
Essa abordagem se estende à estrutura geral da montagem. A encenação é panorâmica e aborda os conflitos de forma mais leve, escolha que permite abraçar a amplitude da trajetória de Rita Lee sem se mergulhar em questões específicas. O resultado é que encontramos a Rita Lee que nos fez apaixonar – a artista completa, múltipla, que soube ser roqueira rebelde, compositora de baladas, ativista e mulher apaixonada, num tom frequentemente divertido e acessível.
Ainda assim, as questões políticas têm seu espaço. A artista presa durante a ditadura, censurada pela Igreja e desrespeitada como mulher emerge como figura cuja relevância permanece contemporânea, especialmente para as gerações que descobrem sua força através desta montagem.
A eficácia dessas escolhas se comprova pela recepção sustentada que a montagem encontra pelo país. O sucesso consolidado confirma que Rita Lee permanece figura capaz de mobilizar afetos décadas após sua consagração. A biografia cênica consegue ativar memórias coletivas e pessoais simultaneamente, criando comunidade temporária onde experiências individuais encontram eco histórico.
Um elemento crucial para o sucesso da montagem é a banda ao vivo que acompanha toda a apresentação. Os músicos executam o repertório de Rita Lee com precisão técnica e conseguem recriar a energia característica de seus diferentes períodos artísticos – desde a experimentação psicodélica dos Mutantes até o rock pop de seus sucessos solo.
Rita Lee – Uma Autobiografia Musical confirma-se como uma das biografias musicais mais importantes do teatro brasileiro contemporâneo. Mel Lisboa, apoiada por direção precisa e elenco afinado, consegue honrar tanto a memória da artista quanto as possibilidades expressivas do gênero musical teatral. Rita Lee, que sempre “fez um monte de gente feliz”, continua fazendo isso – agora através da mediação teatral que esta equipe criativa conseguiu construir.
FICHA TÉCNICA
ELENCO
Mel Lisboa (Rita Lee)
Bruno Fraga (Roberto de Carvalho)
Fabiano Augusto (Ney Matogrosso)
Carol Portes (Censora Solange)
Débora Reis (Hebe Camargo)
Flávia Strongolli (Elis Regina)
Yael Pecarovich (Gal Costa)
Antonio Vanfill (Arnaldo Baptista e Charles Jones)
Gustavo Rezende (Raul Seixas)
Roquildes Junior (Gilberto Gil)
Lui Vizotto (Swing)
Priscila Esteves (Swing)
EQUIPE CRIATIVA
Roteiro e Pesquisa: Guilherme Samora
Texto: Márcio Macena
Direção Geral: Débora Dubois e Márcio Macena
Direção Musical: Marco França e Marcio Guimarães
Coreografia: Tainara Cerqueira
Assistente de Coreografia: Priscila Borges
Figurino: Carol Lobato e Giu Foti
Iluminação: Wagner Pinto