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Ané das Pedras: Ritual Ancestral do Povo Kariri
Entre acolhimento e violência simbólica

 

Sob céu claro e ventos frios, a ancestralidade indígena atravessa a capital gaúcha com Ané das Pedras. Foto: Denis Gosch

Depois de alguns dias de chuva em Porto Alegre, neste sábado, 31 de maio, o céu estava claro, com temperaturas baixas e ventos frios que levaram muitas pessoas a usar casacos pesados e óculos escuros na Praça da Alfândega, no centro da cidade. Foi neste cenário que a artista indígena Bárbara Matias Kariri apresentou Ané das Pedras, uma performance ritual do repertório da Coletiva Flecha Lançada Arte (CE), com produção de Lara Alencar, que integra a programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre.

Na língua do povo Kariri, “Ané” representa o sonho, conceito que fundamenta esta performance singular. A obra estabelece um diálogo profundo com as pedras enquanto entidades ancestrais e encantadas, elementos centrais na cosmovisão desta nação indígena nordestina. “Essa prática ritual nos convida a confiar à pedra aquilo que buscamos, nossas necessidades mais íntimas, depositando nela nossos desejos e aspirações”, revela Bárbara.

Na tradição Kariri, as pedras transcendem sua materialidade aparente — são compreendidas como seres dotados de vida, ancestrais que oferecem proteção e força. “Em momentos de impossibilidade, minha avó sempre evocava a Santa Pedra”, recorda a artista. “Durante uma severa seca que assolou o Ceará, quando a fome se alastrou, meus ancestrais preparavam um caldo ritualístico com ervas e pedras. Após o preparo, retiravam as pedras, devolvendo-as respeitosamente à terra, e consumiam aquele líquido que lhes proporcionava sustento e vitalidade.”

O vasto território do Cariri, cercado por imponentes chapadas e formações rochosas, mantém uma relação simbiótica com estes elementos minerais. “As pedras não apenas nos circundam, mas caminham conosco, compartilham nossa existência, são seres vivos que integram nossa realidade”, enfatiza Bárbara. Esta perspectiva contrasta radicalmente com o pensamento ocidental, que frequentemente reduz as pedras a meros obstáculos a serem removidos do caminho, revelando cosmologias fundamentalmente distintas sobre nossa relação com o mundo mineral.

Entre a violência simbólica e o acolhimento: três encontros marcantes

A performance de Bárbara em Porto Alegre foi marcada por três episódios significativos que revelam diferentes formas de recepção ao seu trabalho e à sua identidade indígena.

O primeiro ocorreu quando uma mulher, ao ser abordada pela artista, respondeu friamente: “Você é tão jovem, vá procurar um trabalho”. Quando Bárbara tentou estabelecer um diálogo sobre a ancestralidade das pedras, a mulher declarou: “Eu não tenho essa coisa espiritual, eu sou materialista”. A artista ainda tentou explicar que a pedra é, de fato, material, mas a conexão espiritual viria do contato, ao que a mulher respondeu negativamente. O encontro terminou com um comentário sobre os dentes da artista, revelando um olhar exotizante.

O segundo episódio, considerado mais grave pela performer, envolveu uma senhora que insistentemente a chamava de “índia” (não de indígena) e oferecia dinheiro, balançando uma nota de 100 reais. “Como ela teve autorização, no meio de um monte de gente, para fazer essa provocação toda?”, questiona Bárbara, evidenciando o desconforto com a situação.

Contrastando com essas experiências, uma terceira mulher demonstrou genuíno interesse. Ao receber a pedra das mãos de Bárbara, ela não apenas se engajou na apresentação como também convidou duas amigas para participarem. “O trabalho também tem esse lugar do encontro que pode dar certo ou não, pode acontecer violência, mas também tem um lugar de identificação, de afeto e de muita força espiritual”, reflete a artista.

Público participa ativamente da performance. Foto: Denis Gosch

Os caminhos rituais do Ané das Pedras

A performance, que estreou em 2019 num festival no Crato (CE), tem circulado por festivais de teatro, performance e dança. O trabalho começa com Bárbara vestida com trajes tradicionais de palha, carregando um maracá e uma cuia com pedras. Ela caminha pelas ruas da cidade, criando encontros com as pessoas e convidando-as a participar do ritual final: o plantio das pedras.

“O percurso demora uns 22 minutos, porque não é sobre a distância, mas sobre os encontros”, diz. Ela busca ruas com grande fluxo de pessoas e vai se conectando pelo olhar, um desafio na sociedade contemporânea. O trajeto termina em uma árvore cuidadosamente escolhida, que precisa atender a requisitos técnicos específicos.

“Eu preciso de uma árvore que não tenha concreto debaixo e normalmente escolho uma que consiga receber um bom número de pessoas”, detalha Bárbara. Na apresentação em Porto Alegre, mais de 60 pessoas acompanharam o ritual até seu momento final.

Importante destacar que as pedras utilizadas são sempre do próprio local onde a performance acontece. “Eu trabalho com as pedras daquele determinado lugar que eu me encontro. Porque não adianta eu pensar só que o rio lá da minha comunidade é um ancestral. É importante que eu pense que o rio que está em São Paulo, os rios que estão em outros lugares também precisam ser protegidos”, explica.

Um ato de resistência indígena e reeducação de imaginários

TRabalho é uma forma de reexistência cultural Foto: Lara Alencar

Ané das Pedras vai além da apresentação artística, pois posiciona-se como uma forma de reexistência cultural e uma proposta de reeducação de imaginários. “A cosmovisão dos povos indígenas é uma visão de mundo muito mais anticolonial e contracolonial na sociedade capitalista que a gente vive”, defende Bárbara.

Levar para o espaço público e para as artes cênicas elementos sagrados da cultura Kariri é um ato político. “Trazer a pedra como algo importante num lugar em que o que é importante é o dinheiro, o que alguém deu valor. Trazer para o palco algo que é forte para a gente, que é importante para a gente, é também uma reeducação de imaginários”, assinala.

A exibição em Porto Alegre ganhou significado adicional após a crise climática que assolou o estado. “Para mim foi muito forte vir fazer o trabalho aqui depois dessa crise climática escancarada que o estado viveu e que todo mundo assistiu”, situa Bárbara, estabelecendo uma conexão entre seu trabalho com os elementos da natureza e as questões ambientais contemporâneas.

Uma conquista histórica no Palco Giratório

A circulação de Ané das Pedras pelo Palco Giratório do Sesc Brasil representa um marco importante tanto para a artista quanto para a visibilidade das artes indígenas no circuito nacional. “A gente é o segundo grupo do interior do Ceará a circular pelo Palco Giratório e eu acredito que a gente é o primeiro grupo indígena com um trabalho voltado para a memória indígena a circular nesse programa que tem tantos anos”, celebra.

A decisão política de permanecer no Cariri

Apesar do reconhecimento nacional e das oportunidades de circulação, Bárbara Matias mantém uma posição política clara: continuar vivendo no interior do Ceará. “Por muito tempo a gente viu as pessoas do Nordeste sendo obrigadas, em sua maioria por questões de trabalho, a se deslocar para os grandes centros. Eu reivindico continuar morando no interior do Ceará”, afirma.

Para a artista, essa escolha é também um exercício político. “Tem aeroporto, as pessoas sabem do meu trabalho, as redes sociais estão aí, tem um telefone que pode ligar, dá para atender o e-mail. Não precisamos nos deslocar do nosso território de origem”, argumenta.

Permanecer no Cariri significa manter proximidade com sua família e comunidade, elementos que alimentam sua produção artística. “Continuar morando lá é também uma forma de não perder alguma coisa que alimenta muito firmemente o meu trabalho”, conclui Bárbara, reafirmando seu compromisso com suas raízes e com a valorização do território nordestino como espaço legítimo de produção cultural contemporânea.

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