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Aos eternos sonhadores
Crítica do espetáculo Sueño

Paulo de Pontes  no papel de Shakespeare. Foto: Priscila Prade/Divulgação

Leopoldo Pacheco no papel de vilão. Foto: Joao Caldas Filho/Divulgação 

Enquanto teclo esse texto da minha casa provisória entre Perdizes e Pompeia, o espetáculo Sueño faz a última sessão desta segunda temporada no Itaú Cultural, na Avenida Paulista. Minha aposta comigo mesma é terminar essa escrita antes do final da sessão. Como a peça é longa, tenho tempo, acho.

Assisti três vezes à montagem na primeira temporada, na área externa do Teatro João Caetano, com aquele sentimento de urgência de comer teatro presencial dos bons. Uma tensão, aquele frisson, público reduzido, lotação esgotada, gente voltando da porta porque não cabia mais ninguém. E aquele jardim, quintal, sei lá, com um clima mágico, orquestrada por uma árvore imensa que parecia um espelho com raízes no ar. A árvore foi incorporada à encenação e exalava mistérios. Isso foi em novembro de 2021. Escrevi uma longa crítica na época, que pode ser acessada aqui.

Quase dois anos depois, Sueño fez a segunda temporada na caixa preta de um teatro, de 31 de agosto a 17 de setembro. Muitas sessões. A árvore foi recriada como cenário. E tudo se acomodou bem no palco convencional.

José Roberto Jardim no papel de Vini e Michelle Boesche como Laura. Foto: João Caldas/Divulgação

O público “ainda” gosta de uma história bem-contada no teatro. A tirar pelos depoimentos apaixonados colhidos nesta temporada de Sueño. Newton Moreno, autor e diretor do espetáculo, costura as cenas com a maestria de artesão, monta e desmonta, cria climas e transforma em outras tensões.

Sueño é puro teatro. É jogo, dramaturgia e atuação. Sueño é um deleite questionador. E as cenas vão se encaixando num quebra-cabeças, para expandir os pensamentos.

Newton chama o teatro contemporâneo para a dança, mas convida outros gêneros a deslizar pelo salão. Leva à cena a figura do dramaturgo inglês William Shakespeare (a reclamar da Rainha Elizabeth, sedenta por mais uma peça, desta vez com algum truque de casamento),  a contracenar com um diretor latino-americano.

A peça louva o teatro, a partir da atuação da trupe do diretor Vini (José Roberto Jardim), que idealiza montar Shakespeare na ascensão do ditador chileno Augusto Pinochet (1915-2006), em 1973. O foco está no Chile, mas aponta para as fragilidades democráticas da América Latina e os golpes que sofreu.

Leopoldo Pacheco e Sandra Corveloni . Foto: João Caldas Filho/Divulgação

José Roberto Jardim e Simone Evaristo. Foto: João Caldas Filho /Divulgação

Vini entrou na luta armada por influência da namorada, Laura (Michelle Boesche), que é filha de uma mulher da alta sociedade decadente, viúva de um militar e apoiadora do golpe de Pinochet (papel de Sandra Corveloni, em substituição a Denise Weinberg). Um alto posto do governo ditatorial (Leopoldo Pacheco) tem por Laura uma paixão doentia. Ele é autor de vários crimes que são citados no palco.  

O casal consegue fugir, mas não ficam juntos. Laura, grávida, é captura pelo regime. Vini alimenta no exilio o desejo de montar Sonhos de uma Noite de Verão. A peça faz o arco da tomada do poder por Pinochet até o retorno do diretor obstinado, que enfrenta o capitalismo brutal que ganhou forças com o regime, e procura encontrar sua filha.  

A peça vai do conteúdo onírico à tragédia familiar, com pitadas de Nelson Rodrigues. São muitas camadas.  

O elenco está afinado com brilho para todos os participantes. É fascinante a versatilidade de Paulo de Pontes, como exasperado Shakespeare ou o operário-ator. Leopoldo Pacheco é odiento no papel do militar torturador e nojento no de funcionário da construtora que quer erguer um prédio no local do teatro de Vini. 

José Roberto Jardim, o Vini, acentua o caráter utópico da personagem, como também as marcas da sua trajetória de artista e cidadão da Latino América, a carregar no corpo as marcas dos golpes ditatoriais. Michelle Boesche interpreta a engajada Laura com sentimentos revolucionários e a pragmática Norma, que chega a ser risível em sua obsessão por metas. O excelente Puck/feiticeira de Simone Evaristo ganha mais presença e expõe muitas facetas do seu talento. 

Sandra Corveloni investe mais na futilidade, no esnobismo da grã-finagem, como a mãe alcoólatra da revolucionária ou na leveza para o cômico de Titânia ou Rainha Elisabeth. Ela também expõe com sutileza a dor materna de quem perdeu a filha. É um registro bem diferente do de Denise Weinberg, que trabalhava uma carga dramática mais concentrada e pesada. Muito rico ter visto as duas em cena. 

A atuação de Corveloni também funciona como marcador de tempos. O Brasil respira com menos tensão agora que se livrou do Bolsonaro e aposta na gestão Lula com esperança por dias melhores.   

A direção e execução musical ao vivo a cada sessão de Gregory Slivar acentua todos os climas e dá sustentação para as cenas e suas mudanças.

Depois de Sueño o coração teima em bater repleto de emoções e, espero, com coragem para as próximas batalhas. Pois a vida é luta. E o teatro é bom. Traz Shakespeare para o nosso quintal. E que alegria que esses sonhadores encontraram condições e parceiros certos para esse exercício de utopia.

Ficha técnica:

Dramaturgia e direção geral: Newton Moreno
Direção de produção: Emerson Mostacco
Direção musical: Gregory Slivar
Direção de movimentos: Erica Rodrigues
Elenco: Leopoldo Pacheco, Sandra Corveloni, Paulo de Pontes, José Roberto Jardim, Michelle Boesche, Simone Evaristo e Gregory Slivar (músico ao vivo)
Atriz criadora da primeira temporada: Denise Weinberg
Desenho de luz: Wagner Pinto
Figurinos: Leopoldo Pacheco e Chris Aizner
Adaptação de cenário: Equipe de criação do Sueño
Colaboração (cenário): Chris Aizner
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Assistente de dramaturgia e pesquisador: Almir Martines
Assistentes de direção: Katia Daher (primeira etapa) e Erica Rodrigues
Assistente de produção: Paulo Del Castro
Assistente de luz: Gabriel Greghi
Adereços e cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque
Estrutura de box truss: Fernando Hilário Oliveira
Desenho de som: Victor Volpi
Operador de luz: Gabriel Greghi
Operador de som e microfone: Dugg Mont
Microfonista: Matheus Cocchi
Historiador e consultor shakespeariano: Ricardo Cardoso
Designer: Leonardo Nelli Dias
Fotos: João Caldas
Produção: Mostacco Produções
Idealização: Heroica Companhia Cênica

 

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Todo texto é salvo quando é lido
Resenha da leitura dramática A Pedra do Navio
Por Sidney Rocha*

João Augusto Lira, Márcia Luz e Paulo de Pontes. Foto: Alexandre Sampaio / Divulgação

Atores leem peça de João Denys. Foto: Alexandre Sampaio / Divulgação

O texto e o contexto

João Denys escreveu A Pedra do Navio em 1979. O texto pode ser “lido” em separado, mas faz parte de uma trilogia, do Seridó, e João Denys dedicou boas décadas a esse trabalho.

Em 2007, o texto foi re-escrito e publicado na Antologia do teatro nordestino (Fundação José Augusto) e penso ser sobre essa versão que Conexão 3×4 artes & atos trabalhou a leitura dramatizada, ontem, dia 8 de junho de 2022, no Teatro Luiz Mendonça, no Recife.

Em 1979, ainda sob a ditadura, era comum, só a um passo a menos do obrigatório, no Nordeste, o texto teatral ter algo das teorias de Bertolt Brecht ou do cinema de Glauber Rocha. Da estética da seca e da fome. A Pedra do Navio se ancorava nessas vozes, tanto quanto em teorias marxistas, comunistas, sertanistas, bem ou mal digeridas por quem as encenasse ou assistisse, além de ainda ventilar um pouco da estética do romance de 30 e do modernismo que, de algum modo, terminaram por paradoxalmente atrasar a modernização do palco no Brasil.

O texto é, portanto, seu próprio contexto. Onde certo datismo não o reduz. Talvez o didatismo, a estética da manifestação, sim.

Vivia-se por aqui, na literatura, no cinema, no teatro, (não sei na pintura, mas logo falaremos dela) o máximo da ideia tosca do “resgate” cultural.

Mas, nesse ponto dos “ares de manifesto”, expressão de Alfredo Bosi, o teatro vence a literatura daqueles fins dos anos 1970, onde há bons textos, porém a dramaturgia teatral dessa época, no Nordeste, é menos ensaística ou retórica.

Vemos, hoje, de novo, um descambo dessa literatura para o discurso. O discurso pelo discurso. De novo com exceções.

Pois bem: A Pedra do Navio é mais social que sociológico. No texto, o nordestino deixa de ser resultado de um determinismo biológico, algo eugenista, para ser definido, e isso também significa “reduzido”, por um determinismo social. Eis o drama.

Já a trama começa quando um ônibus atropela a procissão de Nossa Senhora, lá em Currais Novos. Está montada em tipos populares como beatas, pedintes-pidões cegos, pagadores de promessas, padres interesseiros, crentes, viúvas, trabalhadores, príncipes e princesas do sertão mágico.

Pode-se pensar que o dramaturgo buscou criar uma atmosfera geral para contar o verdadeiro mundo dos trabalhadores, do povo oprimido por Deus e pelos “desembargadores” do capitalismo, sob a alegoria da conscientização. Pensar numa urdidura dessas salvará o texto. Mas o texto não precisa de nossas senhoras nem de salvação.

A leitura é sempre aberta. Todo texto é salvo, e só é salvo, quando é lido. O resto é opinião.

Em A Pedra do Navio faltam personagens mais definidos. E o dramaturgo sabe criá-los. Mas, e não preciso defender o texto, Denys talvez tenha preferido essa ideia mais diluída, de personagens como uma hidrameba. Ou esses tipos se escondem nas coxias de seus dramas particulares para poder melhor aparecer a viúva Teodora, heroína morta a tiros pelos donos da mineradora e, depois, tomada por santa pelo povo, outro tópos do imaginário nordestino.

Aqui há nome a se considerar no contexto, que o Conexão 3×4… pode ressuscitar em suas leituras dramatizadas: o paraibano Altimar Pimentel. Ele escreveu a peça Flor do campo, encenada em 1987. O texto traz relações claras com o assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves, também por um tiro, por conta de sua luta pela reforma agrária, ao lado dos trabalhadores do campo. Esse feminicídio ocorreu em 1983. João Denys, como poeta, foi aí, portanto, algo profético com sua Teodora?

Rinaldo Silva, Márcia Luz, Breno Melo Paulo de Pontes, João Augusto Lira e Jeims Duarte 

A leitura

Em Conexão 3×4: artes e atos, as atrizes Augusta Ferraz e Márcia Luz e os atores João Augusto Lira e Paulo de Pontes montaram leituras dramatizadas, no Recife. Dali surgiram As Cadeiras, de Ionesco, de A História do Zoológico de Edward Albee, Fala Baixo Senão Eu Grito de Leilah Assumpção a essa A Pedra do Navio, de João Denys. Em todos, a meu ver, outra conexão, algo que me interessa muito: o teatro de texto.

Outras relações: o zoo do norte-americano Albee e as cadeiras do romeno-francês Ionesco são do tutano do Teatro do Absurdo, coisa do fim dos anos 1950. Fala baixo…, da paulista Leilah Assumpção, tem o tom confessional, íntimo, talvez mais ao gênero pictórico chamado de conversação, no drama de duas personagens (como ocorre também em As Cadeiras).

E, então vem A Pedra…, do potiguar João Denys, o mais coletivo deles. E, penso, o mais difícil de se “ler”. João Denys, diretor e cenógrafo, constrói sua cena a partir de luz e cenário muito peculiares. As cenas têm interrupções bem arbitrárias. Algumas ocorrem simultaneamente. A estrutura do texto lembra a montagem e linguagem do cinema, com indicações de luz, cortes, fade out, fade in, split screen.

Por isso, flora e zoo de João Denys exigem mais do elenco: leitores & leitoras.

O segredo da leitura (branca, dramatizada) é sempre o tom. Pouca gente saber ler bem um texto. No teatro, quando a leitura dramatizada faz brilhar mais a dramatização que o texto ele-mesmo, isso pode ser um problema, a depender da exigência da plateia.

Por conta dessa estrutura do texto, do grande número de personagens vividos por três vozes no palco, das simultaneidades, das características dos personagens, repito: tipos, em A Pedra…, o elenco teve de se esforçar muito para esses tipos não descambarem ao mundo da caricatura, especialmente na cena da feira.

Em apresentações assim, o improviso pode se tornar um pesadelo.

E se o elenco se deixar enganar pela reação da plateia, fica sujeito a aumentar mais ainda o tom e exagerar na dramatização e, daí, para a caricaturização é um passo. Nas falas-rezas, nos trechos chupados das missas e das ave-marias, faltou melhor afinação e o uníssono funcionaria mais.

Em alguns momentos, numa das velhas de Lira, no cordelista e no americano (com sotaque algo turco), de Paulo, e na Teodora e sua boneca, de Márcia, isso se pré-anuncia.

Porém, o espetáculo tem rigor próprio, atores e atrizes têm muita estrada e conseguem estabelecer essa conexão do autor com seu texto, do texto com o ouvinte e a direção respeita cada uma dessas dicções. Não vi as outras leituras, embora conheça o texto de maioria, mas esse comentário servirá para as demais experiências dessa temporada de Conexão 3×4…, creio.

E sei que João Denys gostaria de ter visto a apresentação.

O extratexto: a imagem

Esses vários intradiscursos, intratextos, intercontextos, digamos, contribuem para justificar a intenção do grupo em ligar textos e imagens, que são discursos, também. A filósofa, psicanalista, feminista Julia Kristeva já disse bem: “Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.”

Uma leitura é uma transformação, antes de tudo. E absorção. Ler é abstrair, adicionar e subtrair.

O Conexão 3×4: artes e atos trouxe obras de Rinaldo Silva, Breno Melo e Jeims Duarte para o palco. E sua relação com o texto de João Denys é precisa como um GPS. Elas criam um tipo de cenografia fantasmagórica para o espetáculo. Isso é bom.

O artista e escritor Breno Melo termina por nos apresentar uma tela onde se desfiguram personagens dos Currais Novos (bem velhos) do mundo. Não sei se foi a intenção, mas a pintura de Breno Melo me fez apontar para as figuras de Vicente do Rego Monteiro e me fez projetar no tempo Retirantes, o quadro de Candido Portinari. Se aquelas figuras de Portinari têm um futuro, ele está na esqueletaria pintada por Breno Melo. A “cena” se conecta bem com o contexto da peça, dos mineradores, dos explorados, do povo, que o poder atropela todos os dias.

Rinaldo Silva se apossa do verde-amarelo para sua bandeira sangrada à faca e pisoteada de coturnos para se ligar ao texto justo nos momentos de intenções políticas mais claras, quando alguém confunde a luta por direitos como “coisa de comunista”, sintoma brasileiro bem atual.

Jeims Duarte, artista e pesquisador, oferece uma atmosfera mais mitológica. Para colocar luzes nas pedintes-cegas da feira, mas também no povo cego e para trazer alguma metáfora com a justiça, o artista apresenta seu desenho Tirésias, personagem também frequente no teatro surrealista, cujo mito tanto está ligado à sexualidade quanto à capacidade de profetizar.

E a peça de João Denys tem algo de profético, no que profetiza e mostra no “Hontem”. Basta ver a relação da tragédia da peça com as tragédias recentes do Recife, das chuvas. Da “realeza” visitando as vítimas. E de como a culpa, aqui e no texto, termina sendo sempre da vítima. 

Foi bom sair de casa para ver a leitura. Ainda estou confuso ao ver os rostos alguns sem máscaras, no teatro real, e me equivoquei com uma fisionomia ou outra.

Ao final, fiquei por ali, sentado, esperando o debate. Mania da minha geração. Talvez a interação entre artes plásticas e artes cênicas pudesse aparecer melhor na voz desses outros leitores, os pintores.

Mas depois notei que o milagre já acontecera. Trazer aquele espetáculo foi essa prova.

Tomo a liberdade, aqui, de ampliar a campanha do pix solidário.

Mande um para a chave 81 999697145, da produção. O valor fica a seu critério.

A temporada se encerrou ontem, mas creia em mim, vale mesmo ainda contribuir com esse trabalho.

* Sidney Rocha é escritor. 

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O insuportável mau cheiro da memória
Crítica do espetáculo Sueño

Paulo de Pontes e Denise Weinberg; ao fundo, José Roberto Jardim e Michelle Boesche. Foto: João Caldas Fº_

Simone Evaristo e Leopoldo Pacheco. Foto: João Caldas Fº/ Divulgação

Fora dos espaços convencionais de edifícios teatrais ocorrem nessa pós-ainda-pandemia, em São Paulo, algumas das experiências mais desconcertantes e arrebatadoras. Uma delas acontece no quintal, na área externa do teatro João Caetano, na zona sul da capital paulista e se chama Sueño. O texto e a direção de Newton Moreno abrem trilhas de diálogos com uma América Latina  ferida, mas não abatida, com suas veias sangrando, mas que pulsa de utopia nos subterrâneos.

Sueño ocupa seu lugar na constelação da arte das emergências, que articula estratégias dos saberes latinizados, dos pensamentos subalternos, das forças de resistência que não hesitam em se afirmar. Diante do avanço dos agentes conservadores em escala global e dos retrocessos da democracia, o espetáculo toma posição nos combates anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais na cena incorporada, dos corpos em ação.

Pois é no campo da luta e da crítica à realidade recente que Sueño avança na perspectiva de revitalizar o horizonte. Lembrando o professor e escritor português Boaventura de Sousa Santos a luta é um conceito de resistência, através do qual uma mínima possibilidade de liberdade é convertida em um impulso de libertação. O grande combate e o pequeno combate.

Não dá para esconder o fedor das ditaduras das Américas. Mais que o “insuportável mau cheiro da memória” dos versos de Drummond, as visões do horror, os gritos desesperados repercutem na peça em atravessamentos sofridos e brutais. É um diagnóstico radical nesse panorama de incertezas da democracia.

Para tratar da complexidade do contexto contemporâneo Newton Moreno engenhosamente cria camadas envolventes, da peça dentro da peça, da ditadura chilena como ponto de ressonância do avassalador massacre autoritário na América do Sul.

Passado, presente e futuro se imbricam nesse manifesto poético-político, como quer o dramaturgo/ diretor, que cutuca nossa sensibilidade. Newton Moreno faz de sua indignação, arte. Da sua revolta, teatro. Cria dispositivos que operam nas dinâmicas de produção da vida. Os desafios são enormes.

As dramaturgias vêm com pulsões insubordinadas, quase revoltosas contra a realidade do passado e do presente, inquietas de futuros. Os contextos de ontem e de hoje são assustadores, sabemos.

Mas como atesta o crítico argentino Jorge Dubatti o teatro se configura como o espaço de fundação de territórios de subjetividade alternativa, espaços de resistência, resiliência e transformação, sustentados no desejo e na possibilidade permanente de mudança.

Terreno fértil de práticas micropolíticas, micropoéticas, o teatro contemporâneo latino-americano tem um papel fundamental no aguçamento dessa memória traumática. O teatro é, sem dúvida, esse espaço de análise crítica, de reflexão dos episódios políticos da América Latina.

Michelle Boesche, Foto João Caldas Fº_

Uma enorme árvore, com toda a carga de ancestralidade está fincada no centro do cenário desse Sueño. Sua visão onírica abre portais para rotas individuais do esplendor do cair da tarde para a noite enigmática. Nesse ambiente o elenco – formado por Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco, Michelle Boesche, José Roberto Jardim, Paulo de Pontes e Simone Evaristo, e o músico Gregory Slivar – conduz um público de 30 pessoas por uma viagem desafiadora.

O sonho instala, de acordo com Freud, um espaço para realizar desejos inconscientes reprimidos. Muitos desejos circulam no ambiente da peça, provocados pelas traquinagens de Puck, a fada travessa; a luta contra a tirania, a força bruta, e as contradições dos movimentos revolucionários.

O corpo dos atores está impregnado das impressões sensoriais da experiência de sufocamento, dos resíduos das várias guerras travadas no coração do povo. Entre o sonho e o momento desperto erguem-se as estratégias de sobrevivência. Sueno atua como guardião da existência, um compromisso estético de investigação e descobertas de caminhos, de camadas, de feixes de luz.

Para erguer essa dramaturgia dura, forte, Moreno circulou pelo Uruguai, Argentina, Chile e Peru, visitou o Museu da História e dos Direitos Humanos, em Santiago, e o Espacio Memoria, em Buenos Aires. Chocou-se com imagens e depoimentos de crianças arrancadas das famílias por ordens do general Augusto Pinochet ou do espaço que serviu de centro de tortura argentino.

Fez suas conexões com a Operação Condor (campanha de repressão política e terror de Estado, promovida pelos Estados Unidos, envolvendo operações de inteligência e assassinato de opositores implementada em novembro de 1975 pelas ditaduras de direita do Cone Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai). Mergulhou nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes repressivos dos militares brasileiros na ditadura, e releu obras como As Veias Abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano, e A Elite do Atraso, do sociólogo Jessé de Souza.

Memória da violência

O ponto de vista é do artista, do diretor, do utópico. Numa performance da memória de quem está inscrito à margem. Dos que foram vítimas do poder institucional. É o conhecimento dos vencidos. Ao mesmo tempo põe no centro da pulsação a relevância do fazer artístico e do fazer teatral. E isso diz muito da resistência atual no Brasil e outros países atingidos pelos detratores da cultura, da ciência, dos direitos humanos.

Ao falar do horror dos rastros da ditadura, das atrocidades promovidas pelas elites, Newton levou para a cena a prática da elite chilena exploradora de cobre, que devastou natureza e pessoas.

Denise Weinberg e José Roberto Jardim. Foto João Caldas Fº

A peça corre de forma não linear, entrelaçando temporalidades num encadeamento dialético. Uma plasticidade que expõe fendas profundas da ditadura escancarada, a crueldade e arbitrariedade dos tempos idos e seus reflexos no presente.

Nesse metateatro, uma trupe teatral interrompe uma montagem de Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, com o golpe militar de 1973 que depôs o então presidente Salvador Allende e que iniciou uma ditadura que se prolongou até março de 1990 com Pinochet. O diretor Vine e sua companheira, a atriz Laura, que está grávida, resolvem fugir do país. Ela, filha de uma importante e conservadora família do Chile, vai para a luta armada. 

E os atores, matérias-primas desse Sueño?…
Próspero, na peça A Tempestade, atenta que “Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.

A atriz Denise Weinberg é uma mulher de teatro e tem o domínio do tempo e da direção dos ventos, com todas as nuances. Ora rainha, ora personagem de Shakespeare. Mãe alcóolatra, da elite chilena indulgente com as atrocidades. Cúmplice do novo regime, mas que não é poupada dos horrores provocados pela ditadura. Avó arrependida, mas que mantém o ranço da alta sociedade. Ela nos transpassa com egoísmo concentrado dos ricaços e se descama do orgulho enquanto um mar revolto de emoções explode na cena.

Laura, personagem de Michelle Boesche como filha, assume o protagonismo questionador ao governo, representando os jovens e as mulheres, duas forças de resistência e contestação. A neta, criada sem saber sua verdadeira identidade, aparece com visões políticas e sociais opostas à de seus pais. As ligações insólitas da mão invisível do sistema. Michelle imprime uma interpretação com leveza e vigor.

A entrega do ator Leopoldo Pacheco nos entrechos e a carga de cinismo e ignomínia do militar facínora evidencia a face desses criminosos históricos. Com uma grande atuação, ele nos coloca, nós espectadores, num lugar bizarro de espichar a humanidade a esses infames malfeitores da humanidade quando eles perdem seu poder, mas não a índole cruel, e se disfarçam de coitados.

Vine, o metadiretor do espetáculo, vivido por José Roberto Jardim, segue guarnecido de poesia e cria em seus delírios outros mundos. Com uma atuação contida, por vezes esfíngica, Jardim segue sinalizando passagem, entre a defesa do teatro e o enfrentamento às megacorporações que buscam massacrar os ideais.

Simone Evaristo assume o papel de Puck e outras intervenções performáticas de forte apelo visual. Com suas agilidade e presença, ela funciona como o sal da terra, a equilibrar e desequilibrar o percurso de Sueño.

Paulo de Pontes. Foto: João Caldas Fº / Divulgação

E o que dizer de Paulo de Pontes? Ele está pleno, iluminado, com total domínio do seu ofício. Trafegando com desenvoltura pelos personagens, de Shakespeare, ou como um mineiro-ator. A cena dele transformado em asno com Denise é um jogo magnífico. O ator mistura referências, canônicas e populares, como a de Genival Lacerda, e subverte com propriedade as estratificações. Paulo de Pontes, ator que acompanho há vários anos, está brilhante nesta peça, assumindo vários registros interpretativos com a mesma potência. 

A encenação oferece ao espectador muitas gratificações na condução da fábula, que permite chegar à assombração da barbárie, mas salteada por oníricas imagens. As fantasias visuais funcionam como amortecedores sensoriais. Os fluxos energéticos se cruzam em movimentos de revelar/encobrir, em que todos os atores se desdobram num jogo de encaixe.

Sueño é daqueles espetáculos que sentimos uma profunda gratidão por ter sido erguido, com suas lembranças dolorosas. É uma peça perfeita? A cada mudança que o inquieto Newton Moreno faz poderemos dizer que é mais que perfeita. Pois transborda e nega a categoria de perfeição. É uma montagem tão humana a expor desumanidades e tão teatro no sentido mais completo da palavra que ficamos extasiados em ver e rever.

Ficha técnica:
Dramaturgia e Direção Geral: Newton Moreno
Direção de Produção: Emerson Mostacco
Direção Musical: Gregory Slivar
Direção de Movimentos: Erica Rodrigues
Elenco: Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco, Paulo de Pontes, José Roberto Jardim, Michelle Boesche, Simone Evaristo, Gregory Slivar (músico ao vivo)
Desenho de Luz: Wagner Pinto
Figurinos: Leopoldo Pacheco e Chris Aizner
Cenário: Chris Aizner
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Assistente de Dramaturgia e Pesquisador: Almir Martines
Assistentes de Direção: Katia Daher (primeira etapa) e Erica Rodrigues
Assistente de Produção: Paulo Del Castro
Assistente de Luz: Gabriel Greghi
Adereços e cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque
Estrutura de box truss e arquibancadas: Fernando Hilário Oliveira
Desenho de som: Victor Volpi
Operador de Luz: Gabriel Greghi / Vinícius Rocha Requena
Operador som e Microfone: Victor Volpi
Palestrantes: Sérgio Módena e Ricardo Cardoso
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio – Douglas e Heloisa
Designer: Leonardo Nelli Dias
Fotos: João Caldas
Assistente de fotografia: Andréia Machado
Produção Audiovisual: Ìcarus
Apoio Paisagístico: Assucena Tupiassu
Costureiras: Lande Figurinos e Judite de Lima
Equipe de Montagem de Luz: Guilherme Orro / Thiago Zanotta / Lelê Siqueira
Equipe de Montagem Cenário: F.S. Montagens
Estagiários: Camila Coltri; Fernando Felix; Marcelo Araújo; Bruna Beatriz Freitas; estagiário 5; estagiário 6
Produção: Mostacco Produções
Realização: “Heróica Companhia Cênica”, “Prêmio Zé Renato de Teatro”, “Secretaria Municipal de Cultura” e a “Prefeitura de São Paulo — Cultura”
“Este projeto foi contemplado pela 12a Edição do Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura”

Serviço:
Onde: Teatro Municipal João Caetano (Rua Borges Lagoa, 650, Vila Clementino, São Paulo)
Quando: de 05 de novembro a 05 de dezembro de 2021. Dias 25, 26 e 27 de novembro, as apresentações são no MIRADA, festival em Santos
Horários: de terça a domingo, às 18h
Ingressos: Entrada franca, com retirada na bilheteria uma hora antes do espetáculo.
Duração: 150 minutos + 30 minutos de debate após cada apresentação.
Classificação: 14 anos
Lotação: 30 lugares
Informações: (11) 5573-3774 / 5549-1744

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A liberdade é uma luta constante.
Estreia Sueño, de Newton Moreno

Denise Weinberg e José Roberto Jardim. Foto: João Caldas Fº / Divulgação

Michelle Boesche e Leopoldo Pacheco. Foto: João Caldas Fº/ Divulgação

Paulo de Pontes. Foto: João Caldas Fº / Divulgação

“Ou se é livre por inteiro ou se está em cativeiro”. O trecho da música de Sueño traduz o espírito do espetáculo. Livremente inspirada em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, a peça expõe desejos interrompidos de uma trupe de teatro e de uma família por uma ditadura sul-americana. Com direção e dramaturgia de Newton Moreno e elenco formado por Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco, Paulo de Pontes, Michelle Boesche, José Roberto Jardim e Simone Evaristo, Sueño estreia neste 5 de novembro de 2021 de modo presencial na área externa do Teatro João Caetano, em São Paulo.

As ditaduras são especialistas, sabemos, em confiscar destinos e semear pesadelos. Na peça, que começa em Santigo, no Chile, em 1973, um grupo de teatro ensaia Sonho de uma Noite de Verão. O diretor Vine forma um casal com uma militante política, que está gravida. Eles são separados pela ditadura.

A história é narrada pelo ponto de vista do diretor chileno, Vine, que anseia retomar sua montagem shakespeareana adiada pelo golpe e reencontrar sua companheira. Mesmo com a derrocada da ditadura, na década de 1990, os ecos do autoritarismo sobrevivem.

Sueño é nosso manifesto poético. Nossa teimosia estética para retornar ao teatro após o caos pandêmico e político que atravessamos, evidenciando nossa crise e buscando reafirmar a potência de nosso ofício. Uma peça em processo, sempre em processo, como este continente em ensaio há séculos. Por isso, chamamos esta primeira temporada de Etapa 1 do SUEÑO – ensaiando sonhos”, pontua o diretor e dramaturgo Newton Moreno.

A operação Condor, que envolveu Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina é o disparador da montagem. A intervenção para detectar “movimentos subversivos” foi responsável por muitas prisões e “desaparecimentos”. “Queremos acessar as gavetas-memórias desta rede persecutória e opressora. E assim desenvolver a dramaturgia, explorando um eixo organizador: processos ditatoriais na América Latina e as famílias separadas pela ditadura”, diz Newton Moreno.

Há um entra-e-sai na ‘fábula’, no universo onírico e violento de Shakespeare. “Embaixo do tapete mágico de fadas, enamorados e quiprocós, esconde-se a sombra tenebrosa dos desafetos, desmandos patriarcais de humanos e desumanos”, lembra Moreno.

Muitas camadas são criadas para falar da eterna utopia, da colonização, do devir latino-americano, dos regimes totalitários, do ontem e hoje, das nossas heranças de desgovernos.

Num dos ensaios de Sueño, que acompanhamos nos últimos dias, fomos contagiados pela força da montagem para encarar o tema-desafio. Da delicadeza para tocar o humano, esse ser tão frágil que nos seus projetos de grandeza esquece do tempo. Newton Moreno conduz com engenhosidade esse projeto coletivo que conta com quase 50 pessoas envolvidas diretamente. E extrai gradações interpretativas que vai da fúria à meiguice de um elenco afinado e apaixonante.

Ficha técnica:
Dramaturgia e Direção Geral: Newton Moreno
Direção de Produção: Emerson Mostacco
Direção Musical: Gregory Slivar
Direção de Movimentos: Erica Rodrigues
Elenco: Denise Weinberg, Leopoldo Pacheco, Paulo de Pontes, José Roberto Jardim, Michelle Boesche, Simone Evaristo, Gregory Slivar (músico ao vivo)
Desenho de Luz: Wagner Pinto
Figurinos: Leopoldo Pacheco e Chris Aizner
Cenário: Chris Aizner
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Assistente de Dramaturgia e Pesquisador: Almir Martines
Assistentes de Direção: Katia Daher (primeira etapa) e Erica Rodrigues
Assistente de Produção: Paulo Del Castro
Assistente de Luz: Gabriel Greghi
Adereços e cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque
Estrutura de box truss e arquibancadas: Fernando Hilário Oliveira
Desenho de som: Victor Volpi
Operador de Luz: Gabriel Greghi / Vinícius Rocha Requena
Operador som e Microfone: Victor Volpi
Palestrantes: Sérgio Módena e Ricardo Cardoso
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio – Douglas e Heloisa
Designer: Leonardo Nelli Dias
Fotos: João Caldas
Assistente de fotografia: Andréia Machado
Produção Audiovisual: Ìcarus
Apoio Paisagístico: Assucena Tupiassu
Costureiras: Lande Figurinos e Judite de Lima
Equipe de Montagem de Luz: Guilherme Orro / Thiago Zanotta / Lelê Siqueira
Equipe de Montagem Cenário: F.S. Montagens
Estagiários: Camila Coltri; Fernando Felix; Marcelo Araújo; Bruna Beatriz Freitas; estagiário 5; estagiário 6
Produção: Mostacco Produções
Realização: “Heróica Companhia Cênica”, “Prêmio Zé Renato de Teatro”, “Secretaria Municipal de Cultura” e a “Prefeitura de São Paulo — Cultura”
“Este projeto foi contemplado pela 12a Edição do Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura”

Serviço:
TEATRO MUNICIPAL JOÃO CAETANO – Rua Borges Lagoa, 650 – Vila Clementino – São Paulo.
Temporada: de 05 de novembro a 05 de dezembro de 2021.
Horários: De terça a domingo às 18 horas.
Ingressos: Entrada franca, com retirada na bilheteria uma hora antes do espetáculo.
Duração: 150 minutos + 30 minutos de debate após cada apresentação.
Classificação: 14 anos
Gênero: Tragicomédia
Lotação: 30 lugares
Informações: (11) 5573-3774 / 5549-1744

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As duras linhas do diário de um ator na pandemia
Crítica de 72 dias

Paulo de Pontes registra cotidiano de um artista em isolamento em 72 dias. Foto: Keity Carvalho

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

A matéria da Folha de S. Paulo, publicada neste domingo, 28 de março de 2021, registra: “O Brasil voltou a bater recorde na média móvel de mortes por Covid neste domingo: 2.598. É o maior número desde o início da pandemia e um crescimento de 42% se comparado com a última semana, o que indica tendência de alta nos óbitos pela doença (…)”.

Nós não esperávamos tamanha tragédia. Nenhum pesadelo poderia ter previsto essa realidade. Para uma pessoa comum, não os estudiosos ou os infectologistas, ou gente da área, isso nunca passaria pela cabeça, que estaríamos vivendo uma pandemia nessas dimensões. E, mais ainda, que duraria tanto tempo.

Em março do ano passado, quando do dia para a noite tudo fechou e pairava uma sensação de incerteza e de insegurança diante de um risco que não conhecíamos, fizemos projeções. Boa parte delas a partir da gravidade da situação que acompanhávamos pela televisão na Europa e na Ásia. Mesmo assim, irreais. No solo 72 dias, exibido na programação do Reside Lab – Plataforma PE, o ator Paulo de Pontes conta que imaginou que o isolamento social duraria 15 dias. Um ano depois, o acachapante saldo de mais de 300 mil mortos no Brasil, ilusões desfeitas, cenário devastador de guerra. No experimento, como diz o título, foram 72 dias.

O solo se estrutura como um diário de criação gravado por um ator durante este período pandêmico. Na conversa com um amigo do outro lado da tela, ele insiste que não precisa de companhia, que ficaria bem sozinho nas duas semanas que durariam aquela situação mais grave. Como muitos de nós privilegiados, nos agarramos às possibilidades de encontrar coisas boas no meio de tudo aquilo: seria uma chance de parar um pouco, descansar, dedicar-se a atividades que não tínhamos tempo no cotidiano. Finalmente fazer yoga. Levanta a mão quem se identifica! No caso do personagem, montar um espetáculo solo depois de tantos anos de carreira, de ter se empenhado sem intervalos aos projetos de outras pessoas. A metalinguagem se coloca como recurso de maneira muito fluida, quase intuitiva. Somos nós, os espectadores, que estamos ali, aceitando o convite para acompanhar a peça sendo criada em tempo real, quando o pedido por companhia beira o desespero.

O material dramatúrgico se apoia praticamente por completo no real e no autobiográfico. Paulo de Pontes é um ator com uma carreira longeva e profícua, com muitos personagens e projetos em seu repertório. De fato, quando começou a pandemia, ele estava morando no teatro, o espaço da Casa Maravilhas, que serviu como cenário para a gravação. A dramaturgia foi criada em parceria com Quiercles Santana, que também assina a direção. Virou um mergulho nos sentimentos e nas emoções cotidianas que foram se modificando ao longo dos dias arrastados do isolamento. Veio o cansaço, a solidão, o medo, a exaustão.

Diante do acirramento da crise, com o material da vida real pulsando, também surge a preocupação com a situação dos artistas, a necessidade batendo à porta, a sobrevivência que se instaura como pressão diariamente. A campanha de demonização dos artistas como uma política que vem sendo colocada em prática há alguns anos, mas que agora sobe alguns degraus, fazendo jus e coro à necropolítica implantada por este desgoverno, enfrentada por gente como Paulinho. Gente como os artistas que participaram do Reside. Que continuam se articulando, criando, conversando, resistindo, questionando “Quem mandou matar Marielle Franco?”, cansando, mas levantando a cabeça no momento seguinte. E não por romantização, ato de bravura ou qualquer coisa que o valha, mas porque não há outra possibilidade. Porque o teatro é a vocação, faz falta ao corpo, ao espírito.

Experimento utiliza material biográfico. Foto: Keity Carvalho

O experimento é cru em sua natureza dramatúrgica. Escancara o cotidiano de muitos artistas durante a pandemia, que provavelmente passaram por situações semelhantes. Mas essa dureza também nos afasta em certa medida, porque é uma realidade que já nos é muito próxima, que está em nossas próprias casas. Criado no calor do momento, o experimento ainda carrega uma carência de elaboração poética, talvez semântica, talvez em sua capacidade de abstração. Faz falta transcender o cotidiano ou ser capaz de promover conexões que não se atenham só aos fatos mais óbvios, mas se desprendam, possam ir além.

Neste jogo, Paulo de Pontes é um ator com estofo, que agarra a nossa atenção em 72 dias sem nos permitir dispersar. As precariedades nessa experimentação da linguagem do audiovisual, no isolamento imposto por uma pandemia, são incorporadas à dimensão processual do trabalho e fazem sentido, inclusive na condução da dramaturgia. Afinal, trata-se de um ator que está se virando sozinho, como a grande maioria, para continuar criando, para não perder os laços com alguma dimensão de realidade. Para não perder a oportunidade da dimensão da cura que o teatro nos proporciona a cada novo mergulho. Em 72 dias, o teatro pulsa como necessidade, como linguagem que corre nas veias, que escorre pela câmera. Corte seco e direto.

Ficha técnica:
Dramaturgia: Paulo de Pontes e Quiercles Santana
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Músicas: Sonic Júnior
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Streamer: Márcio Fecher
Produção executiva: Márcia Cruz
Fotos: Keity Carvalho
Realização: Pontes Culturais e Cia Maravilhas de Teatro

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