Arquivo da tag: Paul B Preciado

HBLYNDA EM TRANSito aposta
na força política das narrativas trans

HBlynda Morais é uma artista não binária, negra, gorda, candomblecista e periférica. Foto: Divulgação

O teatro contemporâneo brasileiro experimenta uma reconfiguração radical de seus protocolos narrativos. Corpos historicamente relegados às margens dos processos de representação agora reivindicam a autoria de suas próprias dramaturgias, subvertendo hierarquias seculares entre quem conta e quem é contado. Neste cenário de disputas estéticas e políticas, o espetáculo HBLYNDA EM TRANSito opera como laboratório onde biografia e ficção se contaminam mutuamente, produzindo uma dramaturgia que desafia tanto convenções teatrais quanto epistemologias dominantes sobre gênero e sexualidade.

HBLYNDA EM TRANSito, dirigido por Emmanuel Matheus e com direção musical de Raphael Venos, utiliza elementos performativos que combinam teatro, dança e música. A montagem celebra os 15 anos de carreira artística de HBlynda Morais, como também sua própria existência como contradiscurso às estatísticas que condenam pessoas trans ao desaparecimento precoce.

A potência política do espetáculo reside na interseccionalidade presente na obra. HBlynda Morais é uma pessoa não binária que acumula marcadores sociais de diferença: negra, gorda, candomblecista e oriunda das periferias urbanas. Esta multiplicidade de identidades reflete a complexidade das experiências trans no país. Sua formação acadêmica – licenciatura em História pela UPE e mestrado em andamento na UFPE – subverte narrativas que associam pessoas trans ao abandono escolar e à marginalização social.

Os dados sobre a expectativa de vida de pessoas trans no Brasil são alarmantes, especialmente quando recortados por raça e classe social. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a expectativa de vida média é de apenas 35 anos. Neste contexto, cada ano de vida de uma pessoa trans negra representa um ato de resistência contra um projeto necropolítico sistemático.

A iniciativa “Trans Free” para ingressos gratuitos destinados a pessoas trans, travestis e não binárias demonstra o compromisso do projeto com a democratização cultural. É um reconhecimento de que o teatro deve ser acessível às comunidades cujas experiências documenta.

Urgência do Testemunho

A encenação dirigida por Emmanuel Matheus. Foto: Lígia Jardim / Divulgção

HBLYNDA EM TRANSito integra uma linhagem específica do teatro contemporâneo onde performer e personagem coincidem na mesma pessoa. Este trabalho opera a partir do entendimento de que toda autobiografia é uma construção narrativa atravessada por códigos culturais, expectativas de gênero e demandas de inteligibilidade social.

A especificidade desta operação reside no fato de que, para pessoas trans, narrar a própria vida implica necessariamente confrontar discursos médicos, jurídicos e familiares que historicamente definiram suas identidades como patológicas. Ao assumir a autoria de sua narrativa, HBlynda não busca estabelecer uma “verdade” sobre sua experiência, mas demonstrar como certas vidas precisam ser constantemente reinventadas para existir.

Quando Judith Butler desenvolveu sua teoria sobre a performatividade de gênero em Corpos que Importam (2019), ela abriu caminho para compreendermos como as identidades se constroem através da repetição de atos performativos. No teatro, essa construção ganha dimensões ainda mais potentes: o palco teatral intensifica a ambivalência da performatividade, ao mesmo tempo que reitera convenções cênicas, permite que corpos dissidentes reconfigurem os códigos de inteligibilidade social.

Paul B. Preciado, em Manifesto Contrassexual (2014), argumenta que os corpos trans funcionam como “tecnologias de resistência” aos dispositivos normativos de sexo-gênero. O teatro autobiográfico trans radicaliza esta proposição ao fazer da própria vida matéria-prima estética, transformando experiência em conhecimento e trauma em linguagem cênica.

HBLYNDA EM TRANSito reafirma o palco como território de resistência. Foto: Lígia Jardim

HBLYNDA EM TRANSito transforma o que a sociedade codifica como “desvio” em metodologia de conhecimento. Enquanto o teatro tradicional trabalha com personagens ficcionais que representam tipos sociais, este trabalho investe na própria vida como arquivo de resistência.

Quando HBlynda narra sua trajetória, não está oferecendo uma “lição de vida” ou um “exemplo de superação”, mas documentando as estratégias micropolíticas necessárias para sobreviver em um país que mata uma pessoa trans a cada 48 horas. O palco se torna um laboratório de sobrevivência onde técnicas de resistência são compartilhadas através da performance.

O que emerge desta operação não é mais uma narrativa de superação, mas a instalação de uma temporalidade dissidente. Enquanto a lógica cisnormativa organiza o tempo em termos de desenvolvimento linear rumo à “normalidade”, HBLYNDA EM TRANSito propõe uma cronologia queer onde cada momento de existência constitui uma afirmação fundamental de que corpos como o seu têm direito de estar no mundo. A celebração aqui não é do indivíduo que “venceu na vida”, mas da própria possibilidade de que vidas como essa continuem acontecendo – desobedientes, incontroláveis, imprevisíveis.

SERVIÇO
🗓️ Datas: 05 e 06 de agosto de 2025, ⏰ 20h
Local: Teatro Hermilo Borba Filho – Recife/PE
🎟️ Ingressos: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia-entrada)
💳 Vendas: Plataforma Sympla
🏳️‍⚧️ Política inclusiva: Trans Free – entrada gratuita para pessoas trans, travestis e não binárias

FICHA TÉCNICA
Atuação e Dramaturgia: HBlynda Morais
Direção Geral: Emmanuel Matheus
Direção Musical: Raphael Venos
Produção: Realização com recursos do FUNCULTURA e PNAB

 

Postado com as tags: , , , , , , ,