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Palhaçaria feminista
resgata pioneirismo
inviabilizado de Zazel
Crítica: A Mulher Bala
Por Ivana Moura

A Mulher Bala, espetáculo de palhaçaria que se apresenta em locais alternativos. Foto: Marcos Pastich/PCR

Serafim, o atrapalhado ajudante da palhaça Funúncia. Foto: Marcos Pastich/PCR

A Mulher Bala, da artista Priscila Senegalho, não precisa de canhão real para atingir o alvo: mira na memória coletiva e dispara verdades deliberadamente obscurecidas. Este espetáculo opera um duplo movimento -biográfico e político – que reconecta a linhagem da palhaçaria feminina e feminista. Sem grandes aparatos, mas com a contundência da inteligência cômica, o trabalho faz do corpo, da presença e do jogo com a plateia o seu arsenal principal.

Mas vamos voltar no tempo, para situar melhor essa resposta artística da palhaçaria feminina e feminista. 

Londres, abril de 1877. No Royal Aquarium, a jovem de 14 anos Rosa Matilda Richter, conhecida artisticamente como Zazel ou La Petite Lulu, protagonizava um evento que marcaria definitivamente o entretenimento mundial. Tornava-se a primeira pessoa a executar o que se convencionou chamar Bala Humana – feito que a projetaria numa carreira internacional marcada por acidentes recorrentes e dores crônicas.

O número, idealizado por William Leonard Hunt (O Grande Farini), baseava-se numa patente de 1871 para “um aparelho para projetar pessoas no ar”. O mecanismo empregava um sistema engenhoso de molas de borracha e ar comprimido, impulsionando Zazel entre 6 e 21 metros até uma rede de proteção. Cada apresentação gerava atenção massiva, incluindo figuras ilustres à época, fascinadas pela combinação de perigo e ousadia.

Entretanto, por trás dessa imagem icônica desenrolava-se uma trama de exploração empresarial. Farini, promotor reconhecidamente inescrupuloso que supostamente já havia explorado outras pessoas vulneráveis – incluindo uma criança indochinesa com hipertricose exibida como “elo perdido” -, enxergou na adolescente apenas oportunidade lucrativa. Apesar da resistência do pai Ernst, preocupado com a segurança da filha, Farini conseguiu convencer a mãe a assinar o contrato. Estabelecia-se assim um negócio que objetificava o corpo feminino (Zazel saltava semidespida para caber no canhão), sonegava pagamentos e submetia a jovem artista a riscos constantes – trajetória que culminaria em acidentes graves e afastamento precoce dos palcos.

Progressivamente, o pioneirismo de Zazel foi sendo invisibilizado através de uma operação sistemática de apropriação narrativa. O rebatismo posterior como “Homem Bala” exemplifica de forma cristalina como estruturas patriarcais manipulam memórias coletivas, diluindo contribuições femininas.

Priscila Senegalho aposta na palhaçaria feminista como resgate, autoria e subversão. Foto: Marcos Pastich/PCR

O espetáculo A Mulher Bala integra um movimento mais amplo de reescrita do arquivo cômico e circense protagonizado por artistas mulheres no Brasil contemporâneo. Essa reescrita articula duas frentes simultâneas: reatribui crédito e protagonismo a criadoras cujas contribuições foram desmemoriadas, subalternizadas ou folclorizadas; paralelamente, atualiza a linguagem da palhaçaria para expor e desmontar, através do humor, as estruturas de poder que perpetraram esse apagamento.

A retomada do número da Bala Humana por Priscila Senegalho em 2022, a partir de sua palhaça Funúncia, persegue essa reparação simbólica. No entanto, a dramaturgia poderia ter manuseado com maior incisividade a dimensão de exploração empresarial que atravessou a trajetória da artista homenageada, aprofundando a análise crítica sobre as condições de trabalho feminino no entretenimento oitocentista em diálogo com os nossos dias.

Desenvolvida por Priscila Senegalho e Margarita Palhaça, a arquitetura dramatúrgica alterna episódios sobre Zazel convertidos em contação cômica, jogos de risco controlado nos quais Funúncia convoca o público como rede e testemunha, além de refrões físicos que operam como “gatilhos de memória”. O clímax de substituição materializa-se por imaginação compartilhada – não é a artista quem “voa”, mas a plateia que se desloca imaginativamente, reescrevendo a cena original. Observa-se uma economia deliberada de texto falado. O discurso aparece, mas cede espaço ao acontecimento físico. 

A despretensão como estratégia cênica. Foto: Marcos Pastich/PCR

Karine Lops concebe uma cenografia composta por elementos essenciais, como pequena tenda circense, tapete ornamentado, réplica de canhão, escada e retrato de Rosa Matilda Richter. A simplicidade busca destacar a performance central, reforçando a conexão com a memória de Zazel através de referências aos circos itinerantes tradicionais.

Sonoramente, Aline Machado e Fernando Ventureli desenvolvem trilha e sonoplastia que funcionam como “agulhas” costurando expectativa e sublinhando viradas dramatúrgicas. A despretensão deliberada que marca dramaturgia, cenografia e interpretação valoriza a espontaneidade, gerando atmosfera intimista que aproxima o público da narrativa central.

Demonstrando domínio do tempo cômico, precisão no manejo da pausa e qualidade de escuta do espaço público, a palhaça Funúncia transforma imprevistos em matéria dramatúrgica. Sua técnica de “subir” e “baixar” o risco através do olhar, da corporeidade e de repetições calculadas estabelece cumplicidade.

Renato Paio, por sua vez, atua como presença-ponte entre cena e plateia, funcionando simultaneamente como cúmplice e contraponto que amplifica situações sem competir pelo foco. Encarna alternadamente o técnico “guardião do protocolo” e o cúmplice que oferece suporte para que a palhaça construa seu voo. Essa ambivalência traduz a tensão central do trabalho, ou seja a presença masculina como apoio, jamais como controle.

Espetáculo foi apresentado no Recife nos parques da Tamarineira e da Macaxeira. Foto: Marcos Pastich/PCR

Durante as apresentações no 24º Festival Recife do Teatro Nacional (29 e 30 de novembro de 2025), em diferentes espaços recifenses evidenciaram como a territorialidade molda a experiência artística, revelando tanto potencialidades quanto obstáculos concretos da descentralização cultural.

No Parque da Tamarineira, o público espontâneo integrou-se à plateia, beneficiando-se do ambiente parcialmente sombreado pela vegetação. Mesmo na ausência de infraestrutura básica como cadeiras – lacuna que gerou reclamações pontuais -, o perfil arejado e o fluxo intenso de transeuntes criaram dinâmica de adesão significativa e participação infantil .

Diversamente, o Parque da Macaxeira apresentou desafios mais severos: sol intenso, escassez de sombras e ausência de estrutura básica. Tornou-se necessário que a produtora-anja – profissional contratada pelo festival para acompanhar os grupos nos deslocamentos e outras ações – convocasse espectadores através de microfone e persuasão direta, abordando jogadores de futebol e transeuntes para formar plateia mínima. Simultaneamente, a concorrência sonora com ruídos locais e a falta de amplificação adequada comprometeram momentos-chave do trabalho.

A descentralização cultural efetiva requer divulgação comunitária antecipada e territorializada, infraestrutura mínima (sombreamento, energia, amplificação), articulação prévia com lideranças e equipamentos locais, estratégias adaptadas às especificidades territoriais, equipe de mobilização capacitada e planos de contingência para adversidades climáticas e logísticas.

Trata-se de protocolos que a organização do Festival Recife do Teatro Nacional domina tecnicamente, tendo os implementado com êxito em outras edições e locais. Todavia, no caso específico dessas apresentações de A Mulher Bala, tais procedimentos não foram adequadamente executados. 

Mas vamos encerrar esse texto falando da força artística de A Mulher Bala, sua qualidade interpretativa que transforma uma homenagem em dispositivo crítico. O trabalho celebra Zazel, questiona as estruturas que a invisibilizaram, criando um espelho entre passado e presente que ilumina continuidades incômodas na exploração do trabalho artístico feminino.

Funúncia reivindica lugar em uma linhagem de mulheres que sempre dirigiram a lógica do jogo, mesmo quando suas assinaturas foram apagadas dos registros oficiais. Essa continuidade não é romântica, mas política – reconhece que palhaças, acrobatas, equilibristas e inventoras de números sempre existiram, desenvolvendo técnicas, criando linguagens e definindo estéticas que depois, muitas vezes, foram creditadas a outros.

A peça afirma que as mulheres nunca foram apenas munição do show; sempre foram quem mira, dispara e assina o trajeto. O que mudou não foi sua capacidade criativa, mas sua possibilidade de reivindicar autoria. A Mulher Bala é, nesse sentido, um ato de justiça poética que devolve à memória coletiva uma verdade deliberadamente obscurecida: por trás de cada “homem bala” havia, muito provavelmente, uma mulher que criou o número, correu o risco e pagou o preço – físico, emocional e simbólico – da inovação.

** A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Imagem da apresentação no Parque da Macaxeira. Foto: Marcos Pastich/PCR

Ficha técnica:
A Mulher Bala
Roteiro: Priscila Senegalho e Margarita Palhaça
Atuação: Palhaça Funúncia e Renato Paio
Cenário e figurino: Karine Lops
Trilha sonora: Aline Machado
Sonoplastia: Fernando Ventureli
Foto e vídeo: Daniel Felipe
Produção: Trupe do Fuxico

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