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Auricéia Fraga faz 50 anos
de teatro e ganha homenagem
de festival recifense

Auricéia Fraga narra suas próprias história no novo trabalho, Não Se Conta o Tempo da Paixão

A atriz com o diretor Rodrigo Dourado e a equipe do projeto

Nos tempos do Vivencial. Foto: Arquivo

No dia 12 de março de 2026, quando Olinda e Recife completam mais um aniversário, a atriz pernambucana Maria Auricéia Vasconcelos Fraga celebrará seus 80 anos de vida. Quase simultaneamente, ela marca meio século de uma carreira teatral que começou “por acaso” e se transformou em paixão duradoura. Hoje, ela é uma das homenageadas (a outra é Augusta Ferraz) do 24º Festival Recife do Teatro Nacional, que ocorre de 20 a 30 de novembro em diversos espaços da capital pernambucana.

A honraria chega em um momento especial. Após uma década dedicada principalmente ao audiovisual, Auricéia retorna aos palcos com Não Se Conta o Tempo da Paixão, espetáculo sob direção de Rodrigo Dourado que apresenta nesta sexta-feira sua abertura de processo. É um retorno às origens para uma artista que nunca imaginou seguir a carreira artística.

Um Começo Inesperado – Em 1972, recém-chegada do Rio de Janeiro, Auricéia soube de um curso na Escola de Belas Artes e decidiu experimentar, apenas para ocupar o tempo enquanto buscava uma colocação no mercado de trabalho. “Eu não pretendia ser atriz, nunca imaginei ser atriz, mas adorei a convivência com as pessoas da classe”, relembra. O professor Isaac Gondim Filho logo identificou seu talento, considerando-a “um sucesso do curso” já na primeira prova pública.

O teatro profissional veio em 1976, quando foi convidada para integrar A Lição, de Ionesco, dirigida por Antonio Cadengue. Era o início de uma trajetória que a levaria pelos principais palcos do Recife e por grupos fundamentais da cena teatral pernambucana.

O Vivencial e a Transgressão Necessária – Foi através de Guilherme Coelho, que assistiu a A Liçãoe a convidou para integrar o Vivencial, que Auricéia encontrou sua verdadeira escola teatral. O grupo, conhecido por sua irreverência, pautas libertárias e crítica social afiada, ofereceu exatamente o que ela precisava: “Eu vinha de uma família, de uma criação muito repressora. Eu estava com vontade de me soltar.”

No Vivencial, onde permaneceu por quatro anos e quatro espetáculos, Auricéia viveu alguns dos momentos mais marcantes de sua formação. Guilherme Coelho respeitava suas limitações – ela deixava claro que “nua não ficava” – mas a conduzia gradualmente a superar barreiras, tanto artísticas quanto pessoais. Era ali que se discutia política, questões de gênero e se experimentava com a linguagem cênica de forma inovadora.

Os anos de formação de Auricéia coincidiram com o período mais duro da ditadura militar. Em Sobrados e Mocambos, de Hermilo Borba Filho, dirigido por Guilherme Coelho, ela experimentou diretamente os efeitos do autoritarismo. Quando uma cena foi cortada pela censura, Guilherme encontrou uma solução criativa: “A gente faz de mímica.” Nos dias em que não havia censor presente, o elenco era avisado: “Não tem censura hoje não. Aí a gente solta o texto todinho.”

Essa experiência marcou profundamente a atriz, que admirava a capacidade do diretor de “driblar aquela violência” através da arte.

Desafios e Transformações – Ao longo de quase cinco décadas, Auricéia enfrentou desafios que testaram seus limites como intérprete. Em Esta Noite se Improvisa, de Pirandello, precisou provar que merecia manter o papel de protagonista quando o grupo questionou sua ausência durante os ensaios devido ao acidente do marido. Voltou “afiada” e conquistou o prêmio de melhor atriz.

Mas foi em O Mistério das Figuras de Barro, de Osman Lins, com direção na época do jovem  Rodrigo Dourado que encontrou seu maior desafio: interpretar sozinha dois homens e uma mulher. A experiência foi tão intensa que até seu cachorro estranhou quando ela experimentava a voz do personagem Claraval.

Do Palco às Telas – A partir dos anos 2000, Auricéia expandiu sua atuação para o cinema e a televisão, participando de produções como O Baile Perfumado (1996), Árido Movie (2003), Tatuagem (2013) e mais recentemente Agreste (2024) e Chabadabada (2024). Apesar do sucesso nas telas, sua paixão permanece no teatro: “Quando eu estou no cinema eu me jogo também, mas o meu chamego é o teatro mesmo.”

Não Se Conta o Tempo da Paixão nasceu durante a pandemia, quando Auricéia começou a escrever memórias de sua infância no Engenho Águas Finas. O que eram “historinhas pequenininhas” se transformou, com o incentivo de Quiercles Santana e sua companheira Bruna, em material teatral. Para se sentir mais confortável com a exposição, criou a narradora que conta a história de Maria – seu primeiro nome.

O espetáculo retrata uma época em que “o pai decidia comida, decidia moda, decidia com quem a gente se relacionava, onde estudava”, mas também celebra os sonhos e a capacidade de superação. É um retorno não apenas aos palcos, mas às suas raízes mais profundas.

Reconhecimento e Futuro – A homenagem do Festival Recife do Teatro Nacional representa o reconhecimento de uma trajetória singular. “Foi a maior surpresa que eu tive”, confessa Auricéia, que há dez anos não subia aos palcos. “Você ter o reconhecimento do seu trabalho é uma coisa muito importante, muito boa.”

Aos 79 anos, com a energia de quem ainda tem muito a oferecer, Auricéia Fraga prova que a paixão pelo teatro não envelhece. Sua carreira é um testemunho da capacidade transformadora da arte e da importância de se manter fiel aos próprios sonhos, mesmo quando eles chegam por acaso e se revelam o destino de uma vida inteira.

Entrevista: Auricéia Fraga

A alegria é cultivada em todos os momentos da vida da artista

Gostaria que você falasse sobre a homenagem do 24º Festival Recife do Teatro Nacional. O que significa para você? Como é que você recebe, em seu coração, essa celebração feita pela sua cidade?

Auricéia: Olha, foi a maior surpresa que eu tive, porque inclusive eu já estou há bastante tempo sem fazer espetáculo, fazendo cinema, filme, série, essas coisas assim. Alguma matéria publicitária, mas o palco há 10 anos que eu fiz um espetáculo. E, de repente, no ano que eu resolvi voltar a fazer, arriscar a fazer, aconteceu isso. Ser homenageada, meu Deus, é demais, porque… 50 anos, quase, né? De que eu tô atuando. E a gente não tem como não ficar feliz, surpresa. E, assim, acho que é um reconhecimento. Eu fico sem graça, até, para… Oh, Deus do céu! Parece, assim, uma coisa totalmente inesperada, mas eu fico muito feliz, muito feliz. E isso é, assim, você ter o reconhecimento do seu trabalho, é uma coisa muito importante, muito boa. Eu acho que não podia estar mais feliz.

Qual sua motivação para iniciar essa trajetória no teatro, na década de 70, e o que é que continua a alimentar essa paixão pelo teatro, pela arte da representação?

Auricéia: Começar no teatro foi uma coisa meio por acaso. Eu tinha chegado do Rio de Janeiro, aí soube que estava tendo esse curso na Escola Belas Artes, aí eu disse, por enquanto não estou trabalhando, vou experimentar. Fui e gostei, mas eu não pretendia ser atriz, nunca imaginei ser atriz, mas adorei a convivência com as pessoas da classe, adorei, começou a abrir minha cabeça só a convivência com eles, a experiência com também professores ótimos.

Aí, aconteceu que no meio do ano tinha uma prova pública e no final do ano tinha outra. No meio do ano eu fiz a prova pública e Isaac Gondim Filho, que era meu professor e uma pessoa muito reconhecida, ele considerou que eu tinha sido um sucesso no curso. Me surpreendi. Isso foi em 1972, na Escola Belas Artes. Aí eu toquei a minha vida, fui trabalhar. Fui trabalhar na Fundarpe. Sou a primeira funcionária da Fundarpe.

Em 1976, Zé Mario Austragésilo estava querendo montar A Lição de Ionesco. Ele já tinha três personagens. Aí, Rosário (Austragésilo), que tinha feito o curso comigo, me chamou. (Antonio) Cadengue dirigia. Pensei duas vezes, aceitei. E tive a sorte de pegar um assistente de direção como Beto Diniz, né? Maravilhoso. Aí eu me joguei.

Qual foi a influência do Grupo Vivencial, porque ele tinha uma linguagem diferente dos outros grupos que atuavam aqui, uma linguagem mais transgressora. Como era isso? Como era essa história do Vivencial na sua vida?

Auricéia: Quando eu frequentei o Vivencial era meu amor, era tão grande, porque eu gostava que eles reuniam o elenco, conversava sobre o texto. Sempre eu achava linda aquela coisa de transgredir, de não fazer… Eu precisava de muita transgressão, porque eu vinha de uma família, de uma criação muito repressora. Aí, quando eu cheguei do Rio para cá… Eu passei dois anos lá na casa da irmã minha, que era muito conservadora também, então eu tava com a vontade de me soltar, sabe?

Guilherme (Coelho) é uma maravilha. E ele sabia que eu tinha muita dificuldade, que era muito tímida. Quando falava que a Suzana (Costa) ficava de vedete, a outra ficava de vedete, eu ficava bem à vontade de dizer:  nua não fico. Guilherme me levava, com muito jeito, respeitando muito as minhas limitações, minhas dificuldades, mas, ao mesmo tempo, com um jeitinho, ele ia conseguindo que eu avançasse um pouco em várias questões.

Com relação à repressão, porque Sobrados e Mocambos teve também uma coisa bem repressora, né? Como era? O que você percebia desse momento histórico no Brasil, dessa repressão?

Auricéia: Eu vi aquilo tudo, mas eu ficava boba como eles lidavam, conseguiam falar as coisas deles, dizer. Ou usar daquela forma, mesmo com a repressão. Porque nós, naquela época, tinha censura que ficava com um texto e outro examinando a encenação no ensaio geral. Para cortar o texto ou propriamente a encenação.

Aí teve uma cena, que eram várias cenas de Sobrado, que eram os enrabados. A censura, quando viu, cortou. Aí a gente veio para Guilherme. “Pô, a gente vai cortar esse pedaço?!”. Guilherme disse, não, não, a gente faz de mímica.

E como era essa cena?

Auricéia: Era muito palavrão, era muito em cima da coisa do poder, sabe? Da violência do poder.

Quando a censura não tiver, solta o texto todo, dizia Guilherme. E a gente fazia isso. Ficava alguém da portaria para avisar. Ah, não tem censura hoje não, aí a gente solta o texto todinho. E eu achava aquilo uma delícia, sabe? Que ele arrumava formas de, sabe, de driblar aquela violência.

Dessa sua carreira longeva, de quase 50 anos, quais foram os principais desafios e aprendizados que você guarda?

Auricéia: Foram vários. Eu gostava dos desafios, apesar de ser muito insegura. Quando eu fiz Esta Noite se Improvisa, que eu fazia a Mommina, a protagonista, o grupo começou a cobrar, achando que eu devia não ficar nesse personagem porque eu estava muito ausente (cuidando do marido, que tinha sofrido um a acidente de carro) e o ensaio tinha que correr. Aí eu cheguei e conversei com eles e com Cadengue, só para dizer, “você pode me tirar, se eu não der conta. Eu volto daqui a tantos dias, quando voltar, se eu não tiver com as marcas, acompanhar as marcas e o texto, aí você pode dar o meu personagem”. Aí quando eu voltei, eu cheguei afiada, aí não tiveram moral para tirar a personagem. E eu também ganhei o prêmio, melhor atriz.

Mas de todos eu acho que foi O Mistério das Figuras de Barro. Minha filha, quando eu vi o texto, já, o pessoal chegava dizendo assim, olha, ninguém quer fazer essa peça, dá para Auricéia. Quando eu vi qual era o desafio… a sugestão de Osman Lins era que fosse feito por uma mulher, que fizesse os dois homens e a mulher, que arrumasse um indumentário que não identificasse bem. Aí eu, tipo, vou fazer dois homens e uma mulher. Fiz…

Me conte sobre o espetáculo Não Se Conta o Tempo da Paixão. Por que você decidiu voltar ao teatro com esse trabalho?

Auricéia: Na pandemia eu comecei a escrever, assim, vindo lembranças do Engenho, da minha vida no Engenho, me criei do Engenho até a adolescência. Engenho Águas Finas. Eu estava fazendo essas historinhas, historinhas pequenininhas, aí eu mandei para algumas pessoas, aí algumas diziam, manda editar.

Eu estava pensando em montar Senhor Diretor de Lígia Fagundes Teles. Eu estava há dez anos tentando montar a Lígia. Aí chegou aqui, veio o Quiercles Santana com a companheira dele, aí eu com esse meu jeito, falando, contando as coisas, aí ele disse “mas deve ser caro esse direito autoral dela. Aí Bruna disse, “e porque tu não faz, tu tem uma vida tão rica…” Ela achou que minha vida tinha muita coisa dessas, que dava para fazer uma peça.

Para eu não ficar muito desconfortável, vou botar o nome da narradora, a que vai contar a história de Maria. Porque, na realidade, meu nome é Maria também. Maria Auricéia. Então ela vai ser Maria. E Maria conta a história da vida dela.

Depois da abertura do processo do espetáculo Não Se Conta o Tempo da Paixão, quais são os seus planos? Tem já alguns outros projetos?

Auricéia: A gente está dando o nome como se fosse um ensaio aberto. Porque não está pronto. Não está completo. Mas ficaria muito extenso se botasse tudo agora. Muito extenso. Aí ninguém aguentava não. Monólogo extenso ninguém aguenta. Aí eu disse, não, vamos partir esse negócio.

Mas eu pretendo, se Deus quiser, tendo saúde, eu pretendo continuar. Ou com esse texto ou com outro. Quem sabe A Lição” de Lígia, que eu amo de paixão o texto. Que o Guilherme adorou e queria dirigir, mas ele foi para Brasília. 

Auricéia Fraga em Um rito de mães, rosas e sangue. Foto: Tuca Siqueira

AURICÉIA FRAGA – Principais Trabalhos
DRT/PE: 602

TEATRO – Destaques da Carreira (1976-2016)
Década de 1970 – Formação e Vivencial:

A Lição (Ionesco, 1976) – Direção: Antonio Cadengue
Sobrados e Mocambos (Hermilo Borba Filho, 1977) – Direção: Guilherme Coelho
Esta Noite se Improvisa (Pirandello, 1977) – Direção: Antonio Cadengue
Prêmio Melhor Atriz
Viúva, porém Honesta (Nelson Rodrigues, 1977) – Direção: Antonio Cadengue
Prêmio Melhor Atriz
Repúblicas Independentes, Darling (1978) – Direção: Guilherme Coelho
Notícias Tropicais (1980) – Direção: Guilherme Coelho

Trabalhos Posteriores de Destaque:

O Mistério das Figuras de Barro (Osman Lins, 2003-2004) – Direção: Rodrigo Dourado
Playdog (2009) – Direção: Rafael Barreiros, Rodrigo Cunha e Alisson Castro
Prêmio Melhor Atriz – Janeiro de Grandes Espetáculos 2010
Um Rito de Mães Rosas e Sangue (Federico Garcia Lorca, 2010) – Direção: Cláudio Lira  Circulação Nacional

CINEMA E TELEVISÃO – Principais Produções

Longas-metragens:
O Baile Perfumado (1996) – Direção: Lírio Ferreira e Paulo Caldas
Árido Movie (2003) – Direção: Lírio Ferreira
Tatuagem (2013) – Direção: Hilton Lacerda
O Rio (2025, em montagem) – Direção: Wislam Esmeraldo e Hilton Lacerda

Séries e TV:
Lama dos Dias (2018) – Direção: Hilton Lacerda
Chão de Estrelas (2021) – Direção: Hilton Lacerda
Agreste (2024) – Direção: Alice Gouveia – Canal Cine Brasil
Chabadabada (2024) – Canal Brasil

RETORNO AOS PALCOS (2025)
Não Se Conta o Tempo da Paixão – Direção: Rodrigo Dourado
Abertura de processo – 24º Festival Recife do Teatro Nacional (novembro de 2025)

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