Arquivo da tag: Martha Medeiros

Entre o humor e a melancolia:
vozes femininas no limite
Crítica: Tudo que eu queria te dizer
por Ivana Moura

Ana Beatriz Nogueira fez duas apresentações no 24º Festival Recife do Teatro Nacional. Foto: Marcos Pastich / PCR

“Sorte sua não ter envelhecido, é a única vantagem de a morte ter lhe buscado aos 58. Você não precisou passar pelo constrangimento nessa terra de apressados”. A octogenária Clô, escrevendo ao marido morto há duas décadas, também confessa: “Não é de propósito que eu ando devagar, que eu esqueço minhas falas”. Ambas as frases expõem com ironia melancólica uma realidade brasileira urgente: o etarismo – discriminação de idade que se intensifica em uma nação em rápido envelhecimento populacional.

Estas e outras passagens provocam risos na plateia, cumprindo exatamente a função social que Henri Bergson identificou: o humor como mecanismo coletivo de reflexão sobre nossas próprias intolerâncias. Particularmente relevante para mulheres, que enfrentam dupla discriminação – etária e de gênero.

Tudo que eu queria te dizer expõe realidades ficcionalizadas de forma deliberadamente breve e pouco esmiuçada, seguindo a proposta do projeto. Uma comédia construída a partir de relatos rápidos. Durante o 24º Festival Recife do Teatro Nacional, Ana Beatriz Nogueira deu vida a seis personagens criadas por Martha Medeiros: Renata abandona o casamento para reencontrar um beijo apaixonado da adolescência; Andressa confronta a esposa de seu ex-amante após dois anos de relacionamento extraconjugal; Clô compartilha com o marido falecido as limitações impostas pela velhice; Vanda busca orientação esotérica após revelações de uma cartomante; Dirce expõe ao analista preconceitos ocultos e inconfessáveis que muita gente mantém em segredo, mas ela escreve sem filtros, arrancando gargalhadas da plateia; Clarissa enfrenta dilema ético ao se apaixonar pela cliente.

No palco do Teatro do Parque, Ana Beatriz estabelece cumplicidade instantânea com o público. Trajando calça e camisa pretas, ela conta que a pessoa que tossia nos bastidores era ela, pois está com virose contraída no Rio de Janeiro, solicitando compreensão para eventuais episódios de tosse – e sugerindo, divertidamente, que a plateia aproveitasse para tossir em coro. Tal estratégia transforma potencial desconforto em pacto cênico.

Posteriormente, ela apresenta prólogo explicando a gênese do projeto de adaptar as cartas fictícias de Martha Medeiros. Inclusive lê correspondência enviada pela escritora, traçando ponte entre realidade e ficção. Quando as luzes se apagam, inicia-se a metamorfose interpretativa.

Virtuosismo Interpretativo de Ana Beatriz Nogueira. Foto de Marcos Pastich/PCR.

Martha Medeiros é mestra em criar material que ressoa imediatamente com o público de classe média urbana. Especialista em transformar crises existenciais cotidianas em entretenimento reflexivo, a escritora gaúcha domina a arte de temperar separações, traições e questionamentos identitários com inteligência humorística.

Ana Beatriz montou esta adaptação teatral em parceria com Victor Garcia Peralta em 2010. A experiência de 15 anos com o material reforça uma encenação que privilegia a palavra desde sua origem. Comunicação direta constitui a estratégia cênica fundamental.

Com trajetória que inclui desde o Urso de Prata berlinense (1987) pelo filme Vera até muitos sucessos televisivos, Ana Beatriz exibe domínio técnico excepcional. Seu registro vocal distintivo – que seleciona palavras específicas e constrói frases com precisão matemática – converte ritmo em instrumento cômico de alta eficácia.

Transformações sutis de postura e entonação criam personalidades distintas. Renata manifesta determinação ao comunicar sua fuga amorosa. Andressa Sá envia uma carta para Ester, fazendo da humilhação um poder destrutivo, usando a verdade como lâmina para retalhar tanto o microhomem que a rejeitou quanto a esposa; uma espécie de vingança para tentar reconquistar algum senso de dignidade perdida. Vanda explora gestualidade cômica, que passa por religiões e credos. O momento interpretativo mais impactante surge com a octogenária Clô: curvatura corporal, voz frágil e movimentos delicadamente trêmulos que fundem melancolia e ironia ao refletir sobre envelhecimento, em construção cênica evidenciando o brilho interpretativo de Ana Beatriz.

Cenário despojado e figurino neutro delegam à imaginação do público a tarefa de vestir as personagens, gerando cumplicidade colaborativa entre palco e plateia.

Atriz levou ao palco “loucuras domesticadas que ocasionalmente se rebelam”. Foto de Marcos Pastich/PCR.

A inteligência cômica de Medeiros explora variados contextos sem condescendência. Risos emergem da identificação imediata – espectadores reconhecem situações familiares, convertendo constrangimentos pessoais em alívio coletivo. Embora breves e sem densidade psicológica, as histórias expõem questões através de sagacidade que promove alívio emocional.

Mantendo tom consistentemente “alto astral”, a peça dialoga com classe média que se reconhece nestas “loucuras domesticadas que ocasionalmente se rebelam”. Cada protagonista gera empatia espontânea, diverte e relativiza problemas mediante riso compartilhado.

Victor Garcia Peralta assina direção que reconhece parâmetros e potencialidades do material. Nessa perspectiva, o despojamento cênico surge como opção estética consciente, concentrando toda energia dramática na atuação da artista. Complementarmente, o ritmo calibrado à estrutura epistolar permite que cada carta se desenvolva em sua particularidade, respeitando o tempo interno de cada missiva.

A trilha sonora destaca a parceria Juliano Holanda e Zélia Duncan em Vou Gritar Seu Nome e conecta narrativas. A iluminação assinala transições entre personagens sutilmente. O conjunto de recursos serve integralmente à simplicidade almejada.

Tudo que eu queria te dizer opera dentro de seus propósitos. Um teatro que honra seus compromissos com o entretenimento, que sinaliza questões sem ambição sociológica profunda. Ana Beatriz constrói performance de alta qualidade, oferecendo o prazer de assistir a uma intérprete em pleno domínio de seu ofício. Ao tocar em temas pertinentes como etarismo, relações contemporâneas e dilemas de classe média, a montagem prioriza superfície bem-humorada sobre densidade dramática, com força que reside na comunicação precisa com público que procura entretenimento inteligente. Suas qualidades se destacam: performance virtuosística, texto espirituoso, direção eficiente e diálogo certeiro com audiência-alvo. Um teatro que cumpre integralmente o prometido: diversão que faz pensar.

FICHA TÉCNICA

Texto original: Martha Medeiros
Direção: Victor Garcia Peralta
Elenco: Ana Beatriz Nogueira
Luz: Paulo César Medeiros
Figurino e cenário: Victor Garcia Peralta e Ana Beatriz Nogueira
Produção: Trocadilhos 1000 Prod Art Ltda
Realização: Ana Beatriz Nogueira
Assessoria de Imprensa: Dobbs Scarpa

Postado com as tags: , , , ,

Uma comédia que quase ri da nossa insanidade
Crítica: Simples Assim

Georgiana Góes e Julia Lemmertz em Simples assim. Foto: Victor Hugo Ceccato.

Uma falha no sistema de microfones nos primeiros minutos da apresentação quase comprometeu a estreia de Simples Assim no Teatro Luiz Mendonça, Parque Dona Lindu, no Recife, na última sexta-feira – ironia não planejada para um espetáculo que justamente discute nossa dependência tecnológica. A peça, que ainda cumpre duas sessões no fim de semana, abre com uma cena alegórica: um âncora de telejornal (Pedroca Monteiro) que, ao noticiar uma sequência infindável de tragédias – “militares disparam mais de 80 tiros contra um carro com família”, fogo no parquinho, corrupção,  – gradualmente esmorece até confessar: “Cheguei no meu limite”. O quadro sintetiza a proposta do espetáculo: retratar com humor leve as pequenas insanidades de nosso cotidiano. Essa cena toda, que deveria chegar por cima para provocar a indignação e risos, perdeu a força devido ao problema de microfones, o que dificultou a recepção desses primeiro quadro.

Baseada nas crônicas de Martha Medeiros e adaptada pela própria autora em parceria com Rosane Lima, a montagem apresenta dez cenas inspiradas nas coletâneas Quem Diria que Viver Iria Dar Nisso e Simples Assim. As crônicas, conhecidas por seu tom leve e ocasionalmente divertido, não trazem revelações surpreendentes, mas capturam pequenos dramas cotidianos com precisão. O elenco, composto por Julia Lemmertz, Georgiana Góes e Pedroca Monteiro, transita por diferentes personagens que se interconectam através de uma engenhosa estrutura circular onde cada cena compartilha um personagem com a seguinte, criando uma teia narrativa que conecta diferentes neuroses atuais.

O apresentador de telejornal exausto pelas notícias trágicas surta no ar e deixa contrariada sua produtora, que vai ajudar uma amiga que diz que vai viajar para outro planeta; esta amiga abandona o amante executivo viciado em tecnologia; este homem, que só consegue dialogar através das telas, é marido da mulher que, sobrecarregada pela rotina, contrata uma dublê para substituí-la em compromissos familiares; e assim segue a cadeia de personagens, conectando cada quadro ao seguinte numa estrutura que espelha o ciclo de desencontros.

Não se trata de uma comédia de reflexões profundas, mas sim um retrato bem-humorado do cotidiano da classe média branca brasileira, com seus problemas e privilégios específicos. No entanto, as cenas sobre nossa relação com a tecnologia, o isolamento social e a superficialidade das relações contemporâneas acabam se tornando, ironicamente, superficiais demais. A expectativa era que a cena como um todo tivesse mais humor e provocasse mais risos, como prometido nos anúncios, o que não se concretiza durante boa parte da apresentação.

Veterano nos textos de Martha Medeiros, Ernesto Piccolo apresenta sua terceira montagem da autora com uma direção conservadora. Conhecido por trabalhos mais ousados em outras produções, o diretor aqui opta por uma abordagem que contradiz a irreverência sugerida pelo tema. Seu trabalho oscila entre lampejos de inspiração e longos trechos de marasmo cênico que drenam a energia cômica. Quando aposta na interação direta com o público ou em soluções mais arriscadas, a comédia respira; quando se acomoda em escolhas mais convencionais, a dinâmica desacelera. As transições entre os quadros, embora tecnicamente funcionais, carecem de efeito cômico, principalmente na primeira parte do espetáculo especialmente morosa.

As crônicas de Martha, que cintilam na intimidade entre leitor e página com sua precisão do trivial, enfrentam no palco o desafio da adaptação literária: transformar o que é sussurro confidencial em voz projetada. O que no papel convida à reflexão solitária e sorrisos de reconhecimento exigiria no teatro uma tradução cênica mais provocativa, capaz de recriar coletivamente aquela faísca de identificação que a autora alcança tão naturalmente na solidão da leitura.

Os figurinos de Helena Araújo são um dos pontos altos da produção, com peças coloridas e versáteis que auxiliam na rápida transformação dos atores entre personagens. A iluminação de Felício Mafra cria ambientes distintos com sutileza, conseguindo delimitar espaços dentro do palco aberto sem quebrar o ritmo das transições. A cenografia tem poucos elementos no palco além de algumas cadeiras e um grande telão ao fundo. Este telão projeta cenas de notícias e, por vezes, imagens dos próprios atores em diferentes situações.

Pedroca Monteiro e Julia Lemmertz. Foto: Victor Hugo Ceccato

Há um jogo interessante entre as duas atrizes e o ator em cena, que transitam entre diferentes personagens com alguma versatilidade. Esta energia entre eles, contudo, nem sempre consegue contagiar o público. Quando isso acontece, principalmente na segunda metade do espetáculo, a peça ganha a leveza prometida.

Julia Lemmertz leva pro palco a sofisticação e a credibilidade conquistadas em décadas de atuação na TV e no cinema. Conhecida por personagens de maior densidade dramática, a atriz segura o cômico com elegância. Um de seus momentos mais desafiadores acontece quando desce à plateia para interpretar uma mulher com “nomofobia” – o medo irracional de ficar sem celular. Lemmertz estabelece um vínculo especial com os espectadores, mesclando a familiaridade de seu rosto conhecido à capacidade de capturar, com delicadeza, as pequenas neuroses do nosso tempo.

A versatilidade é a marca do trabalho de Georgiana Góes nesta montagem. Quando encarna a personificação da Morte – vestida de branco, – a atriz cria um dos raros momentos de tensão genuína do espetáculo. Enquanto esquadrinha a plateia procurando “alguém”, Góes provoca um riso nervoso, quase desconfortável, transformando o quadro em uma experiência emocionalmente ambígua.

Já Pedroca Monteiro inicia com uma energia inconsistente que afeta o ritmo inicial do espetáculo. O que parece insegurança revela-se, aos poucos, como uma escolha para alguns personagens mais exaltados. O ator encontra seu melhor momento na pele do já mencionado apresentador de telejornal que, diante da enxurrada de notícias trágicas, tem um colapso existencial em pleno ar, mas que depois retorna como uma versão transformada de si mesmo.

Plateia: termômetro de uma comédia que hesita

A recepção do público funciona como um infalível indicador da eficácia de uma comédia, e aqui os sinais foram preocupantes: silêncio predominante na primeira metade, com risos escassos e educados. O espetáculo só ganha vivacidade quando os atores começam a improvisar, soltar “cacos” sobre locais, personalidades e situações específicas da cidade, provocando finalmente as gargalhadas espontâneas.

Simples Assim, que iniciou sua trajetória em São Paulo em setembro de 2019 e agora percorre o Brasil, oferece 90 minutos de uma pausa agradável em nosso frenético cotidiano. Com classificação indicativa de 12 anos, a montagem cumpre seu papel ao retratar com honestidade e alguns momentos de graça as neuroses e ansiedades de uma classe média que se vê cada vez mais desconectada apesar (ou por causa) de toda sua hiperconexão digital. E oferece um espelho onde parte do público consegue se reconhecer – às vezes com um sorriso, outras com um desconfortável aceno de cabeça.

Pedroca Monteiro e Julia Lemmertz em cena de acerto de contas. Foto: Victor Hugo Ceccato

Ficha Técnica
Texto e adaptação: Martha Medeiros e Rosane Lima.
Direção Artística: Ernesto Piccolo.
Elenco: Julia Lemmertz, Georgiana Góes e Pedroca Monteiro.
Produção e idealização: Gustavo Nunes.
Cenografia: Clivia Cohen.
Projeções Cênicas: Rico Vilarouca / Renato Vilarouca.
Figurino: Helena Araújo e Alfaiataria Conrado.
Luz: Felício Mafra.
Trilha Sonora: Rodrigo Penna.
Visagismo: Uirandê Holanda.
Produtora de Elenco: Yolanda Rodrigues.
Preparação Corporal: Cristina Moura.
Designer
Fotos: Victor Hugo Ceccato.

 

 

 

 

Postado com as tags: , , , , , , , ,