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Hello, stranger
Crítica de Apenas o fim do mundo

Depois de anos de ausência, Luiz volta à casa da Mãe e de Suzana. Foto: Humberto Araújo

– Boa noite! Entre, seja bem-vindo. Mas não espere ficar muito à vontade. Você pode ser surpreendido com a exposição de uma intimidade que não esperava, desconcertante. Os cumprimentos iniciais aparentam uma suposta formalidade, um distanciamento comedido: “Estou bem. E você, como é que vai você?”. Há, no entanto, palavras que aguardam por serem ditas. Faz anos que estão sendo maturadas. Talvez sejam faladas, num “domingo, evidentemente, ou ainda, ao longo de quase um ano inteiro”, naquele reencontro familiar na casa da Mãe e de Suzana.

O espetáculo Apenas o fim do mundo, do grupo pernambucano Magiluth, é um convite para que sejamos testemunhas. Sabe aquela vontade de, às vezes, se transformar numa mosquinha para presenciar como foi aquela conversa, o que teria sido dito, como a pessoa reagiu, o clima que se instaurou? Na montagem do Magiluth, o compartilhamento da intimidade é consentido e, assim como a mosquinha, neste jogo somos voyeurs, observadores do que acontece à nossa revelia, como se não estivéssemos ali, não fôssemos notados, algo incomum na trajetória do grupo em relação aos espectadores.

Suzana (Bruno Parmera) e Luiz (Pedro Wagner). Foto: Annelize Tozetto

Estamos à porta e somos chamados a entrar e a acompanhar a volta de Luiz, um escritor, filho mais velho da família, que saiu de casa há bastante tempo. A Mãe e os irmãos, Antonio e Suzana, permaneceram. Há também Catarina, esposa de Antonio, que o cunhado só viria a conhecer nessa visita. Luiz nunca tinha voltado, mas agora havia um motivo concreto para o retorno. O escritor queria anunciar que, “mais tarde, no ano seguinte – era a minha vez de morrer”.

Ao longo dos anos, o primogênito, que “nunca esquecia as datas importantes das nossas vidas, os aniversários, fossem quais fossem”, mandava “pequenos bilhetes”, lacônicos, que vinham “sempre escritos em cartões postais”: “Eu estou bem e espero que vocês também estejam bem”. Uma frase que não gera nem ao menos uma expectativa por ser respondida.

Há, portanto, um hiato complexo que abarca dimensões múltiplas que se entrecruzam –tempo, relações, desejos, frustrações, ausências, acusações – para ser descortinado neste reencontro. O texto do francês Jean-Luc Lagarce, dramaturgo e diretor, escrito em Berlim em 1990, e montado pela primeira vez em 1999, quatro anos depois de sua morte, escolhe conceder o foco a cada personagem por vez, promovendo mergulhos verticais em suas subjetividades. Quando decidem falar, em poucos minutos, vislumbramos o que dói, como dói, por que dói. São conversas que se estabelecem geralmente como solilóquios, já que uma das pessoas, Luiz, se coloca como alguém que escuta o que a outra tem a dizer. São discursos longos, com diminutas pausas, quase que para confirmar que o interlocutor ainda está ali, disponível à escuta. Cada fala é um jorro, um fluxo de pensamentos que nos enovela.

Em Curitiba, as sessões de Apenas o fim do mundo foram no Palácio Garibaldi. Foto: Humberto Araújo

Quanto a nós, espectadores, somos desafiados a estar presentes na escuta para não perdermos uma palavra, uma digressão, um instante de hesitação, enquanto esses personagens se esvaziam ao menos do discurso que carregaram por tanto tempo. Terão como resposta um “sorriso” ou “duas ou três palavras”. “E eles se lembrarão, mais tarde, a seguir, na sequência, à noite adormecendo, eles se lembrarão apenas desse sorriso, é a única coisa que vão querer guardar de você, e é esse sorriso que eles vão discutir e discutir de novo”.

Nessa torrente, há um passado idealizado que, diante do correr dos anos, nem sabemos se aconteceu exatamente daquele modo, se era mesmo feliz. É assim, por exemplo, na cena da mãe contando o passeio que a família fazia aos domingos. Quem não tem uma avó, um pai, uma tia, que reconta a mesma história seguidas vezes, como se de alguma forma a lembrança fosse capaz de se materializar? Até que essa lembrança vira melancolia pelo que foi e já não é mais, “como é que podemos saber como tudo desaparece”.

Em consonância com a idealização do passado, a ausência desemboca no desconhecimento e na imaginação. Depois de tantos anos, aquelas pessoas não se conhecem mais, não sabem mais quem são e quais serão suas reações diante do inesperado da realidade do outro. “Ele não muda, eu imaginava ele exatamente assim, você não muda, ele não muda, é assim que eu o imagino, ele não muda, o Luiz”.

São família, são estranhos entre si. Assim como na balada Hello stranger (coloque aí para ouvir no seu tocador de música!) de 1961, da norte-americana Barbara Lewis, que faz parte da trilha sonora, sempre especial nas peças do Magiluth, mas aqui em particular, pelos achados que são dramaturgia. “Hello, stranger. It seems so good to see you back again. How long has it been? Oh, seems like a mighty long time” ou, em português: “Olá, estranho. É tão bom vê-lo novamente. Quanto tempo se passou? Oh, parece ter passado um longo tempo”.

A relação familiar se organiza em torno da matriarca, a única personagem que não tem nome, descrita apenas como a Mãe, como se a sua subjetividade estivesse restrita ao papel materno, encarado de modo coletivo. A quem serve a máxima ‘mãe é tudo igual’? Aqui a Mãe medeia os conflitos, prevê o que vai acontecer, mas não se coloca como autoridade, deixando entrever a sua fragilidade diante do que se desenrola ao redor. “Eles vão querer te explicar e é provável que o façam, e sem jeito, o que eu quero dizer, porque eles vão ter medo do pouco tempo que você dá para eles, do pouco tempo que vocês vão passar juntos”. Uma das cenas mais tocantes do espetáculo é justamente a conversa entre a Mãe e Luiz, quando ela tece uma radiografia precisa da realidade íntima daqueles personagens, dos seus anseios e frustrações. “O que eles querem, o que eles queriam, talvez, é que você os encorajasse – não foi sempre isso que faltou para eles, que a gente os encoraje?”.

A conversa entre a Mãe (Erivaldo Oliveira) e Luiz (Pedro Wagner). Foto Humberto Araújo

Talvez uma das principais qualidades do texto de Lagarce, que é brilhante e aqui o adjetivo cabe sem receios, é que o dramaturgo consegue experimentar a oralidade ao limite, encadeando longos textos de cunho pessoal, íntimo, psicológico. As frases são entrecortadas por tempos verbais distintos, pensamentos que vão se justapondo, que podem ser interrompidos e retomados instantes adiante, logo que eu terminar de falar uma coisinha que lembrei e quero dizer e talvez faça sentido ser dita aqui, assim como se dá numa situação cotidiana. Mas quando isso é levado ao teatro, à efemeridade da experiência única, esse texto se mantém e ganha proporção pela consistência e qualidade para ser compreendido em sua integralidade, proposta desta dramaturgia especificamente.

E esse foi o principal desafio com o qual o Magiluth se deparou: o rigor na enunciação que o texto demanda. O cuidado com as palavras, com os seus significados, sua ordem de encadeamento, com o modo e o tempo no qual elas precisam ser ditas. Foram poucas as montagens nas quais o Magiluth se dedicou a um texto dramático previamente escrito, levando-o tal e qual como escrito ao palco: O canto de Gregório, de 2011, texto de Paulo Santoro, e Viúva, porém honesta, de 2012, em comemoração ao centenário de Nelson Rodrigues. Mas, em ambas, especialmente em Viúva, porém honesta, o registro da encenação, que era o do humor, o do sarcasmo, da ironia, não demandava exatamente rigor na enunciação da dramaturgia.

Nas outras montagens do repertório, textos dramáticos foram utilizados como disparadores para o processo artístico, como em Dinamarca, de 2018, releitura de Hamlet, e Estudo nº1: morte e vida, a partir de Morte e vida severina, ou os atores criaram as dramaturgias a partir de outras referências, mas o trabalho coletivo na sala de ensaio, contemplando inclusive propostas e desejos individuais, sempre foi mais determinante na elaboração dos textos, escritos em processo e, talvez por isso, mais livres de amarras.

Apenas o fim do mundo estreou em abril de 2019, depois de quase um ano de momentos imersivos, entrecortados por meses de distância, de residências artísticas com Giovana Soar, tradutora do texto do francês para o português, atriz à época da companhia brasileira de teatro, primeiro grupo a montar a dramaturgia no país, no ano de 2006; e com Luiz Fernando Marques Lubi, diretor parceiro do grupo desde Aquilo que o meu olhar guardou para você, em 2012, um dos artistas que mais conhece e se alinha com a dinâmica do grupo. Depois de Apenas o fim do mundo, Lubi assinou ainda a direção de Estudo nº1: morte e vida, que estreou em 2022.

Esses momentos com os dois amigos e artistas colaboradores, que assinam conjuntamente a direção da peça, geralmente eram marcados por oficinas e resultavam na apresentação de ensaios ao público, um processo recorrente no Magiluth: a abertura dos trabalhos aos espectadores antes que eles possam ser tidos como “prontos”. No Sesc Avenida Paulista, por exemplo, dias antes da estreia, os oficineiros puderam acompanhar o trabalho de mesa dos atores, de leitura do texto, de entendimento do modo de enunciação que a dramaturgia solicitava.

Esse encontro entre o grupo, Giovana Soar e Lubi era o que o Magiluth precisava para erguer a lindeza que é Apenas o fim do mundo, em toda sua humanidade, delicadeza e proximidade com o espectador. Veio de Giovana Soar o rigor no entendimento e na enunciação do texto de Lagarce e o convite ao espaço íntimo proposto por essas palavras. E de Lubi, com quem o grupo tem a intimidade dos anos de trabalho conjunto, vieram a experiência e a sagacidade com montagens site-specific, amealhada desde a criação do XIX, grupo do qual Lubi é um dos fundadores.

Neste tipo de espetáculo, as montagens são criadas ou se adaptam a lugares que não necessariamente são locais tradicionais de exibição de peças, como teatros. Essas obras dependem da interação com os espaços para que possam alcançar suas potências. No caso do Magiluth, a ideia é que o espectador experiencie esse reencontro entre Luiz e sua família no espaço proposto pela dramaturgia, uma casa. Parte da intimidade que a encenação propõe com o espectador vem do espaço cênico: vamos andando pelos cômodos da casa, acompanhando como se dá cada conversa. No entanto, mesmo assistindo a tudo de muito perto, estando nas bordas da cena, somos voyeurs (a mosquinha, lembra?), não participamos da cena, e por isso o distanciamento, como se não estivéssemos ali.

Em 2019, a peça estreou no 13º e no 14º andares do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo. Apesar de toda a engenhosidade da divisão de cômodos e da cenografia, da beleza da vista da Paulista, mesmo que a encenação fluísse, havia uma compressão. Eram espaços às vezes apertados demais para muitas pessoas assistirem a cenas longas. E era preciso imaginação para visualizar uma casa. No Recife, ainda em 2019, o espetáculo foi apresentado no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) e o próprio grupo diz que aquele espaço era o ideal para a peça e que a cena da chegada de Luiz ganhava outra dimensão tendo como vista a Rua da Aurora, o Rio Capibaribe e, ao fundo, a Rua do Sol.

Em Curitiba, a peça ocupou o Palácio Garibaldi, um lindo casarão cuja construção começou em 1887, hoje conhecido como “a casa da cultura italiana em Curitiba”. Ali, o espaço abraçou a encenação, mesmo com todos os deslocamentos necessários, estávamos numa casa, que se não tinha uma geladeira amarela como nas versões anteriores, ostentava um fusca azul na garagem que serviu para uma discussão icônica que terminou com Catarina, a cunhada, sozinha dentro do carro, com uma impagável cara de paisagem. Fato é que o espaço nos fez viver com mais verticalidade a encenação.

Outra questão que pode ser levada em conta quando pensamos nas diferenças entre a estreia, em 2019, e a participação no Festival de Curitiba, em 2024, com seis sessões esgotadas, é o próprio tempo de maturação da peça. Ainda em 2019, o grupo precisou lidar com as especificidades do espetáculo, que dificultam sua circulação, e depois com a parada obrigatória imposta pela covid-19 a partir de março de 2020. Inclusive, naquele ano, eles estariam no Festival de Curitiba com o espetáculo.

Vivemos o fim do mundo, em escala global. Se, de algum modo, a epidemia de Aids que vitimou Lagarce e que mataria Luiz, “alguns meses mais tarde, um ano no máximo”, era o fim do mundo, a covid-19 levou o fim a níveis que não conhecíamos. E os garotos que estavam na faculdade e que criaram um grupo em 2004, depois de uma atividade para uma disciplina no curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), se tornaram homens, alguns são pais, viveram a pandemia e o medo do fim em múltiplas escalas. As dores sobre as quais o texto fala encontraram outros corpos em 2024.

É fundamental dizer que o Magiluth é um grupo formado por homens e que essa é sempre uma questão no momento de escolher um projeto. Em Apenas o fim do mundo, estão em cena Pedro Wagner (que não fazia a peça desde 2019; na temporada que o grupo cumpriu no ano passado no Mamam, ele foi substituído por Edjalma Freitas), Mário Sérgio Cabral, Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Lucas Torres, o único integrante que não possui personagem na peça, assina a assistência de direção, faz todo o apoio técnico da montagem e ainda faz uma participação, entrando em cena para tocar bateria.

Três dos atores interpretam personagens femininas: Giordano Castro é a cunhada, Catarina; Erivaldo Oliveira é a Mãe; Bruno Parmera é a irmã, Suzana. Mário Sérgio Cabral é o irmão, Antonio; e Pedro Wagner interpreta Luiz. A meu ver, a opção sempre perigosa de ter homens interpretando mulheres deu certo porque eles não fazem caricaturas das figuras femininas ou exageram nos gestos e nos trejeitos das personagens.

Giordano Castro é a cunhada, Catarina. Foto Humberto Araújo

Mário Sérgio Cabral é Antonio, o irmão. Foto: Annelize Tozetto

Nesta montagem, o elenco do Magiluth, como grupo, alcança maturidade na atuação. Pedro Wagner tem o domínio do ofício, faz um Luiz cheio de hesitações, que lida com a sua inabilidade para se contrapor às acusações de abandono, mostrando isso ao espectador a partir da expressão silenciosa do seu corpo. Antonio, de Mário Sérgio Cabral, “há muito tempo, é o que eu acho, eu me tornei um homem cansado”, foi se deixando endurecer pelas responsabilidades, e nos traz nuances entre a raiva e o medo de se permitir amar este irmão. O seu último monólogo é um descarrego, cheio de força e humanidade.

Giordano Castro faz uma Catarina comedida em gestos, de língua afiada e intervenções certeiras que se expressam no corpo. Erivaldo Oliveira é o que talvez mais se apoie no gestual na construção dessa Mãe que lê a todos, que lida com as imperfeições de cada um, inclusive com as suas próprias, e que mesmo assim é afeto. “Ela, ela me acaricia uma única vez o rosto, lentamente, como para me explicar que ela me perdoa não sei bem quais crimes”. E Bruno Parmera é uma Suzana eufórica com o reencontro com Luiz, que nos deixa tontos, mas que tem respiro para se auto traduzir ao irmão.

A maturidade, que é da própria trajetória como artistas, traz o autoconhecimento do que eles gostam e se permitem experimentar em cena. E, por isso, está lá, no meio da peça, uma banda de rock em decibéis altíssimos, como que para mostrar que o espírito, em si, permanece o mesmo de Viúva, porém honesta. Naquela tensão discursiva, é uma catarse que nos surpreende e captura.

De repente, uma banda de rock. Foto: Annelize Tozetto

Ao comemorar 20 anos em 2024, o Magiluth envereda na vivência dessa família com muito mais propriedade. Eles próprios são família, possuem laços, estão criando os filhos nessa comunidade que é um grupo de teatro. E isso é poderoso, na arte e na vida. Quando se tratam, na vida corrente, por “minhas queridas irmãs”, uma herança tchekhoviana que restou de O ano em que sonhamos perigosamente, o espetáculo que talvez seja o mais emblemático para a continuidade do grupo, revelam o afeto construído ao longo de duas décadas que permite projeção de futuro.

O espetáculo Apenas o fim do mundo foi apresentado nos dias 3, 4 e 5 de abril de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Ficha técnica:
Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Assistente de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner
Técnico: Lucas Torres
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi e Luiz Fernando Marques Lubi
Design gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Apenas o fim do mundo em Curitiba. Foto: Humberto Araújo

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Manifesto Transpofágico em Paris
e o Festival Everybody 2023

Renata Carvalho apresentou espetáculo Manifesto Transpofágico em Paris, . Foto: Rodrigo Fidelis

Duas sessões esgotadas. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

Poderia começar esse texto de muitas maneiras. A partir da recepção calorosa do público francês ao Manifesto Transpofágico. Com foco no crescimento da atriz Renata Carvalho desde a estreia da peça em 2019. Pelo que estava fora da cena (e nem tanto), do recrudescimento de atos antidemocráticos no Brasil ao recente horizonte humanitário com a volta de Lula. Por avanços na luta trans, que repercutem no palco. Existem caminhos e escolhas, sem garantias no caso do meu texto.

No trecho de um dos vídeos (um dos documentos) do espetáculo, uma frase ficou ecoando na minha cabeça nessa temporada parisiense, talvez porque sintetize a extensão e profundidade da violência contra os corpos trans: “cortei um braço… é pouco; corte o outro… é pouco, corte o pescoço”. É um depoimento de Bartô a Goulart de Andrade e Andrea de Maio, uma reportagem sobre a “Casa da Bartô”, de 1985, em que ela fala sobre aplicação de silicone industrial em travestis e como utilizava automutilação com gilete para defesa quando eram presas por abuso de poder policial.

Manifesto Transpofágico conta breves histórias de violências. Mesmo com cenas tocantes e outras engraçadas, a peça pinta um Brasil agressivo e ameaçador contra corpos trans, de ontem e de hoje. E expõe o quanto o mundo é atrozmente transfóbico. São e serão necessárias mais mudanças e garantias de direitos.

Solo com dramaturgia de Renata Carvalho e direção de Lubi. Foto: Rodrigo Fidelis

O Brasil se “acabava” no Carnaval 2023, num quase desespero de alegria depois da suspensão da festa pela pandemia e do alívio de se livrar do traste-ruim. Em Paris, pouco afeita aos delírios carnavalescos, no Carreau do Temple, Renata Carvalho, atriz trans militante e transpóloga conduzia sua performance solo e ensinava / alumiava umas coisinhas sobre os malefícios da cisnormatividade, do patriarcado, da exclusão histórica, da hipersexualização, da perseguição e brutalidade contra às pessoas trans.

As duas apresentações do Manifesto Transpofágico, faladas em português com legendas em francês, em sessões lotadas nos dias 20 e 21 de fevereiro, fizeram parte do Festival Everybody 2023.

Renata Carvalho traça um breve panorama da construção social e das representações de mulheres trans a partir da sua própria experiência. De menino saco-roxo, passando pela rejeição dos pais e a transformação do seu próprio corpo, uma invenção à base de desejos inabaláveis e silicone industrial.

Sozinha no palco, usando apenas uma calcinha justa, ela relata a guerra entre seu corpo e os olhares curiosos, inquisidores, desejosos, questionadores, a sempre querer arrancar pedaços simbólicos. Quase no escuro, sua voz anuncia um ajuste, enquanto convida a plateia para a sessão de transpofagia, a mirar – com a ideia de comer e digerir – seu corpo trans. “Meu corpo estava lá antes de mim, quando eu não tinha pedido nada. Ele é mais velho do que eu”, confessa, para destacar que “Hoje resolvi me vestir na minha própria pele”.

Essa pele que ela habita é esquadrinhada pela dramaturgia da iluminação, que retira o rosto dessa moldura. O corpo de Renata está recortado por luz e sombra. Os letreiros luminosos “gritam” obsessivamente a palavra “TRAVESTI”, que saltam do azul ao rosa choque, entre outras cores. As histórias são pesadas, de crueldades e humilhações. Mas ao falar de si, a atriz amplia seu foco para outras vivências semelhantes, para sua ancestralidade trans.

Corpo-desejo que persegue a essência do ser e não aceita as jaulas sociais. Estar em desacordo é ir à luta para se tornar protagonista de sua própria existência. A artista relata esses fatos em palavras simples, em episódios pontuais e compreensíveis, com franqueza, honestidade e coragem.

Corporeidade-história repleta de significações entregue praticamente em estado cru para o escrutínio da plateia. Mas há um preço para isso, cobrado mais sutilmente na primeira parte do espetáculo e mais diretamente na segunda, da consciência da transfobia de cada uma que contempla sua estampa.

Foto: Rodrigo Fidelis

Na peça as 3 uiaras de sp city, a dramaturga Ave Terrena Alves avisa, a quem interessar, que as personagens Miella e Cínthia devem ser interpretadas por atrizes travestis / mulheres trans, pelo menos até o ano de 2047. O texto é dedicado às travestis / mulheres trans de ontem e hoje, que lutam para existir.

Cito esse drama musical da Ave Terrena (que esteve em cartaz no CCSP em 2018) porque episódios da perseguição do Estado a homossexuais, travestis e prostitutas nos idos dos anos de 1970 e 1980 são retrabalhados artisticamente na peça. E também pela luta contra o transfake. Renata Carvalho é uma das fundadoras do Movimento Nacional de Artistas Trans- MONART, onde foi criado o Manifesto Representatividade Trans, com o objetivo de garantir que personagens transgénero sejam interpretados por artistas transgénero.

Algo avançou nesse terreno, mas é uma luta constante. Desde a infância é preciso enfrentar uma sociedade transfóbica, que faz um jogo canalha de glamourizar, capitalizar narrativas e até matar real ou simbolicamente. No Brasil isso ganha uma proporção gigantesca, já que o país lidera vergonhosamente o percentual de assassinatos, 40% do total mundial de pessoas trans. Há também o número alto de suicídios, por rejeição da família, dificuldade de sobrevivência, insegurança de toda ordem.

Para existir é preciso que as histórias não sejam apagadas, que elas sejam contadas e recontadas. E Renata vale-se de arquivos documentais para fazer uma leitura crítica da trajetória cultural das travestis brasileiras. Sua transcestralidade que reconhece muitas que vieram antes, como Rogéria, Roberta Close e muitas outras.

O lugar social que ela ocupa é fortalecido por sua atuação como transpóloga, uma rama da antropologia que ela mesma criou, um estudo científico, teórico, etnográfico, epistemológico e empírico sobre sua “Transcestralidade” – uma antropologia trans, uma travesti que estuda o corpo travesti/trans, sua historicidade, transcestralidade, identidade, memória com foco nas artes.

Seu teatro é vivo e pulsante, humanamente imperfeito, com cargas da sujeira feito o rock, longe de qualquer ideia de alta cultura, beleza e bom gosto cis. Suas peças, como suas pesquisas, são atravessadas por reflexões e vivências da vida que reverberam no palco. Isso desde o questionamento da identidade de gênero em 2012, com espetáculo Em mim vive outra. Passando pela complexa e tumultuada atuação em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, um texto de Jo Clifford, onde interpretava Jesus de Nazaré. Como o Evangelho veio a projeção, reconhecimento, mas também proibições, censuras, violações de direitos, ações judiciais, ataques, ameaças de espancamento e morte, linchamentos virtuais e a manifestação brutal de ódio contra o corpo travesti.

Vânia Munhoz fez a tradução. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

A segunda parte do espetáculo é na plateia. É o jogo direto com o espectador, performance ardente e cada sessão é única, depende das respostas, das disponibilidades dos depoimentos. Renata Carvalho pergunta sobre a relação estreita daquele grupo com o corpo, grau de conhecimento e afetividade, se existe alguém na família, como é a relação.

Ao fazer uma enquete com a plateia para saber quantos homens cis já ficaram publicamente com uma pessoa trans, a atriz desenvolve uma sequência lógica para dar o xeque-mate na fragilidade cisgênera.  Do medo de perda de potência, do receio de virar o que não é e outras geleias na subjetividade.

Essa segunda parte da peça  Manifesto Transpofágico é sempre surpreendente, é uma energia viva a questionar as violências da genitalização do gênero. Como já pontuou Dodi Leal, uma artista gênero-desobediente, a definição de mulheridade não é vaginal; a definição de masculinidade não é fálica.

Nas turnês ao exterior, a produção da corpo Rastreado procura convidar uma travesti do local. No caso de Paris a tradução ficou por conta de Vânia Vênus Munhoz Pereira.

Aqui vale um parêntese: Vânia Munhoz é uma brasileira radicada na França há 34 anos. Parte de sua história está no livro Ricardo e Vânia, de Chico Felitti, publicado pela editora Todavia. Ricardo, que virou uma lenda urbana e circulava pela região das ruas Augusta e Paulista, no centro de São Paulo, trabalhava na distribuição de panfletos, era conhecido como Fofão da Augusta. O destino dessas duas figuras se encontrou nos anos 1980, quando elxs moraram juntes e aplicaram silicone na face. Ricardo morreu em 2017 depois de falar por videoconferência com o amor da sua vida. Interessados em saber mais dessa história, o livro está disponível nas livrarias e já tem os direitos comprados para virar filme.

Nessa tradução ao vivo, a atriz pergunta ao público e depois dá sua explicação de alguns termos, como cisgênero (“Se você não sabe o que isso significa, com certeza você é!” ) ou “passável”. Na primeira apresentação, incentivados pela artista, algumas pessoas deram seu depoimento da experiência de ter alguém trans na família.

Na sessão do segundo dia alguém respondeu que havia diferenças na acepção da palavra travesti no francês e em português. Bom de qualquer forma o público que acompanhou o festival é não desavisado. Se o médio francês já é bem sabido, o que opta por ir a um evento LGBTQIA+ já está bem-informado dos estudos de gênero No primeiro dia, por exemplo, Renata conheceu uma jovem pesquisadora que faz mestrado sobre o seu trabalho cênico.

Os franceses não toparam passar a mão no corpo da Renata. A atriz reforçou seu discurso sobre a consciência de que o corpo das mulheres, das trans, das travestis, o cabelos dos negros, a barriga das gravidas não são mercadorias para se pegar e apalpar num impulso, sem autorização.

Os parisienses estão numa classe mais adiantada. Além disso, ao que parece, os franceses são treinados desde a infância a serem palestrantes, eles têm argumentação para tudo. E os registros do preconceito na gramática, nos hábitos dos países de primeiro para outros subdesenvolvidos mudam. Sutilezas e ironias. Sigamos.

Renata Carvalho é uma presença perturbadora, a atravessar os rumores da língua, a dizer de condições a que foram/são submetidos corpos com o seu pela sociedade. Um solo para rodar o mundo.

Com Renata Carvalho
Luz: Wagner Antônio
Direção: Luiz Fernando Marques
Vídeo: Cecília Lucchesi
Tradução: Vânia Vênus Munhoz Pereira
Operação de luz: Juliana Augusta
Produção: Corpo Rastreado

 

Onironauta de Tânia Carvalho. Foto: Laurent Philippe / Divulgação

A segunda edição do Festival Everybody durou cinco dias, de 17 a 21 de fevereiro de 2023, no Le Carreau du Temple, em Paris, um evento que juntou propostas artísticas que pensam e movimentam o corpo, questionando estereótipos de várias naturezas. Além dos espetáculos, o Everybody contou com aulas de dança e de bem-estar, instalações de arte contemporânea e encontros para públicos variados.

Além do Manifesto Transpofágico, destaco três espetáculos. A ousadia estética de Onironauta de Tânia Carvalho, a alegria festiva em Happy Hype, dos Ouinch Ouinch x Mulah e a delicadeza de uma dança de cuidado em Formes de vie, do coreografo Éric Minh Cuong Castaing.

A coreógrafa e bailarina portuguesa Tânia Carvalho é internacionalmente conhecida por suas ousadias e desassossego com os muros erguidos entre linguagens artísticas. Quando quer, flerta e namora com a música, artes visuais e cinema. Título do trabalho de Tânia Carvalho, Onironauta (do grego óneiros, sonho + náutés, navegante) é uma pessoa que pode permanecer em um estado de consciência enquanto sonha. Dessa maneira, é capaz de se mover dentro dos sonhos como se fosse a própria realidade, conhecido como “sonho lúcido”.

Em cena, dois pianos tocados por Tânia e o pianista Andriucha e mais sete bailarinos. Esse estado dos sonhos tem muito de surreal, imagens de abismos e visão do paraíso. Navegamos entre luz e a escuridão. por um percurso estranho, desenhos desconcertantes. A provocação estética está embaralhada de vocabulário clássico e outras danças identificáveis ou não um tsunami de movimentos que desafiam as ideias de beleza. Há uma repetição bem-humorada, quebras e invasão estridente dos pianos. Sonhos estranhos fantasmagóricos e cheios de fúria.

Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH Foto Ivana Moura

Mulah comanda o som eletrizante de músicas afro e hip-hop na peça Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH, que se instalou no grande salão do ginásio. No plateia crianças, jovens famílias inteiras. No palco, o grupo a exercita a liberdade dos corpos que se encontram e se agarram na pista, que se abraçam e fazem coreografias insinuantes. Um chamamento de uma energia coletiva, que se transformou em festa no final.

Equipe do espetáculo Forma(s) de vida Foto: Ivana Moura

O trabalho assinado pelo designer, coreógrafo, diretor Eric Minh Cuong Castaing desenvolve um sensível processo entre o mundo do cuidado e o mundo da arte. Forma(s) de vida, uma peça em que corpos com problemas de mobilidade e corpos performáticos se combinam para realizar uma dança própria.

Kamal Messelleka, um ex-boxeador, que perdeu a força das pernas após um derrame, e Elise Argaud, que sofre da doença de Parkinson, tem a memória de seus corpos reativada. No palco estão Yumiko Funaya, Aloun Marchal, Nans Pierson.

As projeções de vídeos das caminhadas na natureza, ou dos exercícios de fortalecimento expõem as dificuldades, as dores, a insistência. E brota um poder estético nesse tentar, e falhar, e tentar de novo, um desenho, um arco, uma pulsação.

Com o auxílio dos coreógrafos como próteses humanas, o ex-boxeador e a bailarina ampliam os movimentos, criam uma poética, expressam um jeito de estar no mundo. O tempo é expandido na repetição, no ralentar do gesto. A força de criar arte se apresenta na esteira de um profundo respeito à vida.
 

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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