Arquivo da tag: Luiz Davi Gonçalves

O que pode o teatro diante das
violências contra as mulheres?*
Crítica: Ella
Por Pollyanna Diniz*

Ella, espetáculo de Ana Oliveira, de Manaus, participou do FRTN. Foto: Marcos Pastich/PCR

Tarde de quinta-feira, 28 de novembro de 2025. Na página inicial do portal Globo.com, um dos principais sites jornalísticos do Brasil, entre as manchetes sobre política e os acontecimentos do país, duas notícias disputavam espaço no quadrante mais importante, o de maior visualização da página. As chamadas eram as seguintes: “Quantas calorias por dia devemos perder para emagrecer?” e “Qual o melhor tipo de cardio para emagrecer?”. Na noite anterior, a atriz e palhaça Ana Oliveira, de Manaus, apresentou o solo Ella, no Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro Hermilo Borba Filho, na programação do OFFRec. O espetáculo foi criado em 2014 e, ao longo de mais de dez anos, a sua temática – a violência de gênero e as opressões estéticas a que são submetidas as mulheres – não perdeu relevância. Apostaria que as mulheres da minha geração, de 40 e poucos anos, não verão essa discussão ser destronada. Talvez as nossas filhas, quem sabe, as nossas netas.

A palhaça Ella nos recebeu na porta da sala de espetáculos. Entramos no teatro e as arquibancadas do Hermilo estavam dispostas uma de frente para a outra; a cena se desenrola no corredor, entre as arquibancadas. No chão, vários recortes de revistas femininas com matérias que falavam basicamente de emagrecimento, exercícios físicos, procedimentos estéticos. No fundo do corredor, no meio, um varal, com o mesmo tipo de material, e uma televisão, que ficou exibindo basicamente vídeos de exercícios físicos.

Ana Oliveira é uma mulher jovem, branca, magra, de cabelos lisos. Mesmo que o checklist do padrão de beleza seja propositadamente inalcançável, se houvesse uma régua, ela estaria mais perto do que longe desse padrão. Ainda assim, vítima.

Naomi Wolf, autora de O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres, diz que “A beleza é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro. Como qualquer sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna, no mundo ocidental, consiste no último melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino”. E que o mito da beleza “diz respeito às instituições masculinas e ao poder institucional dos homens”. Estamos falando do controle de corpos de mulheres, do neoliberalismo que lucra com isso, do quanto perdemos tempo, dinheiro e energia de vida – que poderiam ser empregados noutros objetivos – nesse enquadramento que faz com que os nossos corpos sejam encarados por nós mesmas como inimigos.

A discussão pode ser muito potente e disruptiva, mas a construção da palhaça Ella não sustenta ou instiga um aprofundamento do debate. Ella é uma palhaça alegre, ingênua, que nos faz rir com suas bobices, que quase não fala, balbucia poucas palavras, e se expressa por meio de seus gestos e ações.

Numa das revistas, encontra a receita de um picolé de alface – alface e gelo são então distribuídos para algumas pessoas da plateia; a disposição espacial do público faz com que todos vejam as reações uns dos outros diante da verdura e do gelo. Noutra ação nessa primeira parte do espetáculo, Ella decide fazer exercícios físicos. Num dos momentos mais interessantes e engraçados desta apresentação única da peça, a palhaça pediu ajuda a uma pessoa da plateia para ler na revista, ou inventar, quais exercícios ela deveria fazer.

Primeira parte do espetáculo é dedicada às opressões estéticas. Foto: Marcos Pastich/PCR

O pedido foi feito à Nínive Caldas, também atriz, que assumiu a brincadeira como carrasca, arrancando risadas da plateia. Se é pra ilustrar como o sistema é opressor, vamos fazer isso direito: Ella andou de joelhos de um lado para o outro do palco e terminou a cena perguntando se não havia ninguém mais boazinha para assumir a tarefa. O público se deleitou.

No segundo momento do espetáculo, Ella chama um homem da plateia para participar da cena. Brinca com a mulher que acompanhava o homem, pede autorização, diz que a partir daquele momento não haverá espaço para desistências. Nesse trecho, o que vemos é a palhaça tentando conquistar esse homem, numa construção idealizada do amor romântico. A participação do homem é longa e ele entrou na brincadeira: puxou a cadeira para que ela se sentasse na hora do jantar – e então ela se levanta quando ele vai se sentar, na repetição cômica da ação – comeu alface, dançou com a palhaça e simulou até um selinho.

Nessa elaboração proposta pelo espetáculo, é como se o primeiro passo para ser “bem-sucedida” na tarefa de conseguir um amor romântico fosse tentar atender ao padrão de beleza. A psicóloga Valeska Zanello, autora do livro A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações propõe a metáfora da prateleira, explicitada pelo título do livro: seguindo a lógica de uma prateleira de supermercado, algumas mulheres têm mais chances de serem preteridas nas relações afetivas por suas características físicas. Ainda assim, independente de em qual lugar na prateleira nós estejamos, a lógica é a da opressão e da sujeição: “A prateleira elege os homens como avaliadores físicos e morais das mulheres. Então, não existe um lugar bom, existem os menos ruins. As mulheres vão envelhecer, engordar, e ainda vão estar sob o julgo de serem avaliadas e escolhidas por homens”, explica Valeska Zanello.

Na primeira cena, da opressão estética, mesmo que não haja aprofundamentos, a dramaturgia criada pelas revistas dispostas no cenário, pelo alface e pelo gelo distribuídos ao público, pelo exercício “extremo” proposto pela espectadora, leva o espectador a perceber a violência simbólica a que nós mulheres somos submetidas. Não é o caso da cena seguinte, que idealiza uma relação romântica, quase uma comédia romântica, uma cena “fofa”, “bonitinha”, sem nenhuma problematização sobre a importância do amor romântico na manutenção da subjugação das mulheres no patriarcado. Claro que essa dramaturgia depende muito da participação do homem escolhido na plateia e de como ele vai se comportar durante a interação. Mesmo que dependa do acaso dessa participação, a contradição se estabelece: ainda que o homem seja gentil, o que seria o aceitável, a questão está na busca por esse lugar de ser desejável e amada por um homem como objetivo principal da mulher.

Na terceira parte do espetáculo, há uma quebra brusca. Enquanto as outras duas cenas se desenrolam com tempo de respiro para que as ações aconteçam, a terceira é um corte seco. Quando o primeiro homem convidado pela palhaça volta ao seu lugar na plateia, um segundo homem se levanta e pede para dançar com ela. A dança – e os abusos – acontecem muito rapidamente. O homem usa a dança para tocar o corpo da palhaça, que se esquiva, até que a violência escala: um estupro é reproduzido, com o homem em cima da palhaça, simulando inclusive os movimentos sexuais. A cena é repugnante e acontece ali, muito próxima dos espectadores. O agressor em cena. As luzes, que já estavam baixas durante a violência, apagam completamente. O espetáculo termina assim.

Neste momento, a história perde o seu eixo: deixa de ser sobre essa palhaça, a pressão estética, a busca pelo amor romântico, e passa a ser sobre a violência sexual que foi cometida. E o teatro se transforma na praça pública de exibição da violência contra a mulher – como se a própria sociedade já não ostentasse essa violência suficientemente. A discussão sobre o tema é muito importante em todos os âmbitos da nossa sociedade, mas, como artistas, uma das perguntas que poderiam ser feitas é: como a arte pode colaborar no intuito de fortalecer o debate sem que as nossas obras se tornem espaços de reprodução simbólica de violência contra as mulheres? Como discutir violência sem cometer mais violência no ato de narrar?  Como a elaboração estética – na construção da dramaturgia, da cena e de todos os seus elementos – podem nos levar a ampliar perspectivas?

Última parte do espetáculo tem quebra brusca. Foto: Marcos Pastich/PCR

O teatro protagonizado pela palhaça Ella é o teatro do olho no olho, das pequenas plateias, da cumplicidade de quem acompanha um espetáculo acontecer muito próximo fisicamente. A violência da reprodução de uma cena de estupro tem uma dimensão muito diferente neste teatro do que na televisão ou no cinema, por exemplo.

Muito recentemente, a novela Dona de mim, da autora Rosane Svartman, exibida no horário das 19h, na Rede Globo, trouxe o enredo de um estupro. Foram capítulos dedicados especialmente à violência sofrida pela personagem Kami, interpretada pela atriz Giovanna Lancellotti. As cenas foram brutais – mas houve tempo para que aquela história se estabelecesse, para que a reverberação dessa violência fosse mostrada na vida da personagem, para que fossem mostradas cenas da ida à delegacia, da tentativa de identificação do estuprador, da importância do atendimento psicológico, dos julgamentos rápidos – que roupa ela estava usando?, do acolhimento dos amigos, da prisão do estuprador, de como a história dela foi marcada, mas não definida por essa violência na trama. Na televisão, nesse veículo de massa, dependendo da construção dramatúrgica, como aconteceu de modo forte e sensível nesse caso, exibir um estupro pode ter uma importância pedagógica imensa num país que registrou 227 estupros por dia em 2024, segundo dados do Ministério da Justiça.

Mas e o teatro? O que pode o teatro? O teatro pode muito, pode tudo aquilo que os artistas imaginarem e ainda mais. Reproduzir uma cena de estupro é fazer do teatro muito pouco. É restringi-lo. É subjugar mais uma vez a mulher. É perpetuar a lógica machista que se arvora dona dos nossos corpos. É injusto com o teatro, logo o teatro, esse lugar de reivindicar novas possibilidades, de inventar mundos, de elaborar a liberdade.  

*Quem quiser pensar mais sobre como contar histórias de violência tentando não reproduzir a sua lógica, indico o ensaio Vênus em dois atos, da escritora americana Saidiya Hartman, professora da Universidade Columbia, em Nova York, estudiosa da diáspora africana, autora de livros como Perder a mãe e Vidas rebeldes, belos experimentos.

*A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Ficha técnica:
Ella, da Cidade Flutuante Produções
Concepção cênica: Ana Oliveira
Palhaça: Ana Oliveira
Dramaturgista: Gabriel Mar
Produção: Igor Falcão e Efrain Mourão
Orientação: Prof. Luiz Davi Gonçalves

Trabalho é apresentado desde 2014. Foto: Marcos Pastich/PCR

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , ,