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Entre a precisão técnica e a ousadia contida
Crítica do espetáculo Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses

Grupo Circo Híbrido, de Porto Alegre. Foto: Divulgação

Como um trapezista que domina perfeitamente o movimento, mas não arrisca o salto mortal que arrancaria suspiros da plateia, o espetáculo Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses, do Circo Híbrido, exibe impecável execução técnica, mas falha em provocar o maravilhamento que define a verdadeira magia circense. Apresentado no Teatro do CHC Santa Casa durante o Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, esta celebração dos 20 anos da companhia porto-alegrense revela-se uma experiência de contrastes: virtuosismo individual que não se traduz em narrativa envolvente como um todo.

Com duração de 80 minutos, a peça revela o notável talento dos artistas, cuja destreza é inegável. Agatha Andriola impressiona a plateia com sua elasticidade desconcertante, realizando contorções que desafiam os limites físicos imagináveis. Seus números de contorcionismo são pontos altos do espetáculo, provocando reações imediatas de admiração.

As acrobacias aéreas executadas por Lara Rocho no tecido acrobático também merecem destaque. Suas evoluções combinam força, precisão e fluidez, criando imagens de beleza visual. Tainá Borges cativa com seu equilíbrio meticuloso sobre garrafas, um número que gera momentos de tensão e admiração. Gabriel Martins exibe habilidade com os malabares, enquanto Luís Cocolichio, Guilherme Capaverde e Maílson Fantinel completam o elenco com performances tecnicamente consistentes.

No entanto, apesar das qualidades individuais de cada artista, a dramaturgia não consegue entrelaçar os números de forma a construir um tecido dramatúrgico coeso e pulsante. A sequência de quadros, embora bem executados tecnicamente, torna-se por vezes monótona, criando momentos de distanciamento que afastam a montagem da energia contagiante típica do circo tradicional.

Alice Viveiros de Castro, uma das mais importantes pesquisadoras do circo no Brasil, identifica quatro elementos fundamentais desta arte: a técnica, a surpresa, o risco e a conexão emocional com o público. No caso de Cir.co, observa-se claramente o domínio da técnica, porém há uma carência dos outros elementos. A previsibilidade das apresentações e a ausência de momentos verdadeiramente surpreendentes diminuem o impacto emocional da performance.

A dimensão política do circo, enquanto espaço de acolhimento para a diversidade, também merece atenção. Historicamente, como aponta Castro, “o circo sempre foi um espaço de acolhimento para os diferentes”, reunindo artistas de diversas origens étnicas e sociais. No caso do elenco do Circo Híbrido, predominantemente branco, a inclusão de artistas negros poderia fortalecer essa dimensão política. Além disso, a função social do palhaço (e por extensão de toda a trupe) como “crítico social, um espelho que reflete nossas contradições” mostrou-se praticamente ausente no espetáculo, aparecendo brevemente na menção aos trâmites burocráticos de editais, perdendo assim a oportunidade de exercer a crítica social inerente à essa arte.

Tainá Borges. Foto: Sal Fotografia / Divulgação

Três momentos, no entanto, conseguiram, na noite chuvosa de terça-feira, 27 de maio, romper com essa previsibilidade: a flexibilidade impressionante de Agatha Andriola; o equilíbrio preciso de Tainá Borges sobre garrafas; e a cena em que a mesma artista deixa cair papéis e as crianças da plateia, espontaneamente, a ajudam a recolhê-los – talvez o instante mais autêntico de conexão direta entre artistas e público em toda a apresentação.

A ideia de usar o Minidicionário Poético das Artes Circenses como fio condutor da narrativa é promissora, mas sua execução apresenta irregularidades que comprometem o ritmo do espetáculo. A trilha sonora, embora funcional, carece de variações dinâmicas que poderiam acentuar a intensidade dos diferentes quadros, resultando em uma paisagem sonora que não potencializa completamente a experiência visual.

Os figurinos, com sua estética contemporânea, oferecem uma releitura interessante das vestimentas tradicionais circenses, mas acabam contribuindo para certo distanciamento, afastando-se da identidade mais popular e espontânea do circo tradicional. A produção prioriza a forma, resultando em uma exibição visualmente agradável, porém por vezes carente de autenticidade.

A comicidade, elemento fundamental da tradição circense, é pouco explorada. O palhaço, figura central do circo, simboliza o encontro com o ridículo que nos torna humanos; essa dimensão não encontra tradução efetiva na encenação do Circo Híbrido, que parece mais preocupado com a execução técnica do que com a ligação emocional com a plateia.

Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses destaca-se pelo talento individual dos artistas, especialmente nos impressionantes números de contorcionismo e acrobacias aéreas. O espetáculo contribui para o panorama das artes circenses contemporâneas no Brasil, mas deixa a sensação de que o grupo ainda pode explorar mais profundamente a essência do que torna o circo uma arte tão fascinante: sua capacidade de surpreender, emocionar e conectar-se mais profundamente com o público.

FICHA TÉCNICA

Direção: Tainá Borges e Lara Rocho
Elenco: Tainá Borges, Luís Cocolichio, Lara Rocho, Agatha Andriola, Maílson Fantinel, Guilherme Capaverde e Gabriel Martins.
Cenografia: Luís Cocolichio
Trilha sonora: Viridiana
Iluminação: Carol Zimmer
Registro de Imagens: Sal Fotografia
Design e comunicação: Mônica Kern
Produção: Tainá Borges e Vado Vergara
Realização: Circo Híbrido

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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