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Sagração da Primavera brasileira:
Deborah Colker leva revolução
coreográfica ao Norte-Nordeste

Cia. de dança mais premiada do país percorre seis capitais com releitura indígena da obra-prima de Stravinsky. Foto: Flavio Colker / Divulgação

Sagração transforma a revolução musical de Stravinsky em ritual indígena contemporâneo. Foto: Flavio Colker

Em 1913, Paris testemunhou um dos maiores escândalos da história cultural: a estreia de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky. Vaias, gritos e até brigas físicas tomaram o Théâtre des Champs-Élysées enquanto a música revolucionária e a coreografia “primitiva” de Vaslav Nijinsky chocavam a burguesia parisiense. Mais de um século depois, essa mesma obra que inaugurou a modernidade musical é recriada no Brasil pelas mãos de Deborah Colker, uma das coreógrafas brasileiras que melhor articula as questões do seu tempo através da experimentação estética, que transformou o sacrifício eslavo de Stravinsky em cosmogonia indígena brasileira.

Sagração – como batizou sua releitura, libertando-se do peso titular do original – percorre agora seis capitais do Norte-Nordeste em turnê histórica, trazendo ao público brasileiro o aprimoramento de três décadas de pesquisa coreográfica que consolidou Colker como criadora de um imaginário visual único na dança contemporânea brasileira.

A Alquimista dos Corpos em Movimento

Deborah Colker iniciou-se na dança contemporânea nos anos 1980 e construiu uma trajetória admirável

Cão sem plumas, inspirada na obra de João Cabral de Melo Neto. Foto: Cafi / Divulgação

Durante 30 anos (completados em 2024), a Companhia de Dança Deborah Colker construiu uma linguagem coreográfica inconfundível, sendo hoje reconhecida como uma das mais premiadas e prestigiadas do Brasil e do mundo. Com quatorze espetáculos em seu repertório, a trajetória da companhia é marcada por reconhecimentos internacionais de peso: o Prix Benois de la Danse de Moscou em 2018 — o mais importante prêmio da categoria —, o célebre Laurence Olivier em 2001, e marcos como ter sido a primeira mulher a criar e dirigir um espetáculo para o Cirque du Soleil (Ovo, 2009) e a direção de movimento da cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, transmitida para mais de 2 bilhões de pessoas.

Corpos que desafiam a gravidade, cenários que se transformam em organismos vivos, narrativas que entrelaçam erudito e popular sem hierarquias. Desde Vulcão (1994), seu espetáculo inaugural que já pesquisava impurezas e mixagens em quatro universos distintos — do corpo científico e mecânico às festas solares onde tudo se mistura —, passando por Velox (1995), que colocou bailarinos escalando paredes verticais em velocidade alucinante, Cão sem Plumas (2017), onde a poesia cabralina ganhou forma através de lama e mangue real no palco, até Sagração (2024), Colker estabeleceu um território artístico onde o extraordinário físico encontra significado poético. Ao longo desta jornada, a companhia realizou mais de 2.000 apresentações em cerca de 75 cidades e 32 países, atingindo um público superior a 3,5 milhões de pessoas.

O diferencial de Deborah Colker reside em sua capacidade de detectar potências criativas, uma habilidade forjada por uma trajetória singular. Sua formação eclética — entre a disciplina individual do piano e a dinâmica coletiva do voleibol — antecipou o que se tornaria sua marca: transitar entre universos aparentemente opostos com naturalidade absoluta. Após iniciar-se na dança contemporânea no grupo Coringa, nos anos 1980, desenvolveu no teatro uma função tão específica que exigiu a criação de um novo termo: diretora de movimento.

Dessa expertise teatral, expandiu-se para territórios inesperados — da televisão infantil às comissões de frente do carnaval carioca, da ópera internacional ao circo canadense — sempre demonstrando uma intuição rara para descobrir o potencial expressivo único de cada intérprete. Ela concebe universos onde bailarinos se tornam bactérias, plantas, elementos da natureza ou figuras míticas. 

Seu método é antropofágico no melhor sentido oswaldiano: devora referências eruditas – Stravinsky, João Cabral de Melo Neto, literatura bíblica – e as regurgita em linguagem brasileira pulsante. Em Rota (1997), rodas gigantes se tornaram metáforas de destino; em Cruel (2008), a paixão foi traduzida em geometrias corporais inusitadas; em Cura (2021), nascido da angústia pessoal com a doença genética de seu neto, ela investigou ciência, fé e os limites humanos através de dramaturgia do rabino Nilton Bonder e trilha de Carlinhos Brown.

Do Escândalo Parisiense ao Ritual Xinguano

Sagração transforma a revolução musical de Stravinsky em ritual indígena contemporâneo. Foto: Flavio Colker

A obra original de Stravinsky representou uma ruptura radical com as convenções musicais de sua época, introduzindo ritmos irregulares, dissonâncias harmônicas e politonalidades que soavam revolucionárias aos ouvidos acostumados à harmonia tradicional. Quando Nijinsky coreografou movimentos angulares e “bárbaros” para acompanhar a partitura, completou-se uma revolução estética que ainda hoje impressiona pela ousadia.

Colker compreendeu que recriar A Sagração da Primavera em 2024 exigia mais que reverência: demandava nova transgressão. Sua inspiração veio de uma viagem ao Xingu, no encontro com as aldeias indígenas Kalapalo e Kuikuro onde conheceu o cineasta indígena Takumã Kuikuro. A história que ele contou – como o povo do chão recebeu o fogo do Urubu-Rei – tornou-se uma das cosmogonias centrais do espetáculo.

Em parceria com o rabino e escritor Nilton Bonder, Colker construiu uma dramaturgia que tece mitologia indígena, Gênesis bíblico e teoria evolucionista. Essa perspectiva configura uma jornada cênica que parte da figura ancestral da “avó do mundo” – entidade criadora presente em várias cosmogonias indígenas brasileiras – e percorre bactérias, herbívoros, Eva negra, Abraão navegador, até alcançar uma reflexão sobre a relação contemporânea entre humanidade e natureza.

170 Bambus e Uma Revolução Sonora

A direção de arte do espetáculo é de Gringo Cardia. Foto: Flavio Colker / Divulgação

Cenograficamente, Sagração materializa-se através de 170 bambus de quatro metros de altura, criações de Gringo Cardia que operam como elementos coreográficos ativos. Esses bambus se transformam em florestas, altares, embarcações e lanças, criando uma geometria móvel que desafia constantemente os 15 bailarinos em cena.

A direção musical de Alexandre Elias propõe uma arqueologia sonora, que mantém a estrutura rítmica stravinskyana enquanto sobrepõe sons indígenas, instrumentos como maracá e caxixi, além de “paus de chuva” tocados pelos próprios bailarinos. Essa sobreposição configura uma composição híbrida onde boi bumbá, coco, afoxé e samba dialogam com a orquestra sinfônica de Stravinsky.

Claudia Kopke desenvolveu figurinos em tons terrosos – marrom, ocre, cinza – que prometem fluidez total dos movimentos enquanto evocam elementos naturais. Beto Bruel assina um desenho de luz que se propõe alternar intensidades dramáticas, realçando ora a brutalidade, ora a beleza poética das sequências coreográficas.

SERVIÇO

Sagração – Companhia de Dança Deborah Colker
Turnê Norte-Nordeste – Seis Capitais
Ingressos: R$ 25 a R$ 200
Classificação: 10 anos
Duração: 70 minutos (sem intervalo)

🎭 Maceió (AL) – 03 e 04/OUT
Teatro Gustavo Leite – Centro de Convenções
@centrodeconvencoesmaceio

🎭 Recife (PE) – 07/OUT, 20h30
Teatro Guararapes – Centro de Convenções, Olinda @teatroguararapes @teatroguararapesrecife_

🎭 João Pessoa (PB) – 11/OUT
Teatro Paulo Pontes @funescgovpb

🎭 Natal (RN) – 14 e 15/OUT
Teatro Alberto Maranhão @teatroalbertomaranhao.oficial

🎭 Fortaleza (CE) – 18 e 19/OUT
Cine Teatro São Luiz @cineteatrosaoluiz @secultceara @institutodragaodomar

🎭 Belém (PA) – 24 a 26/OUT
Theatro da Paz @teatrodapazoficial

🎭 São Luís (MA) – 29 a 31/OUT
Teatro Arthur Azevedo @teatroarthurazevedooficial

Descontos:
Petrobras: 50% para funcionários (até 2 ingressos por crachá)
Instituto Cultural Vale: 50% para funcionários (até 2 ingressos por crachá)

Atenção: O espetáculo contém luzes intensas e efeitos que podem afetar pessoas com epilepsia ou fotossensíveis.

FICHA TÉCNICA

Criação, Direção e Dramaturgia: Deborah Colker
Direção Executiva: João Elias
Direção Musical: Alexandre Elias
Direção de Arte: Gringo Cardia
Dramaturgia: Nilton Bonder
Figurinos: Claudia Kopke
Desenho de Luz: Beto Bruel
Fotografia: Flávio Colker

Realização: Ministério da Cultura, Petrobras e Instituto Cultural Vale
Lei Federal de Incentivo à Cultura

 

 

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