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Ópera cômica com sotaque nordestino
Crítica: La Serva Padrona

Anderson Rodrigues (Uberto), Marcondes Lima (Vespone) e Gleyce Vieira (Serpina). Foto: Ivana Moura

Risos, reconhecimento, casa cheia por quatro noites consecutivas. Quando La Serva Padrona ganhou sotaque pernambucano no Teatro Hermilo Borba Filho, entre 8 e 11 de outubro, o público respondeu de forma entusiástica, esgotando todos os ingressos. Para uma ópera cômica do século XVIII no Recife, o resultado surpreende — e prova que o encontro entre Pergolesi e o “oxe” nordestino pode ser mais eficaz que muitas estratégias convencionais de democratização cultural.

Antes de compreender o alcance desta recepção calorosa, porém, é interessante situar La Serva Padrona (1733), de Giovanni Battista Pergolesi, em seu contexto histórico. Originalmente concebida como intermezzo — entreato de 50 minutos inserido entre os atos de uma ópera séria —, a obra conquistou rapidamente autonomia artística ao contrastar dramaticamente com a solenidade e os temas grandiosos que dominavam os palcos setecentistas.

O enredo é deliberadamente simples: Uberto, ricaço solteirão hipocondríaco, convive há anos com sua criada Serpina, que comanda a casa como se fosse a patroa. Irritado com a insubordinação, Uberto anuncia que pretende se casar para restabelecer a ordem doméstica. Serpina, contudo, arquiteta estratégia engenhosa: com ajuda do criado mudo Vespone, simula noivado com um fictício Capitão Tempestade (o próprio Vespone disfarçado), manipulando o patrão através do ciúme até conseguir desposá-lo.

Sob a aparência de comédia doméstica, a obra carrega implicações sociais explosivas para a época. Serpina representa figura subversiva: mulher de origem humilde que, mediante inteligência e astúcia, subverte hierarquias de classe e gênero, conquistando ascensão social numa sociedade rigidamente estratificada. Simultaneamente, Uberto surge como anti-herói paródico — patrão fraco, manipulável, dependente da própria criada —, desafiando arquétipos patriarcais de autoridade masculina.

Tal ousadia não passou despercebida. Quando a obra chegou a Paris em 1752, deflagrou a célebre Querelle des Bouffons, debate estético e político que cindiu a intelectualidade francesa entre partidários da grandiosa ópera séria e defensores da simplicidade acessível da ópera buffa. Esse evento marcou inflexão decisiva na história operística europeia.

A reinvenção pernambucana: estratégias de aproximação cultural

Montagem dirigida por Luiz Kleber Queiroz e Maria Aida Barroso na direção musical. Foto: Ivana Moura

Considerando essa herança revolucionária, torna-se ainda mais significativo o que a montagem dirigida por Luiz Kleber Queiroz (professor do Departamento de Música da UFPE e diretor teatral) e Maria Aida Barroso (também do Departamento de Música da UFPE, na direção musical), com produção de Matheus Soares da 25 Produções, conseguiu realizar. Diante do desafio de atualizar culturalmente a obra sem descaracterizá-la, a equipe encontrou solução ao mesmo tempo respeitosa e audaciosa.

A estratégia central consistiu em manter as árias no italiano original — preservando assim a sonoridade vocal característica e o vínculo com a tradição barroca — enquanto os recitativos foram vertidos ao português com tempero regional. Expressões como “oxe”, “visse”, “arretado” e “mangar” pontuaram os diálogos, estabelecendo cumplicidade imediata com a plateia local.

Tal escolha criou dinâmica particular: nas árias, momentos de introspecção lírica, o italiano mantém peso poético e musicalidade originais; nos recitativos, onde se desenvolve a ação dramática e o humor, o português regionalizado assegura compreensão integral das nuances cômicas. O público assim navega entre duas línguas e dois registros: familiaridade linguística nos diálogos, tradição operística nas árias.

Um momento exemplifica essa dinâmica de forma inesperada: quando surgiu a palavra “rapariga” — que em português lusitano significa simplesmente “moça”, mas no Nordeste carrega conotação sexual —, a plateia mergulhou em silêncio sepulcral. O constrangimento durou poucos segundos, mas evidenciou como as particularidades regionais da língua podem criar camadas semânticas não intencionais, gerando efeitos cômicos ou embaraçosos conforme a recepção local.

Visualidade cênica

Para além dessa tradução linguística, a direção de arte de Marcondes Lima trabalhou na mesma linha de aproximação cultural. O ambiente visual construído dialoga produtivamente entre referências da commedia dell’arte e símbolos nordestinos: algodão cru, cestos de palha, chapéu de vaqueiro e rede não funcionam como algo pitoresco decorativo, mas como signos culturais que ressignificam o espaço dramático.

A escolha de ambientar a trama numa casa do interior nordestino encontra justificativa: La Serva Padrona trata na peça de relações domésticas e jogos de poder entre patrões e empregados — dinâmicas que encontram ressonância particular na realidade brasileira. As lutas por reconhecimento e ascensão social das trabalhadoras domésticas atravessam séculos, conectando a Nápoles setecentista ao Brasil contemporâneo, onde essas relações ainda carregam marcas coloniais e hierarquias de classe persistentesAssim, Serpina torna-se tanto personagem cômica, como espelho de lutas históricas.

A cantora Gleyce Vieira e o cantor Anderson Rodrigues revezaram com Karla Karolla e Osvaldo Pacheco

Se as escolhas conceituais da montagem impressionam pela coerência, sua materialização cênica confirma a eficácia das estratégias adotadas. No elenco que acompanhei, Gleyce Vieira (Serpina) ofereceu interpretação de notável desenvoltura, equilibrando a sagacidade da personagem com traços de autêntica afeição por Uberto. Sua agilidade vocal navegou com segurança pelas demandas técnicas, enquanto sua presença cênica transmitiu tanto a inteligência estratégica quanto a vulnerabilidade humana da criada.

Anderson Rodrigues (Uberto), por sua vez, construiu personagem mais comedido, de acordo com sua caracterização do patrão hesitante. Seu timing cômico e fisicalidade exploraram a figura do homem acomodado em privilégios e rotinas, facilmente manipulado por quem demonstra maior astúcia.

Vale ressaltar que a produção trabalhou com elenco alternado: Karla Karolla e Osvaldo Pacheco interpretaram os protagonistas nos dias 8 e 10, demonstrando tanto a vitalidade artística do projeto quanto o compromisso formativo com cantores regionais.

Contudo, a performance mais impactante da noite pertenceu a Marcondes Lima como Vespone. Explorando magistralmente a tradição pantomímica da commedia dell’arte, Lima transformou o personagem mudo em catalisador cômico indispensável. Suas expressões faciais — ora assustadas, ora cúmplices, ora gulosas — pontuavam musicalmente a ação dramática. Especialmente divertida foi sua degustação teatralizada de uma tapioca (de uma maçã e de uma banana), convertida em coreografia elaborada que satirizava hierarquias sociais através da gula exagerada. Sem pronunciar palavra, Vespone tornou-se comentário social e motor de hilaridade.

Evidentemente, todo esse trabalho cênico e dramatúrgico dependia de uma execução musical à altura das ambições do projeto. O acompanhamento instrumental ficou a cargo do sexteto formado por Singrid Souza (violino I), Júlia Paulino (violino II), Letícia Santos (viola), Gabriel David (violoncelo), Rebeca Furtado (contrabaixo) e Maria Aida Barroso (cravo). O conjunto demonstrou entrosamento domínio harmônica da execução, pontuando os recitativos com comentários musicais que sublinhavam as intenções dramáticas. A orquestra com sua função essencial deu sustentação à experiência.

O êxito artístico da montagem revela também a eficácia de políticas públicas bem direcionadas. A viabilização desta produção através da PNAB (Política Nacional Aldir Blanc, programa federal de fomento cultural) e Lei Aldir Blanc municipal demonstra como investimento em cultura pode gerar resultados concretos: quatro noites esgotadas comprovam a existência de público interessado em ópera e a capacidade dessas políticas de remover barreiras tradicionais de acesso.

Ficha Técnica

Direção Geral: Luiz Kleber Queiroz
Direção Musical: Maria Aida Barroso
Direção de Arte: Marcondes Lima
Produção: Matheus Soares (25 Produções)

Elenco:

Dias 8 e 10: Osvaldo Pacheco (Uberto), Karla Karolla (Serpina)
Dias 9 e 11: Anderson Rodrigues (Uberto), Gleyce Vieira (Serpina)
Todas as apresentações: Marcondes Lima (Vespone)
Sexteto de Câmara: Singrid Souza (violino I), Júlia Paulino (violino II), Letícia Santos (viola), Gabriel David (violoncelo), Rebeca Furtado (contrabaixo), Maria Aida Barroso (cravo)

Período: 8 a 11 de outubro de 2025
Local: Teatro Hermilo Borba Filho, Recife
Entrada: Gratuita
Apoio: PNAB (Política Nacional Aldir Blanc) e Lei Aldir Blanc da Prefeitura do Recife

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