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Até sempre Vavá Schön-Paulino

Heliogábalo & Eu (1990). Foto: Deborah Valença

Um artista de muitas frentes: ator, poeta, artista plástico, performer e gestor público.

Vavá morreu tragicamente neste 11 de setembro de 2025 em um incêndio em sua residência, em Floresta (PE)

Vavá Schön-Paulino entrava em cena como quem entra em casa. Sem alarde, sem pedir licença, mas com o cuidado de quem sabe onde cada objeto repousa e que luz acende primeiro. Havia algo de menino no gesto — o riso fácil, os olhos atentos, uma curiosidade que não se gastava com o tempo. Ele  atuava como quem oferece água a quem chega cansado: com generosidade, precisão e uma confiança íntima na partilha. Essa confiança moldou sua presença de ator, de educador, de provocador de processos, de artesão de encontros. Nos trabalhos marcantes — da secura luminosa de Fim de Jogo (Beckett), em montagem dirigida por João Denys à Rasif – Mar que arrebenta, a partir de textos de Marcelino Freire, à do ritual instável de Heliogábalo & Eu (1990) à medonha constatação capitalista de A carne mais barata  — sempre se reconhecia um fio: Vavá habitava a cena, deixando que alguns sentidos aparecessem no atrito entre corpos, palavras, silêncio e tempo.

É com esse cuidado que hoje, inevitavelmente, escrevemos no passado. Vavá morreu tragicamente neste 11 de setembro de 2025 em um incêndio em sua residência, em Floresta, no Sertão de Pernambuco, um mês depois completar 65 anos. A tragédia expôs um problema antigo: a ausência de um quartel do Corpo de Bombeiros no município, o que retardou o atendimento e agravou o desfecho. Nascido em Floresta, o artista mudou-se para o Recife em 1978 e, por mais de quatro décadas, foi presença articuladora e generosa na cena cultural pernambucana; há cerca de dez anos, voltou à cidade natal, onde seguiu como gestor, formador e artista — costurando pessoas, ideias e territórios com a mesma delicadeza com que entrava no palco.

Vavá foi um artista de muitas frentes: ator, poeta, artista plástico, performer e gestor público. Na gestão cultural, assumiu papéis decisivos — coordenador do Centro Apolo-Hermilo, diretor do Teatro de Santa Isabel, diretor de Cultura em Floresta e vice-presidente do SATED-PE. No teatro, ergueu uma trajetória vasta e variada. Atuou em A carne mais barata (2005), Espetacular & Espetaculoso (2014), performance De Profundis, Cenas Abissais (1987), Cinderela, a história que sua mãe não contou (1999), Em nome do desejo (1990), O balcão (1987), O burguês fidalgo (1988), Os palhaços da Rua da Alegria (1992) e Quarteto (1988). Não é uma lista exaustiva, mas aponta a extensão do gesto: do popular ao experimental, da farsa à poesia cênica, da pedagogia à prática cotidiana de teatro.

Talvez por isso suas aulas-oficinas ressoassem como ensaios de vida: “Consumo e Práxis Criadora” era um método. Ensinar, para ele, era encostar o ouvido no chão até sentir o trepidar do que vem — e, então, convidar todo mundo a experimentar junto. Primeiro o jogo, depois a tese; primeiro o risco, depois a palavra. Quando provocava “Estarei esperando Godot?”, havia ironia e ternura na mesma medida: não a resignação de quem aguarda o que não chega, mas o impulso de montar um espaço comum onde o encontro, esse sim, aconteça. O que Vavá propunha era simples e exigente: trabalhar a partir do “nosso quintal de subjetividades”, insistindo que a tal Internet das Coisas só faz sentido quando começa no chão compartilhado da presença, do erro, do gesto que ainda não sabe o nome. Da sala de ensaio ao corredor, do pátio à rua, sua obra parecia dizer que a arte não “representa” a vida: ela a curva um pouco, o bastante para que possamos passar.

E é nesse ponto que a transitoriedade se impõe, não como lamento, mas como claridade. O teatro, por definição, passa — e é no passar que ele nos toca. Vavá parecia saber disso desde sempre: não colecionava certezas; colecionava instantes. O palco, para ele, era o lugar onde o agora se dá por inteiro. Vavá armava a cena, no processo de preparar o terreno, arejar o ar, abrir passagem para que o extraordinário do agora possa, quem sabe, acontecer. E, se o tempo é o tecido do teatro, Caetano Veloso o nomeia com alegria grave: “Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, tempo, tempo, tempo, tempo.” Vavá marcava esse compasso com a paciência de quem sabe que o ritmo não é a pressa; é a escuta — a cadência comum que faz de muitos um coro.

Transitoriedade é matéria. O que passa nos forma. Em Rasif – Mar que arrebenta, com ele, aprendemos que a maré não repete o desenho, mas insiste no gesto: vem, toca, recua, volta. Em Fim de Jogo, descobrimos ao seu lado que o palco é um laboratório de ruínas onde a vida insiste em brotar. Em Heliogábalo & Eu, dançamos na instabilidade. A pedagogia que deixou — feita de encontros, partilhas, cansaços honestos e um humor que desembaraça — foi um convite: experimentar o presente com inteireza. Talvez seja esse o maior legado: uma ética da presença que não perde tempo lutando contra o tempo, mas o transforma em parceria de criação.

Se perguntarem o que fica quando a luz desce, diremos talvez o exercício da atenção, que Vavá cultivou na cena e na vida; talvez a coragem de experimentar antes de entender; quem sabe o riso que desata nós; quisera a delicadeza firme de quem sabe a hora de falar e a hora de ouvir; fica, sobretudo, a certeza de que o teatro é uma arte do encontro, e que o encontro só existe porque somos, todos, passagem.

E se a notícia dura precisa caber num texto — a morte em incêndio, em casa, em Floresta; a cidade sem quartel de bombeiros; os muitos amigos e alunos desamparados — então que caiba junto o que a sustenta: a trajetória de um artista que fez do palco uma casa e da casa um lugar comum. O que fica agora é que a cena é encontro: esse foi o norte. E, enquanto o tempo compõe destinos e a cena se refaz, seguimos o conselho implícito que sua trajetória nos deixou: primeiro a partilha, depois o conceito; primeiro a vida, depois o nome. Porque a matéria passa, mas o gesto como resíduo drummondiano — esse sim — aprende a ficar. O resto a gente tenta aprender, como ele, em comum.

 

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Borghi encara clima pós-apocalíptico de Beckett

Foto: Patricia Cividanes

Elcio Nogueira Seixas e Renato Borghi em Fim de Jogo, peça de Samuel Beckett. Foto: Patricia Cividanes /Divulgação

 O ator Renato Borghi, 80 anos, merece ser reverenciado, paparicado, celebrado, acarinhado por tudo que ele já fez. Seis décadas de teatro não é para qualquer um, não. Só para os fortes. Um dos fundadores do Teatro Oficina, Borghi estreou profissionalmente em 1958, com o espetáculo Chá e Simpatia, com direção de Sérgio Cardoso, no Rio de Janeiro. O intérprete do dissoluto Abelardo I em O Rei da Vela, montagem emblemática do Teatro Oficina, em 1967, mergulhou em grandes personagens. Contracenou com Etty Fraser em A Incubadeira, fez Galileu e Na Selva das Cidades, do alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e As Três Irmãs, de Anton Tchekhov (1889-1860), pelo Teatro Oficina. No ano passado transformou a sala de visitas de seu apartamento, em São Paulo, em um teatro de bolso para as apresentações da peça Fim de Jogo. A ideia de fazer a peça ocorreu quando Renato Borghi se recuperava de duas cirurgias na coluna e utilizava cadeira de rodas devido a limitações motoras.

Essa versão da tragicomédia do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), chega ao Recife para seis apresentações, de hoje a sábado e nos dias 11, 12 e 13, na Caixa Cultural. A encenação é do Teatro Promíscuo, companhia criada há 25 anos por Borghi e Elcio Nogueira Seixas, seu parceiro de cena. Ontem foi apresentada a palestra ilustrada Borghi em Revista, quando o artista passeou pela história do Teatro Brasileiro. No dia 10, quarta-feira, a palestra gratuita será reapresentada na Sala Multimídia da Caixa Cultural, às 19h, com o conteúdo que vai das revistas dos anos 1930 até os movimentos da cena contemporânea no Brasil. E na próxima quinta-feira, dia 11, os atores vão conversar com o público após a apresentação da peça.

Os retratos dos pais de Borghi, , representam os personagens

Os retratos dos pais de Borghi representam os personagens Nell e Nagg

O veterano ator já assistiu muitas montagens de Fim de Jogo mas sempre lhe intrigava o modo semelhante na interpretação, que ele pensava que abriam um abismo entre o texto e o público. Sua encenação traz uma pegada mais intimista. Criada na sala de seu apartamento, a sua encenação traz essa atmosfera, de um contato mais próximo.

Os personagens beckettianos povoam um mundo pós-colapso, devastado e sem perspectiva de futuro. Escrita em 1957, Fim de jogo expõe o convívio de quatro figuras, sobreviventes, que dividem um exíguo abrigo. Borghi considera que a peça pode se conectar a um tempo pós-atômico como aos dias de hoje.

Borghi faz o velho Hamm, cego e paralítico, que vive na dependência de Clov (Elcio Nogueira Seixas), que sofre de uma enfermidade que o impede de sentar. Então Clov narra a Hamm o que enxerga da terra devastada.

A direção é assinada por Isabel Teixeira que optou por utilizar fotografia dos pais de Renato, Maria de Castro e Adriano Borghi, como os outros dois personagens do texto de Beckett, Nell e Nagg.

FICHA TÉCNICA

Autor: Samuel Beckett
Tradução: Fábio Rigatto de Souza Andrade
Elenco:
Renato Borghi (Hamm)
Elcio Nogueira Seixas (Clov)
Maria de Castro Borghi (Nell)
Adriano Borghi (Nagg)
Direção: Isabel Teixeira
Direção de Arte: Karlla Girotto
Iluminação: Alessandra Domingues
Trilha Sonora: Aline Meyer
Diretor Assistente e “O Ponto”: Lucas Brandão
Assistência de Direção de Arte: Gabriela Cherubini
Assistência de Iluminação: Laiza Menegassi
Adaptação de iluminação para Recife: Roberto Setton
Direção de palco: Tiago Moro
Filmagem e Edição: Eliana César e Lucas Brandão
Fotos: Roberto Setton e Patrícia Cividanes
Programação gráfica: Patrícia Cividanes
Direção de Produção: Anayan Moretto
Produção executiva: Rick Nagash
Produção Recife: Tadeu Gondim
Realização: Teatro Promíscuo

Serviço

Fim de Jogo
Quando: De 4 a 6/05 e de 11 a 13/05/2017 (Bate-papo com os atores no dia 11/05, após a peça) às 20h
Onde: Caixa Cultural Recife (Avenida Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife)
Quanto: R$ 10,00 (inteira) | R$ 5,00 (meia-entrada)
Venda de ingressos: a partir do dia 03/05 (para as apresentações de 04 a 06/05) e do dia 10/05 (para as apresentações de 11 a 13/05/2017), das 10h às 20h, na bilheteria da CAIXA Cultural Recife.
Fone: (81) 3425-1915

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