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O festivo como ato político
Crítica: As cores da América Latina 

Montagem combina várias matrizes culturais. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Premiada no 34° Prêmio Shell de Teatro como Destaque Nacional e concebida a partir do Concurso-Prêmio Manaus 2022 Thiago de Mello, a criação As Cores da América Latina ressignifica tradições populares consagradas em uma nova composição cênica que potencializa sua expressividade política. Sob direção de Fábio Moura e Talita Menezes, a Panorando Cia e Produtora de Manaus entrelaça o Cavalo-Marinho (Pernambuco/Paraíba), La Tirana (Chile), Huaconada (Peru) e o Fofão (Maranhão), reimaginando fronteiras através da diversidade latino-americana.

Apresentada no Teatro Renascença, em Porto Alegre, nos dias 31 de maio e 1º de junho, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, a montagem integra um circuito que amplia seu diálogo com diferentes públicos. A obra estabelece uma intersecção entre dança, teatro e artes visuais com performances marcadas por estética de cores intensas e máscaras que transformam o espaço cênico em território de celebração identitária e reflexão política.

Espetáculo conta com intérpretes-criadores Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Originário da Zona da Mata nordestina, o Cavalo-Marinho combina teatro, dança e música em uma estrutura que pode durar mais de oito horas, com dezenas de personagens (Capitão, Mateus, Catirina, entre outros) e rica trama de toadas, loas e passos específicos. No espetáculo, contribui com sua narrativa não-linear e corporeidade desenvolvida pelos brincantes, marcada pelo jogo entre equilíbrio e desequilíbrio.

Celebrada anualmente na vila de La Tirana, na Região de Tarapacá, norte do Chile, a Fiesta de La Tirana constitui-se como festival religioso em honra à Virgem do Carmo, onde coexistem elementos indígenas, ciganos e espanhóis. Suas danças mascaradas de diabladas e chunchos inspiram cores vibrantes, a relação entre sagrado e profano e a musicalidade andina que estrutura várias cenas.

A Huaconada, dança ritual da região de Junín, Peru, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, é executada por dançarinos com máscaras características que chicoteiam o ar para afastar maus espíritos. O espetáculo extrai destas máscaras, que representam anciãos com autoridade moral, uma presença cênica que oscila entre o humano e o sobre-humano.

O Fofão do carnaval maranhense, com sua máscara de grandes bochechas, nariz avermelhado e cabelos coloridos, frequentemente veste macacões multicoloridos e carrega um bastão. Esta figura simultaneamente cômica e assustadora inspira diretamente a visualidade do espetáculo, com as máscaras utilizadas pelos performers reinventando esta tradição em contexto contemporâneo.

Este entrelaçamento de referências culturais gera uma linguagem cênica enraizada na tradição e aberta à experimentação contemporânea.

Este entrelaçamento de referências culturais exerce uma reelaboração criativa que gera uma nova linguagem cênica, simultaneamente enraizada na tradição e aberta à experimentação contemporânea.

Espetáculo defende o festivo como ato político. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

A festa popular historicamente constitui-se como espaço de liberdade e transgressão, onde hierarquias são temporariamente invertidas e normas sociais suspensas. Através da mescla de tradições diversas, As Cores da América Latina materializa esse potencial insurgente. Revestidos por máscaras e figurinos, os corpos dos intérpretes adquirem qualidade híbrida, ocupando um espaço de transformação constante.

A atmosfera da montagem, dinâmica e polifônica, constitui simultaneamente expressão cultural e manifesto político. Como observa Mikhail Bakhtin em sua análise da cultura popular, particularmente significativa é a ambivalência do riso popular, simultaneamente alegre e sarcástico, negativo e afirmativo. Tal ambivalência permeia As Cores da América Latina quando a obra aborda morte e nascimento através da linguagem da celebração, explorando contradições inerentes tanto à existência humana quanto à realidade social latino-americana.

Fronteiras e Zonas de Contato Cultural

Ileana Diéguez Caballero, em Cenários Liminares, desenvolve uma proposta teórica fértil para pensar a obra. Sua concepção de práticas cênicas que habitam zonas fronteiriças entre disciplinas, culturas e realidades sociais oferece um marco interpretativo que ilumina o trabalho da Panorando.

A criação estabelece um território cênico que emerge do encontro entre dança, teatro e ritual. Este hibridismo corresponde também a um cruzamento de fronteiras geográficas, onde manifestações amazônicas dialogam com expressões nordestinas e andinas.

O conceito de liminaridade, desenvolvido por Victor Turner, encontra eco na obra da Panorando: os intérpretes, transformados por máscaras e figurinos, tornam-se entidades entre estados, permitindo a manifestação de possibilidades existenciais normalmente invisíveis no cotidiano.

Obra aposta na corporeidade e subversão. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Os corpos dos intérpretes-criadores (Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes) estabelecem-se como territórios de contestação e afirmação identitária. Seus movimentos inspirados em animais e ritmos latino-americanos comunicam resistência e pertencimento cultural, revelando a potência política do movimento quando transpõe o familiar para o extraordinário.

A dimensão visual concebida por Fábio Moura, com figurinos coloridos de Lú de Menezes e máscaras renovadoras, cria seres híbridos. O cenário – painel de tecidos diversos com luzes ambaradas – evoca simultaneamente o doméstico e o mágico. Estes elementos funcionam como “dispositivos de memória”, ativando referências que resistem ao apagamento.

Da pesquisa musical de Talita Menezes emerge uma proposta de interculturalidade crítica, onde diferentes matrizes culturais dialogam sem perder suas especificidades. Este aspecto dialoga com o pensamento decolonial latino-americano e a noção de “pensamento fronteiriço” de Walter Mignolo, propondo um espaço onde tradições podem coexistir em suas diferenças.

As fronteiras culturais são reimaginadas como zonas de contato e criação, desafiando tanto o universalismo eurocêntrico quanto os essencialismos identitários, valorizando saberes tradicionalmente marginalizados sem romantizá-los.

 

A alegria como estratégia de sobrevivência. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS 

A alegria manifesta constitui-se como estratégia política deliberada. A experiência de contentamento democratiza o acesso à reflexão política através da emoção estética, criando um espaço onde a transmissão de saberes acontece pelo prazer, não pela imposição discursiva.

As Cores da América Latina adquire particular relevância em um contexto de crescente polarização, recordando-nos que a festa constitui potente ato político de afirmação identitária, resistência cultural e imaginação de futuros possíveis para a América Latina.

FICHA TÉCNICA
Direção: Fábio Moura e Talita Menezes
Coreografia: Criação coletiva
Intérpretes-criadores: Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes
Visualidades: Fábio Moura
Pesquisa musical: Talita Menezes
Confecção de figurino: Lú de Menezes
Produção e iluminação: Fábio Moura

Referências 
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987.
CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários Liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011.
TURNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

 

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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