
Grupo de Caxias (RS), traduz em movimento a potência dos corpos periféricos, transformando o samba, a arquitetura das favelas e as referências a Exu em uma contundente manifestação artística decolonial. Foto: Paulo Pretz
O espetáculo de dança Encruzilhada leva a favela para a cena, espelhando-a como um labirinto de muitos cruzos. A peça coreográfica de Caxias (RS) dirigido por Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina, foi exibida no domingo, 25/05, no CHC Santa Casa em Porto Alegre, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre.
O corpo é essencialmente samba nessa Encruzilhada, carregando as marcas das diásporas, conjunções e controvérsias que formam o Brasil. Os intérpretes-criadores Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina e Thiago Roque partem de uma perspectiva decolonial para construir um mosaico coreográfico que desafia hierarquias estéticas. A hibridização de linguagens – onde a dança de salão dialoga com a gestualidade das danças urbanas, enquanto fundamentos do balé clássico são desconstruídos e ressignificados pela ginga dos ritmos afro-brasileiros – está intrinsecamente ligada às experiências pessoais dos dançarinos, que contribuem com suas próprias bagagens de vida e técnicas diversas. Essa mistura de vocabulários de movimento sugere um posicionamento político que ecoa o conceito de encruzilhada como espaço de múltiplas convergências culturais e estéticas.
Nessa estrutura narrativa fragmentada, os corpos transitam entre estados de opressão e insurgência, desenhando no espaço uma cartografia dos afetos periféricos. Os artistas constroem uma dramaturgia corporal que oscila entre a exaustão e o soerguimento, materializada de forma emblemática na “sambada do chinelo”, sequência onde o dançarino Igor Cavalcanti Medina explora os limites físicos em uma metáfora potente da persistência das comunidades marginalizadas.
Os movimentos do elenco, ora contidos e sufocados, ora explosivos e catárticos, projetam as dinâmicas sociais das encruzilhadas urbanas, criando um discurso corporal que expõe tensões, fraturas e celebrações da vida suburbana. Os corpos narram histórias e são, eles mesmos, essas histórias em suas materialidades suadas, ofegantes e resilientes.

A pesquisa dessa montagem está sustentada por material teórico, estético e político. Foto: Paulo Pretz
Encruzilhada incorpora o conceito teórico desenvolvido por Leda Maria Martins em Afrografias da Memória, onde a encruzilhada é apresentada como “instância simbólica e metonímica” que opera como um “lugar terceiro” de interseções, desvios e múltiplas possibilidades. Ao adotar este conceito já em seu título, o espetáculo assume uma postura que valoriza o entrelaçamento de linguagens e saberes.
Na montagem cênica, a encruzilhada manifesta-se como tema e como princípio estruturante que organiza a própria dramaturgia corporal. Como morada de Exu, “linguista-tradutor do mundo”, conforme elabora Luiz Rufino em Pedagogia das encruzilhadas, a peça explora os elementos arquitetônicos das comunidades periféricas inspirados no artistas visual e performático Hélio Oiticica (937 – 1980), transformando-os em dispositivos que ativam memórias corporais e espaciais que desafiam a linearidade das narrativas hegemônicas.
Oiticica, artista que conferiu status estético às comunidades periféricas, constitui referência fundamental nas pesquisas do grupo de Caxias. Suas criações revolucionárias como os Parangolés (1964-1968), capas coloridas que incorporam o movimento e o ritmo do samba; os Penetráveis (1960-1979), instalações labirínticas inspiradas na arquitetura espontânea das favelas; e a Tropicália (1967), ambiente que sintetizava elementos da cultura brasileira marginalizada, ecoam no espetáculo Encruzilhada através do bailado corporal dos artistas e na concepção espacial que evoca os dispositivos arquitetônicos e urbanísticos dos morros.
A incorporação da ginga, do samba e da arquitetura labiríntica inspirada nas favelas opera no espetáculo como concretização do conceito de encruzilhada enquanto “lugar radial de centramento e descentramento”, como define Leda Maria Martins. Os corpos em movimento no espaço cênico apresentam-se como veículos de uma forma de conhecimento alternativa, na qual o saber não se dá apenas pelo logos, mas pelo pathos, pela corporalidade e pela performance. Ao entrecruzar a estética de Oiticica com as tradições afro-brasileiras, o espetáculo Encruzilhada propõe novos modos de existência baseados na fluidez e na negociação de identidades, rompendo com as dicotomias impostas pela colonialidade.
Os dançarinos transitam entre precisão técnica e o gesto cotidiano, com alguma improvisação, criando uma linguagem corporal que recusa categorias fechadas. A incorporação de elementos rituais, particularmente nas sequências inspiradas nas corporalidades de Exu, adiciona camadas de significado que aproxima a performance de uma experiência ritual coletiva.
Como uma narrativa integrada às corporeidades em cena, a trilha sonora de Encruzilhada é executada ao vivo por Zeca Duarte, compositor e multiinstrumentista. Suas criações autorais tecem uma dramaturgia sonora que entrelaça as tradições do samba e do choro com referências contemporâneas, evocando a sofisticação harmônica de Baden Powell e a irreverência rítmica de Jorge Ben Jor. Esta musicalidade traduz sonoramente o conceito de encruzilhada, estabelecendo-se como ponto de confluência entre diversas correntes da música brasileira.
A parceria com o percussionista Marcelo Poleze Silva adiciona camadas de complexidade rítmica que dialogam diretamente com os corpos do elenco, estabelecendo uma integração entre movimento e som que remete às práticas comunitárias das rodas de samba. Os instrumentos de percussão, fundamentais nas tradições musicais afro-brasileiras, atuam como extensões dos corpos em cena.
O ambiente visual de Encruzilhada permite ligações entre presença física e espacialidade. O cenário, marcado por desenhos que evocam a estética do grafite urbano e por representações de entidades das religiões de matriz africana, transforma o palco em um portal entre mundos, enquanto o figurino, de aparência casual mas carregado de significados, destaca-se pela deliberada apropriação da camisa amarela da seleção brasileira – um ato político de resgate de um símbolo nacional sequestrado por discursos autoritários.
As vestes, adornadas com saudações a Exu e elementos gráficos que remetem às encruzilhadas, funcionam como uma segunda pele que amplifica o discurso corporal dos intérpretes. Complementando esta narrativa visual, a iluminação alterna momentos de penumbra opressiva e clarões de esperança, construindo atmosferas que reforçam a narrativa fragmentada e pulsante que emerge dos corpos em estado de resistência e celebração.
Nas sequências iniciais, a opção por manter determinadas zonas do palco em penumbra atua como comentário social sobre os mecanismos de invisibilização operados pelo sistema capitalista contemporâneo. Esta escuridão seletiva explicita visualmente as dinâmicas de exclusão que relegam determinados corpos e territórios às sombras do panorama social. Ao longo da performance, a luz adquire qualidades quase coreográficas, dançando junto aos intérpretes, ora revelando detalhes minuciosos, ora expandindo-se em feixes amplos que abraçam toda a cena.
Encruzilhada afirma-se como manifestação artística decolonial que, através da potência expressiva dos corpos, da riqueza musical e da dramaturgia fragmentada, desconstrói estruturas de dominação historicamente estabelecidas. O espetáculo questiona a lógica racista de produção de identidades enquanto busca formas alternativas de existência e resistência. Sua força reside na capacidade de transformar linguagens artísticas em posicionamento político, sem abrir mão da experiência estética estimulante e rica em nuances. Ao celebrar a complexidade da identidade brasileira através de seus encontros e desencontros, a obra convida o público a habitar poeticamente o labirinto de possibilidades que emerge quando nos permitimos existir nas encruzilhadas.
Ficha Técnica
Direção Geral e Artística: Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina
Direção Musical e Composição: Zeca Duarte
Intérpretes Criadores: Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina
Thiago Roque
Percussão: Marcelo Poleze Silva
Sonorização: Haik Yermia Khatchirian
Assistência de Palco: Kaynan Cousseau Ribeiro
Dramaturgia, iluminação e Figurino: Paula Giusto
Produção Cultural e Executiva : Uyara Camargo
Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre