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Território da palavra
Crítica: O Céu da Língua

Gregório Duvivier em O Céu da Língua. Foto: Adriano Escanhuela / Divulgação

“A verdade é que a poesia é inútil. Nunca estive num avião em que alguém se levantou e disse: tem algum poeta nesse voo? Meu marido! Ele está sentindo alguma coisa que ele não sabe o nome. Ele enxergou o abismo da existência e precisa de alguma metáfora. Uma assonância, uma aliteração, qualquer coisa.”

A provocação de Gregório Duvivier em O Céu da Língua, logo após citar trecho de Os Lusíadas (Canto Primeiro) de Luís Vaz de Camões — “As armas e os barões assinalados / Que da ocidental praia Lusitana, / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana” — funciona como ironia refinada que questiona frontalmente a lógica utilitarista do mundo contemporâneo. Ao declarar inútil aquilo que a montagem inteira se dedica a exaltar, Duvivier estabelece posicionamento contra o senso comum que relega a poesia à marginalidade diante das necessidades práticas. Esta estratégia retórica prepara o terreno para a descoberta central do espetáculo: mostrar como a poesia habita secretamente cada palavra nossa, transformando o cotidiano em território poético inexplorado. É precisamente nessa capacidade de transformar o familiar em descoberta que reside o brilho deste monólogo de noventa minutos.

Já próximo ao final da peça, Duvivier confessa “Decassílabos. Esse é o real motivo de eu fazer essa peça. Tenho obsessão por eles…”, expondo a arquitetura do projeto: uma homenagem à métrica que atravessa séculos, conectando Camões aos grandes letristas populares, a tradição clássica à música popular brasileira. Quando demonstra como Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa, gravada primeiramente por Silvio Caldas e que se tornou grande sucesso, esconde decassílabos perfeitos em sua melodia, ou quando descortina a sofisticação métrica na canção Língua de Caetano Veloso, Duvivier constrói ponte poética que une tradição literária e cultura popular, passado e presente. Assim, esta obsessão pelos decassílabos atua como fio condutor invisível que costura toda a apresentação.

Estreado em Lisboa no contexto das comemorações dos 500 anos de Camões, O Céu da Língua fez temporadas de sucesso em São Paulo e outras cidades e foi visto por mais de 80 mil espectadores em sua circulação nacional. A calorosa recepção no Recife, com três sessões esgotadas, motivou o próprio Duvivier a anunciar novas apresentações na capital pernambucana ainda em 2025.

Público se reconhece nas convicções do artista. Foto: Adriano Escanhuela / Divulgação

Público e Recepção: O Filtro da Audiência

A audiência de O Céu da Língua constitui segmento majoritariamente urbano, escolarizado, de classe média, culturalmente interessada, que acompanha e admira o trabalho de Duvivier. Esta plateia conhece seu percurso no YouTube, suas participações televisivas no Porta dos Fundos e Greg News, sua presença combativa nas redes sociais, sua literatura e seu posicionamento político inequívoco.

São espectadores que se identificam com suas ideias progressistas, sua oposição consistente ao projeto bolsonarista e sua defesa de valores democráticos e inclusivos. A recepção entusiástica deriva, além da qualidade da obra, da capacidade de validar e expandir referências culturais já presentes neste público que se reconhece no artista e em suas convicções.

Por outro lado, aqueles que rejeitam Duvivier pelas mesmas razões políticas que o tornam admirado por seus seguidores simplesmente não frequentam o tipo de teatro que ele faz. Esta segmentação da audiência cria um fenômeno interessante: embora O Céu da Língua não se configure como peça explicitamente política, existe uma dimensão política substancial na própria composição de sua plateia e na valorização democrática da linguagem que propõe.

Duvivier transita entre reflexões linguísticas, declamações poéticas e observações humorísticas Foto: Adriano Escanhuela / Divulgação

Gregório Duvivier constrói uma interpretação de ator tecnicamente maduro, capaz de sustentar interesse por hora e meia apoiado fundamentalmente na palavra. Sua movimentação pelo palco demonstra consciência espacial aguçada: aproxima-se da plateia para criar intimidade, recua para observações panorâmicas, utiliza pausas como pontuação dramática. O timing cômico prospera especialmente quando emerge das próprias contradições e absurdos inerentes aos fenômenos linguísticos.

Apesar da excelência geral do desempenho, alguns aspectos técnicos pontuais merecem atenção. Em determinados momentos, a dicção de Duvivier apresenta desafios que podem comprometer a compreensão parcial do texto. A velocidade acelerada em certas passagens, combinada com uma articulação ocasionalmente menos precisa, resulta na perda de vocábulos ou trechos. Isso é particularmente relevante em uma encenação que se baseia na palavra e em suas nuances semânticas e sonoras. Ajustes pontuais no ritmo da fala e maior atenção à clareza articulatória poderiam aprimorar a recepção da montagem, garantindo que a riqueza do texto seja plenamente acessível.

A arquitetura de O Céu da Língua revela uma articulação meticulosamente planejada onde os temas se entrelaçam de maneira fluida e coerente. Duvivier demonstra maestria ao transitar entre reflexões linguísticas, declamações líricas e observações humorísticas. O roteiro, integralmente publicado no livro-libreto-programa-zine, incorpora conceitos complexos de linguística, semântica, métrica e fonética de forma subliminar, convocando teóricos sem citá-los explicitamente, evitando que o conteúdo se torne árido ou excessivamente acadêmico.

Esta abordagem textual permite que o trabalho mantenha seu caráter despretensioso sem abdicar da profundidade intelectual. As transições entre os diferentes blocos temáticos são costuradas através de associações livres, jogos verbais e conexões inesperadas que mostram a inteligência do texto e a habilidade do intérprete. O mérito consiste em manter atenção em monólogo de noventa minutos sem narrativa convencional, personagens ou conflitos tradicionais.

A dramaturgia incorpora conceitos de linguística, semântica, métrica e fonética. Foto: Adriano Escanhuela

O humor chega em camadas. Nos momentos mais felizes, a comicidade emerge dos próprios absurdos da língua portuguesa, como termos que provocam desconforto inexplicável: “afta”, “íngua” e “seborreia”.

Sob a direção de Luciana Paes, a montagem adota uma estética conscientemente minimalista que intensifica o foco na performance de Duvivier. O palco é mantido despojado, sem cenários elaborados ou elementos que possam competir com a centralidade da palavra e do intérprete.

As projeções visuais, criadas por Theodora Duvivier, formam imagens que dialogam poeticamente com as expressões ditas. A iluminação de Ana Luzia de Simoni emprega contrastes cromáticos e variações de intensidade que estabelecem ambientes distintos conforme o tom das diferentes passagens.

A dimensão musical da peça, com o contrabaixista Pedro Aune, amplifica o clima criado pelo texto. Canções como Chão de Estrelas e Livros são integradas com precisão, destacando a presença da poesia na cultura popular brasileira.

Theodora Duvivier trabalha as imagens no retroprojetor. Foto: Adriano Escanhuela / Divulgação 

Pedro Aune ao contrabaixo desenvolve a trilha sonora. Foto: Adriano Escanhuela / Divulgação

O figurino de Elisa Faulhaber e Brunella Provvidente materializa visualmente a proposta conceitual através da combinação entre jaqueta de inspiração esportiva contemporânea com zíper e gola de rufos elisabetana. Esta justaposição temporal comunica eficazmente a ideia central: como a língua portuguesa conecta diferentes épocas históricas. Durante a apresentação, Duvivier explica a origem da gola através de anedota cômica sobre a Rainha Elisabeth e sua suposta sarna, demonstrando como elementos aparentemente arbitrários da moda carregam histórias fascinantes.

Duvivier conduz o público por questionamentos sobre como os vocábulos moldam nossa percepção da realidade. O ator cria momentos teatrais prazerosos que exibem riquezas linguísticas cotidianamente ignoradas, construindo comunidade cultural através da celebração da palavra compartilhada. 

Partindo da ironia de declarar inútil algo que estrutura nosso pensamento e comunicação, O Céu da Língua constitui uma experiência de redescoberta coletiva onde saímos do teatro carregando renovado apreço pela riqueza poética que habita nossa própria fala cotidiana. Neste sentido, Duvivier reverencia a língua portuguesa, oferecendo uma reflexão sobre nossa relação com as palavras, domínio onde a poesia se mantém viva e acessível para quem se dispõe a escutar com atenção renovada.

 

Ficha Técnica

Interpretação e Texto: Gregório Duvivier
Direção e Dramaturgia: Luciana Paes
Assistência de Direção e Projeções: Theodora Duvivier
Direção Musical e Execução da Trilha: Pedro Aune
Cenografia: Dina Salem Levy
Assistente de Cenografia: Alice Cruz
Figurino: Elisa Faulhaber e Brunella Provvidente
Iluminação: Ana Luzia de Simoni
Diretor Técnico: Lelê Siqueira
Diretor de Palco: Feee Albuquerque
Visagismo: Vanessa Andrea
Fotos de Divulgação: Demian Jacob
Fotos de Cena: Joana Calejo Pires e Raquel Pellicano
Design Gráfico Publicação: Estúdio M-CAU – Maria Cau Levy e Ana David
Identidade Visual Divulgação: Laercio Lopo
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
Marketing Digital: Renato Passos
Redes Sociais: Lucas Lentini e Theodora Duvivier
Administração: Fernando Padilha e Lucas Lentini
Produção Executiva: Lucas Lentini
Direção de Produção: Clarissa Rockenbach e Fernando Padilha
Produção: Pad Rok

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