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A Baleia questiona preconceitos

José de Abreu carrega 120 quilos de espuma e silicone para interpretar um homem de 270 quilos que enfrenta os julgamentos de uma sociedade excludente. Foto Nil Canine / Divulgação

Rejeitado por uma sociedade que pune diferenças com exclusão, o protagonista do espetáculo A Baleia enfrenta preconceitos que transformaram amor em condenação. Quando José de Abreu se veste com 120 quilos de espuma, silicone e um sistema de refrigeração que lembra um colete à prova de balas, ele encarna muitas pessoas que a sociedade decide tornar invisíveis por não se encaixarem em padrões impostos.

Entre os dias 31 de julho e 3 de agosto, no Teatro Luiz Mendonça, em Recife, essa história sobre isolamento e rejeição ganha vida através de um ator que, aos 79 anos, decidiu encarar um dos papéis mais desafiadores fisicamente do teatro contemporâneo.

Na peça, essa figura pesava 180 quilos quando seu companheiro Alan se matou. Hoje pesa 270. Samuel D. Hunter, dramaturgo que criou esta história, entendeu algo que poucos captam: obesidade mórbida raramente é sobre comida. É sobre fome – fome de aceitação, de amor, de um lugar no mundo onde você seja aceito sem precisar se desculpar por existir.

O texto transforma o protagonista numa geografia emocional onde cada marca no corpo conta uma história de rejeição social. Cada respiração ofegante ecoa gritos de socorro ignorados por uma sociedade que prefere julgar a compreender. Luís Artur Nunes, que assina tradução e direção, trabalha com uma narrativa que expõe feridas abertas pelo preconceito através de um drama familiar.

Há algo de corajoso – e ligeiramente temerário – em José de Abreu encarar este papel. Durante duas horas por noite, o ator carrega um figurino que simula obesidade mórbida: próteses faciais que alteram sua fisionomia, camadas de neoprene e espuma que reconstroem sua silhueta, e um sistema de refrigeração para evitar desmaios. Carlos Alberto Nunes, figurinista da produção, criou uma engenharia corporal complexa.

Entre cenas, Abreu precisa de ajuda para se movimentar e de pausas constantes para hidratar-se. O ator transformou seu próprio corpo numa experiência temporária para entender as barreiras permanentes que a sociedade impõe a quem considera “diferente”.

A Polêmica da Representatividade

A escolha de José de Abreu gerou debates intensos nas redes sociais desde o anúncio da produção. O público se dividiu entre aqueles que elogiam a entrega técnica e o trabalho de transformação física, e uma maioria que questiona se o papel não deveria ter sido destinado a um ator com biotipo mais próximo do personagem.

Reações nas publicações de divulgação revelam uma discussão contemporânea sobre representatividade no teatro. Críticas à “fantasia de gordo” e acusações de “insensibilidade” se misturam aos ataques políticos que Abreu costuma receber por seus posicionamentos públicos, criando um ambiente de debate que extrapola questões artísticas.

Este embate espelha discussões globais sobre quem pode interpretar quais experiências em cena. Em 2025, a ideia de um ator magro simular obesidade através de próteses encontra resistência de grupos que defendem maior autenticidade na representação de corpos marginalizados pela gordofobia. A pergunta que permanece é: representação é ponte ou barreira entre realidades?

Gabriela Freire e José de Abreu em A Baleia. Foto Renato Mangolim Divulgação

A obra reflete questões brasileiras contemporâneas, onde pessoas LGBTQIA+ ainda são expulsas de casa, onde pessoas obesas sofrem discriminação médica sistemática, onde instituições religiosas pregam amor enquanto praticam exclusão. Chega ao Brasil num momento em que fundamentalismo religioso e intolerância crescem como epidemias sociais.

O protagonista perdeu Alan para o suicídio depois que a igreja da família os rejeitou. No Brasil de 2024, essa história se repete diariamente. Segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o país lidera assassinatos de pessoas trans no mundo. A gordofobia, por sua vez, afeta pessoas em todas as esferas sociais, mas políticas públicas de combate à discriminação permanecem insuficientes.

Hunter construiu uma narrativa que dialoga diretamente com realidades de exclusão social contemporâneas.

O título evoca Herman Melville e sua criatura oceânica, símbolo de forças incontroláveis e obsessões humanas. Na obra de Hunter, a baleia representa tudo aquilo que a sociedade considera “grande demais” para aceitar – corpos, amores, dores, necessidades. Seu protagonista é uma baleia humana: imponente, incompreendido, vítima de uma sociedade que teme aquilo que não consegue categorizar.

Cada pessoa carrega aspectos de si que aprendeu a esconder porque o mundo decidiu que são inaceitáveis. Para alguns, é o tamanho do corpo. Para outros, a orientação sexual. Para muitos, simplesmente a experiência de existir numa sociedade que cobra perfeição mas oferece apenas julgamento e exclusão.

Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e Alice Borges estão no elenco – cada um representando uma faceta das relações humanas que se tornam complexas quando atravessadas pelo preconceito.

O Teatro e Seus Reflexos
Durante 100 minutos, José de Abreu nos força a encarar aspectos perturbadores sobre exclusão social. Seu personagem representa todos aqueles que a sociedade prefere ignorar: pessoas obesas, homossexuais, enlutados, todos que não se encaixam em padrões estabelecidos por uma sociedade gordofóbica e intolerante. Sua solidão espelha a solidão de milhões que vivem à margem do que consideramos “normal”.

O espetáculo opera como diagnóstico de uma época onde conexões virtuais substituíram abraços reais e onde julgamentos se tornaram mais rápidos que compaixão. Cada personagem que entra no apartamento claustrofóbico carrega seus próprios preconceitos e limitações, criando um microcosmo das relações sociais contemporâneas marcadas pela discriminação.

Hunter questiona nossa capacidade de enxergar além das aparências impostas pelo preconceito, de oferecer amor incondicional, de aceitar diferenças sem transformá-las em motivos de exclusão. A luta por reconexão familiar carrega a busca humana por pertencimento em uma sociedade que insiste em marginalizar.

Talvez a maior ironia seja esta: enquanto discutimos quem pode representar este personagem em cena, quantos como ele permanecem invisíveis em nossa sociedade, esperando apenas que alguém os veja além dos preconceitos que carregamos?

SERVIÇO

A Baleia
Teatro Luiz Mendonça – Recife
31/07 e 01, 02, 03/08
Qui/Sex: 20h | Sáb/Dom: 18h
Duração: 1h40
Ingressos: Sympla e bilheteria

FICHA TÉCNICA

Texto: Samuel D. Hunter
Tradução e Direção: Luís Artur Nunes
Elenco: José de Abreu, Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e Alice Borges (participação especial)
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: Carlos Alberto Nunes
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha Sonora: Federico Puppi
Visagismo: Mona Magalhães
Preparação Corporal: Jacyan Castilho
Preparação Vocal: Jane Celeste
Assistente de Direção: Claudio Benevenga
Direção de Produção: Alessandra Reis
Produção Executiva: Cristina Leite

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