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Recife mantém respiração teatral
com programação atraente

 

Neste final de semana, a cidade oferece o cardápio cultural possível: do monólogo clássico ao musical biográfico, como Rita Lee – Uma Autobiografia Musical com Mel Lisboa, passando por experimentos cênicos e espetáculos para a família toda. Foto: Divulgação

Sharlene Esse no elenco de O Shá da Meia Noite. Foto: Ivana Moura

os Irmãos Gandaia apresentam Balaio na programação do Festival Cachoeira das Artes

Recife oferece por esses dias aquela programação cultural que conhecemos bem: nem revolucionária, nem inovadora, mas consistente. São atrações de teatro, música e dança que cumprem o papel de manter a cidade respirando culturalmente, oferecendo desde o solo autobiográfico até o musical infantil que agrada os pais.

A agenda não promete mudanças de paradigma, radicalidade ou experiências transformadoras, mas entrega o que se espera: espetáculos bem feitos, alguns nomes conhecidos retornando a papéis consagrados, festivais que misturam tradição e contemporaneidade, e uma dose necessária de entretenimento cultural que garante os teatros funcionando e o público frequentando.

Neste fim de semana, quem procura opções culturais na capital pernambucana encontra desde Mel Lisboa revisitando Rita Lee até experimentos de teatro físico, passando por peças gratuitas e produções que custam o preço de um jantar. É a cultura como ela é no Recife-Pernambuco: nem sempre excepcional, mas presente e acessível, que pode trazer conforto ou gerar discussão.

Mel Lisboa retorna ao papel que a consagrou. E exibe no Teatro Luiz Mendonça seis sessões de Rita Lee – Uma Autobiografia Musical (18 a 21/09). Desta vez baseada na autobiografia da cantora (bestseller com 200 mil exemplares), sob direção de Márcio Macena e Débora Dubois, a montagem transforma confissão editorial em partitura cênica, explorando “honestidade escancarada” como material dramatúrgico. A produção revisita a trajetória da artista desde a infância até seus últimos dias, com orquestra ao vivo e elenco que inclui Bruno Fraga como Roberto de Carvalho. O espetáculo ocupa o teatro quinta e sexta às 20h, sábado às 16h e 20h, domingo às 15h e 18h.

Se Rita Lee explora a autobiografia através da palavra e da música, outro trabalho investiga memórias e corporeidades de forma completamente diversa. Representando 25 anos de pesquisa franco-brasileira, Enquanto você voava, eu criava raízes (Cia. Dos à Deux) consolida a linguagem de André Curti e Artur Luanda Ribeiro, que prescinde da palavra para investigar corporalidades em trânsito. Premiado por APTR e Shell, o trabalho é bonito, com pesquisa consistente e entrega física surpreendente, que reserva momentos inesperados ao público. O espetáculo dialoga com tradições europeias sem perder especificidade brasileira, seguindo a linha de investigação que caracteriza o grupo. É um dos pontos altos da agenda cultural. A intimidade do teatro pequeno potencializa a recepção.

Enquanto você voava, eu criava raízes, espetáculo de excelente qualidade técnica e pesquisa de linguagem

Também navegando entre memória e identidade, mas com outra abordagem performática, Sharlene Esse, primeira dama trans do Teatro Pernambucano e referência LGBTQIA+ consolidada há quatro décadas na cena local, retorna aos palcos em O Shá da Meia Noite, comédia que problematiza disputas por estrelato. Com 40 anos de carreira, Sharlene continua sendo presença fundamental no teatro pernambucano, em trama de intrigas artísticas entre cantora veterana e coristas invejosos.

Ainda na trilha dos solos autobiográficos, a artista Hhblynda ocupa o Espaço O Poste (Rua do Riachuelo, 641, Boa Vista) nesta sexta-feira, 19/09, às 19h, com HBLYNDA EM TRANSito, criação que mescla performance, dança, música e teatro. O espetáculo compartilha suas vivências atravessando infância, descobertas da sexualidade e o florescer da identidade não binária. Ingressos: R$ 15 (meia) e R$ 30 (inteira).

Da performance autobiográfica para a dança como linguagem ancestral, Babi Johari e Caio Pinheiro apresentam gratuitamente no Teatro Arraial o espetáculo Híbridos – Enlaces, que explora ancestralidade das conexões através de dança fusionada de base oriental árabe, buscando liberdade nos movimento.

Contrastando com abordagens mais intimistas, a tecnologia se faz presente com The Jury Experience, adaptação brasileira de formato internacional dirigida por Talita Lima, que o Teatro RioMar apresenta no sábado (20), às 20h30. O espetáculo transforma espectadores em jurados de caso criminal fictício, utilizando códigos QR e interatividade digital para questionar limites entre ficção e realidade. A dramaturgia participativa de 75 minutos coloca decisões éticas nas mãos do público, buscando criar uma experiência imersiva onde cada sessão pode ter desfecho diferente dependendo das escolhas da plateia. Ingressos a partir de R$ 60.

Murilo Freire em Esquecidos por Deus

Voltando ao formato mais tradicional do teatro, Murilo Freire traz ao SESC Goiana nos dias 19, 20, 26 e 27/09, às 19h30, o drama Esquecidos por Deus, com entrada gratuita. O monólogo, baseado na obra O Livro das Personagens Esquecidas de Cícero Belmar, apresenta o ator interpretando diferentes personagens em uma encenação que preza pela proximidade com a plateia. O ator interpreta um bandido que se crê Deus. Lembranças saudosas de uma infância. Da irmã, do pai, da mãe… Um capanga grotesco arranca risos. Um casal é feito refém.

Enquanto o teatro explora as múltiplas facetas da linguagem cênica, a dança encontra seu espaço coletivo no Shopping Patteo Olinda, que recebe nos dias 20 e 27 de setembro, a partir das 16h, o 3º Festival de Dança e Cultura, também gratuito, reunindo mais de 30 grupos e escolas de dança com apresentações que vão do balé ao jazz.

A programação de festivais ganha continuidade com o Teatro Hermilo Borba Filho, que inaugura o Festival Cachoeira das Artes na sexta (19) com O Menestrel recita ‘O Guardador de Rebanhos’, às 19h30. O espetáculo, com direção de Márcio Fecher e música ao vivo do grupo Los Negrones, recria a atmosfera lírica do heterônimo Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa.

A música encontra protagonismo em duas noites do 18º Festival Internacional Cena CumpliCidades no Teatro do Parque. Na sexta (19), às 20h, a trombonista Neris Rodrigues apresenta Músicas do Mundo, seu primeiro projeto autoral com orquestra, explorando sonoridades que transitam entre jazz, música brasileira e world music. No sábado (20), também às 20h, a Banda Chanfrê – formação franco-brasileira que reúne músicos franceses e pernambucanos – apresenta fusão entre música francófona, jazz e ritmos do Recife, criando pontes sonoras entre duas culturas. Ingressos: R$ 20 (meia para todos).

Paulo Cesar Freire no papel de Francisco, um instrumento de paz, com texto e direção de Roberto Costa. Foto: Renan Andrade

Das fusões musicais contemporâneas para a tradição religiosa musicada, Francisco, um instrumento de paz sobe ao palco do Teatro Guararapes no dia 19/09, às 20h, com texto e direção de Roberto Costa. O musical promete uma experiência de fé e arte para todos os públicos, religiosos ou não. A história de Francisco de Assis é apresentada desde sua infância, passando pelos conflitos familiares, sua ida à guerra, a prisão e a conversão nas ruínas de São Damião. A peça narra sua poderosa transformação, que o levou a viver o evangelho na prática e a criar a ordem dos frades menores, sempre pautado pela caridade e pelo amor ao próximo. Para dar vida ao santo, o ator Paulo Cesar Freire foi convidado, e a produção conta com um grande elenco de músicos, atores e cantores. A trilha sonora será executada ao vivo, sob a direção musical da maestrina Hadassa Rossiter, do Conservatório de Música de Pernambuco. Valores: de R$ 50 a R$ 150.

A programação contempla ainda o público infantil, com o domingo (21) oferecendo três opções especiais. O Mundo Mágico de Peter Pan no Teatro Barreto Júnior (16h) traz o musical inspirado na obra de J.M. Barrie, acompanhando os irmãos Wendy, João e Miguel em sua jornada à Terra do Nunca, onde enfrentam o Capitão Gancho. Ingressos: R$ 50 (meia) e R$ 100 (inteira). Já no teatro Hermilo, a palhaça Gardênia, vivida por Luíza Fontes, embarca em uma aventura que promete ser divertida e emocionante em A Boba, uma jornada  (16h), enquanto os Irmãos Gandaia apresentam Balaio (17h30), espetáculo que celebra a cultura pernambucana com circo, dança e música.

Ainda na programação adulta do sábado, o clássico naturalista Raimundo (20h, Teatro Barreto Júnior), inspirado em O mulato de Aluísio Azevedo, ganha adaptação de Taveira Junior e direção de Filipe Enndrio. A trama acompanha Raimundo, um jovem culto que retorna da Europa e se depara com os preconceitos, segredos e hipocrisias de uma sociedade marcada pelo racismo e pelas convenções sociais do século XIX. O espetáculo marca a conclusão da Turma de Iniciação Teatral para Adultos do Espaço de Artes Teatralizar.

🎭 SERVIÇO 

QUINTA-FEIRA (18/09)

Rita Lee – Autobiografia Musical – 20h – Teatro Luiz Mendonça
Balaio de Memórias (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20
O Shá da Meia Noite – com Sharlene Esse – 19h30 – Teatro Santa CRuz – Gratuito
Enquanto você voava, eu criava raízes – Cia. Dos à Deux – 20h – Teatro da Caixa, 15/30

SEXTA-FEIRA (19/09)

Enquanto você voava, eu criava raízes – Cia. Dos à Deux – 20h – Teatro da Caixa, 15/30
HBLYNDA EM TRANSito – 19h – Espaço O Poste – R$ 15/30
O Shá da Meia Noite – com Sharlene Esse – 19h30 – Teatro Santa CRuz – Gratuito
Esquecidos por Deus – 19h30 – SESC Goiana – GRATUITO
O Menestrel recita O Guardador de Rebanhos – 19h30 – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Francisco, um instrumento de paz – 20h – Teatro Guararapes – R$ 50 a 150 Sessão Única
Músicas do Mundo – 20h – Teatro do Parque – R$ 20
Rita Lee – Autobiografia Musical – 20h – Teatro Luiz Mendonça
O Sistema Morreu (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20
Híbridos – Enlaces – 19H – Teatro Arraial – GRATUITO

SÁBADO (20/09)

Enquanto você voava, eu criava raízes – Cia. Dos à Deux – 20h – Teatro da Caixa, 15/30
Esquecidos por Deus – 19h30 – SESC Goiana – GRATUITO
CALIUGA + Leitura Por Elise – 17h e 19h30 – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Banda Chanfrê – 20h – Teatro do Parque – R$ 20
Raimundo – 20h – Teatro Barreto Júnior
Rita Lee – Autobiografia Musical – 16h e 20h – Teatro Luiz Mendonça
The Jury Experience – 20h30 – Teatro RioMar – A partir de R$ 60
3º Festival de Dança – 16h – Shopping Patteo Olinda – GRATUITO
Sonho de uma Noite de Verão (FETED) – 16h – Teatro Apolo – R$ 20
Sonetos para um quase amor (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20
Híbridos – Enlaces – 19H – Teatro Arraial – GRATUITO

DOMINGO (21/09)
O Mundo Mágico de Peter Pan – 16h – Teatro Barreto Júnior – R$ 50/100
A Boba, uma jornada – 16h – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Balaio (Irmãos Gandaia) – 17h30 – Teatro Hermilo – R$ 15/30
Rita Lee – Autobiografia Musical – 15h e 18h – Teatro Luiz Mendonça
Três Histórias (FETED) – 16h – Teatro Apolo – R$ 20
De Noite, Sombras e Ausências (FETED) – 19h – Teatro Apolo – R$ 20

INFORMAÇÕES GERAIS
FETED continua até 28/09 no Teatro Apolo
Festival Cachoeira das Artes: @cachoeiradasartes
Cena CumpliCidades: cenacumplicidades.com | @ccumplicidades
A programação cultural conta com apoio do Funcultura, Fundarpe, FUNARTE e diversos parceiros culturais da cidade.

 

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Quando a imagem pensa
antes da palavra
Crítica: Enquanto você voava,
eu criava raízes

André Curti e Artur Luanda Ribeiro em momento de suspensão aérea, explorando a tensão entre peso e leveza que caracteriza o espetáculo. Foto: Nana Moraes / Divulgação

A criação da Cia. Dos à Deux, Enquanto você voava, eu criava raízes (com direção e performance de André Curti e Artur Luanda Ribeiro), desloca a centralidade narrativa para um campo de experiência tátil-visual-sonora. A obra fabrica estados de mundo em vez de contar histórias, materializando no palco o que Jacques Rancière denomina “redistribuição do sensível” — isto é, uma reconfiguração das formas de percepção que determina o que pode ser visto, ouvido e pensado, alterando as fronteiras entre arte e vida, entre o estético e o político. Essa redistribuição reprograma o olhar do espectador através de uma estética que privilegia o corpo como lugar primordial de conhecimento, onde a experiência sensorial antecede e constrói o pensamento. 

Nos primeiros minutos, imagens com lastro concreto — o jarrão, a superfície, o contorno humano — oferecem âncoras de reconhecimento que logo se desfazem em metamorfoses contínuas. A operação revela maestria técnica no sentido mais elevado do termo. Aqui, a precisão artística funciona como método de investigação sensível: o domínio técnico libera possibilidades perceptivas que convocam a plateia a pensar com os sentidos e suportar a deriva sem a muleta do enredo. Essa precisão constitui artesania refinada a serviço de uma poética do impossível — condição necessária para que o espectador aceite a lógica onírica da cena e se permita habitar um regime de percepção ampliado.

Nos primeiros minutos, imagens com lastro concreto — o jarrão, a superfície, o contorno humano — oferecem âncoras de reconhecimento que logo se desfazem em metamorfoses contínuas. A operação é, sim, virtuosismo plástico no sentido mais elevado do termo. Aqui, o virtuosismo funciona como método de investigação sensível: a maestria técnica libera possibilidades perceptivas que convocam a plateia a pensar com os sentidos e suportar a deriva sem a muleta do enredo. Virtuosismo, neste contexto é precisão artesanal a serviço de uma poética do impossível — condição necessária para que o espectador aceite a lógica onírica da cena e se permita habitar um regime de percepção ampliado.

Enquanto você voava, eu criava raízes, da Cia. Dos à Deux. Foto: Virginia Benevenuto

A construção cênica revela precisão milimétrica : transições limpas, modulações de peso calculadas, uso da inércia como material composicional. Essa precisão garante a possibilidade do risco. Curti e Ribeiro, suspensos em esferas metálicas ou desafiando a gravidade em coreografias aéreas, sustentam uma dialética entre controle e vertigem — ética do ofício que torna verossímil o impossível: levitar sem fugir do chão, criar raízes no ar.

O risco físico constitui condição de verdade do gesto. Essa precisão técnica delicada sustenta a liberdade poética. Tudo parece inevitável porque tudo é rigorosamente construído.

A criação visual (Miguel Vassy e Laura Fragoso) atua como partitura invisível que atravessa corpos e espaço. As projeções ora encarnam, ora evaporam, deixando vestígios que funcionam como pistas de leitura. Esse regime de vestígio impede o esgotamento do sentido, evitando que significados explícitos saturem a experiência perceptiva. Cada figura nasce para desaparecer, gerando intervalos produtivos em que o espectador completa lacunas e participa ativamente da construção de sentido.

A luz recorta, erode, expande; a sombra escreve. A alternância entre recorte preciso e penumbra respirada cria uma topologia móvel que desloca continuamente os polos figura/fundo. O palco deixa de constituir plano para tornar-se organismo vivo.

A música original de Federico Puppi opera como força de modulação temporal, expandindo e contraindo a duração cênica. A trilha sonora estabelece contraponto com as imagens, criando fricções produtivas entre som e gesto. Essa estratégia compositiva evita a redundância audiovisual, gerando o que se pode denominar “terceiro corpo” — a dimensão sonora da cena que impede o deslizamento para a beleza contemplativa e mantém a experiência em estado de tensão criativa.

Momento de fusão entre corpo e projeção visual, evidenciando a integração entre elementos performativos e tecnológicos da obra. Foto: Virginia Benevenuto

Os performers exploram diferentes níveis espaciais, criando diálogo vertical entre enraizamento e elevação. Foto: Virginia Benevenuto

Proponho ler a obra como cartografia do abismo doméstico. “Doméstico” não pela trivialidade, mas porque imagens que sugerem materiais de casa (jarros, superfícies, contornos familiares) convertem-se em portais para o indizível. A cena captura o momento anterior ao símbolo e o posterior ao reconhecimento, mapeando como o íntimo se abre para o informe sem perder delicadeza.

Em vez de representar deslocamentos (migração, exílio, pertencimento), a obra desenha condições de deslocabilidade. Não encena “quem parte” ou “quem fica”; fabrica gravidades que ora prendem, ora rarefazem. Vínculo vira força, memória vira massa, desejo vira vetor.

 Essa poética contesta a rigidez dicotômica contemporânea ao questionar as polaridades que moldam nossa compreensão — liberdade/prisão, medo/coragem, paralisia/movimento —, revelando-as como manifestações de uma mesma essência dinâmica. A fusão entre voo e queda livre, numa ação única, contraria uma época obsessivamente apegada a polarizações. Essa dissolução das dicotomias emerge como reencantamento necessário.

Os corpos que se lançam no abismo não flutuam ou caem; flutuam enquanto caem. Não existem fronteiras, história linear ou palavras — e precisamente nessa ausência a obra floresce, permitindo projeções individuais em um universo de símbolos compartilhados.

Simultaneidade entre movimento ascendente e enraizamento. Foto: Virginia Benevenuto

A obra trabalha operações composicionais fundamentais que constituem as articulações de uma mesma arquitetura dramatúrgica. A elasticidade temporal manifesta-se na alternância calculada entre suspensão e precipitação, criando um pulso que organiza a expectativa sem depender de intriga narrativa — o tempo cênico respira, retém e libera, ancorando a dramaturgia no próprio ritmo da atenção. Simultaneamente, um contraponto tônico governa a relação entre os corpos: quando um performer enraíza, concentrando peso e densidade, o outro se lança ao voo, rarefazendo-se em direção ao alto, estabelecendo uma distribuição dinâmica de forças que transcende a ilustração literal de opostos. Finalmente, o silêncio opera como campo ressonante, como substância densa que amplifica microvariações gestuais, convertendo o mínimo em acontecimento e permitindo que cada modulação corporal se torne evento dramatúrgico significativo.

A peça politiza a percepção, não o discurso, isto é através da reorganização das formas de perceber, não através de conteúdos políticos explícitos. Convoca o reconhecimento, no próprio corpo, da gramática do deslocamento sem enunciar temas de migração ou exílio. Propõe vínculos móveis — raízes provisórias capazes de sustentar encontros no ar. Constitui uma política do sensível que reeduca a atenção: enraizar não significa imobilizar; voar não significa evadir. 

Exploração das possibilidades expressivas do objeto cênico em diálogo com as projeções. Foto: Virginia Benevenuto

Momento de integração entre elementos técnicos e performativos. Foto: Virginia Benevenuto

Tensões Produtivas e Limites Perceptivos 

A economia de elementos verbais e a densidade imagética da obra, especialmente em seu início, exigem do espectador um regime de atenção sensorial, que nem todos os públicos abraçam imediatamente, habituados à centralidade narrativa do teatro textual. Essa fricção inicial, contudo, integra o dispositivo. A obra demanda tempo para reprogramar o olhar e alinhar corpo e atenção à sua lógica sensorial.

A linguagem cênica da obra  — que integra escolhas estéticas e composicionais visuais, sonoras e corporais, conforme detalhamento disponível no programa da montagem — caracteriza-se por uma coesão visual que instala uma superfície de aparente fluidez e precisão harmoniosa. Para que essa harmonia não diluísse o mergulho temático proposto, focado na exploração dos “abismos internos”, dos “medos, angústias e feridas profundas” e da “união do humano com o primitivo”, o trabalho aciona intencionalmente rupturas e dissonâncias. Essas se manifestam em pausas densas, ruídos inesperados e sombras móveis que, ao quebrar a aparente homogeneidade, reintroduzem um contato mais direto entre a construção estética e o mergulho temático da obra.

Essa dinâmica, ao convidar o espectador a uma atenção mais refinada às nuances e dissonâncias, amplia o campo de leitura. Constitui uma estratégia que instiga a perceber além do imediatamente dado, a apreender as minúcias e as pequenas perturbações que permeiam a experiência cênica, expandindo as camadas de sentido para territórios não-verbais de significação. 

Enquanto você voava, eu criava raízes expande um laboratório de percepção em que imagens pensam e afetos curvam o tempo. Com precisão técnica delicada e imaginação formal ousada, a Cia. Dos à Deux institui uma “coreografia da gravidade afetiva” que dissolve dicotomias existenciais em favor de uma cartografia do abismo, estabelecendo voo e raiz como tecnologias poéticas de redistribuição do sensível que desafiam os modos convencionais de habitar o mundo.

SERVIÇO

Enquanto você voava, eu criava raízes
12 a 13 de Setembro – Sexta e Sábado às 20h
De 16 a 20 de Setembro – de terça a sábado, às 20h

CAIXA Culturral Recife – Av. Alfredo Lisboa, 505, Recife
Ingressos: R$ 30 e R$ 15,

 

 

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