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Entre cisnes e aves de rapina
Crítica: 16 gramas:
peça para Emagrecer
Por Annelise Schwarcz*

Eu vivi com raiva, a ignorando, me alimentado dela, aprendendo a usá-la antes de ela destruir minhas visões, durante a maior parte da minha vida. Uma vez respondi em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva não me ensinou nada. Seu medo da raiva não irá te ensinar nada também.
Audre Lorde

116 gramas: peça para Emagrecer, com Letícia Rodrigues. Foto de Marcos Pastich/PCR.

“Eu nunca vi uma pulsão de morte tão desnuda em cena.” Escrevi para um amigo após sair de 116 gramas: peça para emagrecer. Não que eu possa falar com muita propriedade sobre o que é pulsão de morte e é certo que, caso eu pare para pensar, eu vá me lembrar de mais meia dúzia de peças que eu poderia estampar com esse slogan: “que bela maneira de encenar a pulsão de morte”. O fato é que eu respeito muito a intuição e gosto de manter frescas as primeiras palavras, as primeiras impressões. E foi assim que veio. Dito isso, sendo verdade ou não, fiquemos com essa frase inicial. Entendo pulsão de morte – talvez até de forma muito vulgar – como a tendência à autodestruição, ao desligamento, à aniquilação, ao desfazer-se. O que não significa que não haja a possibilidade de criar, construir e produzir atravessada/o por essa tendência. Esse é o ponto aqui. Tem ligações que só podem ser feitas após alguns desligamentos; caminhos que só podem ser atravessados depois de termos deixado para trás certa bagagem. Ou ainda, para ficar com as palavras de Gilberto Gil:  “tem que morrer para germinar”. 

A protagonista de 116 gramas: peça para emagrecer, uma personagem chamada “a Gorda”, é resultado de um encontro entre a autoficção e a autobiografia da atriz e dramaturga Letícia Rodrigues, que assina também a direção da montagem, em parceria com João Pedro Ribeiro. Ao longo do espetáculo, vemos no palco, junto com a atriz, apenas um biombo transparente, uma amarração de plástico branco que remete a um saco de pancadas ou uma ave, uma roupa preta de bailarina e um telão ao fundo. São as operações de luz e som feitas por Felipe Stucchi e Lana Scott, respectivamente, as responsáveis por adicionar textura e dinamismo às cenas. 

A chegada da atriz, vinda do fundo da plateia, interrompe os dez minutos de lavagem cerebral a que nós, espectadores e espectadoras, estávamos sendo submetidos/as enquanto aguardávamos o início do espetáculo assistindo a um compilado de propagandas da Pepsi nas quais Britney Spears participou. O foco, na maioria dos planos, era a fina silhueta de Britney ou das demais cantoras com ela, como na propaganda com Pink e Beyoncé cantando We will rock you. A peça já havia começado. Já estávamos sendo introduzidos/as a um dos principais eixos da peça: a pressão estética sobre os corpos de mulheres e os efeitos físicos e psíquicos deixados pelas tentativas de se adaptar. 

A montagem – que compõe a programação do 24ª Festival Recife Nacional de Teatro, cujo tema é  “Vozes Femininas” – cresce em relevância nesse cenário. Ao falar sobre Britney Spears ou Gisele Bündchen como referências da adolescência, a personagem traz luz à forma como nós, enquanto mulheres, crescemos com essas referências femininas de magreza, branquitude e fragilidade, expostas irrefletidamente a todos esses padrões e, hoje, vemos que nem mesmo aquelas mulheres que definiram para as demais o que é um ideal de beleza, conseguiram sobreviver a esse padrão. Mesmo a Britney é vítima da estrutura que ela – conscientemente ou não – reforçou durante anos e que segue produzindo novas vítimas; moída pelo mesmo sistema que a levou à fama. 

O sonho da Gorda, como nos diz a personagem, era ser atriz; dançar e causar o efeito que Britney causava. Ela – que já teve o Índice de Massa Corpórea (IMC) 50, o que corresponde à obesidade mórbida de acordo com os números estipulados pela Organização Mundial de Saúde – tinha que emagrecer, mas não sustentava ir para crossfit, nadar, lutar, essas coisas todas achava um saco e acabava abandonando. Então ela decide criar uma peça para emagrecer, porque se ela tivesse que fazer todo esse esforço físico, que fosse em um palco, que fosse uma peça. Após muitos cálculos e pesquisas, a Gorda conclui que ela precisa perder 116 gramas por peça para atingir aquilo que foi estipulado como o peso/o IMC ideal. Para isso, é preciso dançar, lutar, se agitar, fazer polichinelo, pensar, etc. Tudo isso realizado em cena, após se pesar nua em uma balança e dizer em voz alta o quanto está pesando naquela apresentação.

E é aí que entra com força a pulsão de morte descrita no parágrafo inicial: a vertigem entre o desejo de emagrecer, pois supostamente ela só seria feliz quando fosse magra, caminhando junto com a ideia de que para isso é preciso “eliminar metade de mim”, de que vai perder 116g em 116g até não restar mais nada. Apesar do medo de emagrecer e do medo de não se reconhecer após anos conformando sua subjetividade em torno do “ser gorda”, a personagem segue fazendo exercícios físicos enquanto repete inúmeras vezes o quanto odeia o próprio corpo, como odeia ser gorda e como odeia a ideia de ter que ser “body positive” (aceitar e amar o próprio corpo, positivando até mesmo as características fora do padrão de beleza). Ela segue fazendo polichinelos, deixando a pele sobressalente espancá-la a cada salto, o som de tapas ritmados que o polichinelo produz ou como na cena em que empreende uma luta contra uma sacola de plástico – que dentro da peça faz o papel de um cisne, remetendo ao balé Lago dos Cisnes que ela nunca pode dançar enquanto bailarina devido ao seu peso – ao som de Hit me baby one more time de Britney Spears mixado com violinos de balé clássico. 

A raiva do mundo – das cadeiras de plástico, das catracas de ônibus, das pessoas que dizem que ela é bonita de rosto ou das lojas de departamento que só produzem roupas femininas com zíperes frágeis –  se mistura com uma raiva de si mesma, mas essa raiva não estagna num lugar ressentido ou amargurado. Pelo contrário: abre espaço. Não encontrando as oportunidades para dançar balé ou ser atriz em um mundo de angels da Victoria’s Secret, a raiva da Gorda se torna um motor para criar sua cena, seu palco, seu balé, seus termos e, nesse processo, fazer as pazes consigo e com o mundo que a rejeitou. Nessa chave de interpretação, é possível ler o espetáculo como uma fresta para a intimidade de alguém – momento em que a ficção soa demasiadamente biográfica. A montagem não pretende falar em nome das pessoas gordas enquanto um coletivo homogêneo e nem se pretende uma cartilha didática. E, na minha perspectiva, esse é um ponto forte da montagem: estamos assistindo a uma singularidade, isto é, à forma singular que essa pessoa empreendeu uma saída de um circuito asfixiante. Nós, enquanto plateia, independente da nossa relação com a balança, assistimos como voyeurs o desnudar-se não apenas das roupas da Gorda, mas de todo um fluxo de pensamentos íntimos sobre ela mesma e sobre o mundo: suas metáforas, seus gostos, desgostos, histórias, referências, etc. 

A metáfora do Prometeu ao contrário é particularmente tocante. No mito grego, após ter roubado o fogo dos deuses e dado aos homens, o titã Prometeu é castigado por Zeus e tem todo dia seu fígado comido por um pássaro, mas à noite o fígado se regenera. Assim segue pelo restante da sua existência imortal. No caso da protagonista, o pássaro a alimenta. Todo dia ela emagrece um pouco e toda noite esse pássaro deposita comida em sua boca e a engorda mais. “Comer, comer até morrer”, ela cantarola. 

Digamos, com o perdão do trocadilho, que a montagem não tem medo de deixar o peso acontecer. Os expurgos de raiva da Gorda são seguidos por silêncios, respiros, pausas para beber água que não se preocupam em correr com algum alívio cômico para desfazer o desconforto. Os momentos de humor, como a longa viagem em torno da sociedade secreta dos Illuminati, por exemplo, não vem para desfazer o nó. Pelo contrário, adiciona mais uma volta, como uma espécie de desvio: endereçando críticas a essa sociedade secreta, a dramaturgia poupa a plateia de ouvir diretamente suas críticas à sociedade [nada secreta] do nosso convívio. O deboche em torno dos procedimentos estéticos a que figuras públicas precisam se submeter para continuarem na mídia não entra em contradição com os humores mobilizados em cenas anteriores ou posteriores. Todos os afetos habitam as mesmas paisagens, compõem uma mesma coreografia: o balé do Lago dos Cisnes com as aves de rapina.

*A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife

Ficha técnica:

Idealização, dramaturgia e atuação: Letícia Rodrigues
Direção: Letícia Rodrigues e João Pedro Ribeiro
Direção de arte: Eliseu Weide
Direção de movimento e coreografia: Luaa Gabanini
Direção musical: Natália Nery
Composição e arranjo de trilha sonora: Lana Scott e Natália Nery
Gravação e mixagem: Lana Scott
Direção e edição audiovisual: Lana Scott
Técnica e operação de som: Lana Scott
Motion graphics: Pablo Vieira
Mapping e operação de vídeo: Lana Scott
Desenho de luz: Camille Laurent
Operação de luz: Felipe Stucchi
Coordenação de produção: leo Birche
Produção: Jéssyca Rianho
Comunicação visual e fotografia: Maria Luiza Graner
Planejamento estratégico de divulgação: Thiago Dias
Assessoria de imprensa: Pombo Correio.

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