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Dez dias de memória em movimento
28º Festival Internacional de Dança do Recife

Festival reúne mais de 20 espetáculos com artistas de cinco países… Fotos: José Luiz Pederneiras / Divulgação

… celebra meio século do Grupo Corpo e homenageia o Acervo RecorDança. Piracema e acima Pindorama

Em 10 dias, artistas de cinco países movimentam uma programação que vai acontecendo em diferentes pontos da capital pernambucana. A 28ª edição do Festival Internacional de Dança do Recife ocorre de 17 a 26 de outubro, reunindo mais de 20 espetáculos que transita entre tradição e contemporaneidade, do Teatro de Santa Isabel às praças públicas da cidade.

O festival chega com uma programação robusta: França, Argentina, Espanha e Senegal marcam presença internacional, enquanto mais de 70% da programação fica por conta de grupos e artistas pernambucanos. São seis teatros, duas praças públicas, um museu e um compaz que recebem desde o Grupo Corpo – que celebra 50 anos de trajetória – até jovens bailarinos do Projeto Primeira Cena.

O Grupo Corpo, fundado em 1975 em Belo Horizonte, chega ao Recife carregando meio século de uma trajetória que redefiniu a dança brasileira no cenário internacional. Criado pelos irmãos Paulo e Rodrigo Pederneiras, o grupo se tornou uma das companhias mais respeitadas do mundo, conhecido por sua capacidade única de traduzir a brasilidade em movimentos que dialogam com a contemporaneidade global sem perder suas raízes.

Com mais de 40 obras no repertório e apresentações em mais de 60 países, o Corpo construiu uma linguagem própria que agrega técnica apurada, trilhas sonoras marcantes e cenografias ousadas. Piracema, espetáculo inédito traduz a própria trajetória do grupo: como os peixes que sobem a correnteza do rio numa jornada épica de resistência e renovação, o Corpo atravessou décadas mantendo-se vivo, criativo e sempre em movimento, conquistando seu lugar como patrimônio vivo da cultura brasileira. Parabelo, peça de 1997, faz a abertura nas duas noites.

Le Sacre du Sucrealexandre boissot

Já a bailarina e coreógrafa Léna Blou, de Guadalupe, vai transformar a história colonial da cana-de-açúcar em dança contemporânea, explorando as conexões dolorosas entre Caribe e Nordeste brasileiro através do espetáculo Le Sacre du Sucre (A Sagração do Açúcar). Por  outro lado, o coletivo argentino BiNeural-MonoKultur promete transformar o jardim do Teatro do Parque numa pista de dança com Dancemos… que o mundo se acaba!, obra performática que mistura dança, música eletrônica e interação direta com o público. E fechando o festival, a lendária Germaine Acogny – considerada a “mãe da dança contemporânea africana” – apresenta À un endroit du début, misturando danças tradicionais senegalesas com técnicas contemporâneas que aprendeu durante os anos 1970 em Nova York.

Memória em Movimento é o tema que costura essa programação diversa, prestando homenagem ao Acervo RecorDança, coletivo pernambucano fundado em 2017 que há anos se dedica a guardar a história da dança no estado através da digitalização de documentos históricos, produção de entrevistas com pioneiros da dança local, criação de podcasts e documentários, além da realização de ações pedagógicas que conectam diferentes gerações de bailarinos. O grupo atua como uma verdadeira biblioteca viva da dança pernambucana, resgatando memórias que estavam se perdendo e garantindo que as novas gerações tenham acesso a essa herança cultural. Porque memória não é só passado – é combustível para o que está por vir.

Flaira Ferro. Foto Claudia Dalla Nora / Divulgação

🎭 O Protagonismo Local: Pernambuco em Movimento
Flaira Ferro: A Embaixadora do Frevo
A pernambucana Flaira Ferro é uma das principais representantes da cultura popular contemporânea do estado. Passista de frevo reconhecida nacionalmente, ela terá participação dupla no festival, mostrando a versatilidade de seu trabalho:

🎤 Show (18 de outubro, 19h – Teatro Apolo)
Apresentação que mistura frevo tradicional com sonoridades contemporâneas, demonstrando como a cultura popular pode dialogar com diferentes linguagens sem perder sua essência.

👥 Aulão de Frevo (19 de outubro, 10h às 11h30 – Teatro Hermilo Borba Filho)
Atividade pedagógica gratuita onde Flaira compartilha os fundamentos do frevo, conectando diferentes gerações em torno dessa manifestação cultural patrimônio da humanidade.

Patrimônios Vivos da Cultura Pernambucana

🥁 Bacnaré – Nações Africanas (20 de outubro, 14h – Teatro do Parque)
O grupo Bacnaré, reconhecido como patrimônio vivo do Recife, é uma das principais referências da cultura afro-brasileira em Pernambuco. Fundado há mais de quatro décadas, o coletivo preserva e recria tradições africanas através da dança, música e teatro. O espetáculo Nações Africanas celebra as diversas etnias que formaram a base cultural afro-brasileira, apresentando danças e ritmos que conectam o Recife diretamente às suas raízes ancestrais.

🐎 Cavalo Marinho Estrela Brilhante (26 de outubro, 16h – Teatro Hermilo Borba Filho)
O Cavalo Marinho é uma das manifestações mais ricas da cultura popular nordestina, misturando teatro, dança, música e improviso. O grupo Estrela Brilhante é uma das principais referências dessa arte em Pernambuco, mantendo viva uma tradição que remonta ao período colonial. A apresentação no encerramento do festival reafirma a importância das tradições populares como base da identidade cultural pernambucana.

Nova Geração: Projeto Primeira Cena

🌟 Revelando Talentos (21 de outubro, 19h – Teatro Hermilo Borba Filho)
O Projeto Primeira Cena é uma das iniciativas mais importantes do festival para o fomento da dança local. Este ano, quatro coreografias foram selecionadas, representando a diversidade da nova geração de bailarinos e coreógrafos pernambucanos:

Meu Frevo é assim – Cia de Dança Recifervo
Companhia jovem que se dedica à pesquisa e contemporaneização do frevo, explorando novas possibilidades coreográficas sem perder a essência do ritmo tradicional.

Corpo Fé: Trânsitos de presenças, ausências e águas – Irys Oliveira
Pesquisa autoral que investiga as relações entre corpo, espiritualidade e elemento aquático, temas centrais na cultura e geografia pernambucanas.

Fissura – Samuel José
Trabalho solo que explora as fraturas e resistências do corpo contemporâneo, dialogando com questões urbanas e sociais da realidade local.

Corpos que dançam entre gerações e memórias – Escola Viradança
Coreografia coletiva que conecta diferentes idades e experiências, materializando o tema do festival através do encontro entre veteranos e novatos da dança.

Experimentação e Vanguarda Pernambucana

🌍 Cia ETC – Memória do Mundo (21 de outubro, 12h – Praça do Derby)
A Cia ETC é conhecida por suas intervenções urbanas que questionam o cotidiano através da dança. Memória do Mundo será apresentada no meio da agitação da Praça do Derby, propondo uma reflexão sobre como a arte pode alterar a percepção do espaço urbano e criar momentos de contemplação no meio da correria cotidiana.

🎪 Circo Experimental Negro – O Encontro da Tempestade e a Guerra (25 de outubro, 17h – Teatro Apolo)
Coletivo que trabalha na intersecção entre circo, dança e teatro, sempre com uma perspectiva afrocentrada. O espetáculo aborda questões relacionadas à resistência negra e aos conflitos históricos, usando o corpo como território de luta e celebração.

🚴 Lúden Cia de Dança – Ciclobrega (25 de outubro, 18h – Teatro Hermilo Borba Filho)
Intervenção que mistura dança contemporânea com a cultura do brega, gênero musical profundamente arraigado na cultura popular pernambucana. A proposta é criar um diálogo inusitado entre linguagens aparentemente distintas, mostrando como a cultura popular pode ser fonte de inovação artística.

Novos Criadores em Destaque

🎭 Gabi Holanda, Guilherme Allain e Isabela Severi
Trio que representa a nova geração de criadores pernambucanos, apresentando dois trabalhos no festival:

Bolor (22 de outubro, 19h – Teatro Hermilo Borba Filho)
Trabalho que investiga processos de decomposição e renovação, tanto corporais quanto sociais.

Onde a Vida Insiste (23 de outubro, 19h – Praça da Várzea)
Apresentação ao ar livre que explora a resistência da vida em contextos adversos, tema que dialoga diretamente com a realidade social pernambucana.

🌟 Orun Santana – Orunmilá (24 de outubro, 14h e 19h – Teatro Hermilo Borba Filho)
Artista que trabalha na intersecção entre dança contemporânea e tradições afro-brasileiras. “Orunmilá” faz referência ao orixá da sabedoria e do destino, explorando as conexões entre corpo, ancestralidade e futuro.

Marcos Teófilo – Para Expectativa Somente Desvios (24 de outubro, 20h30 – Teatro Apolo)
Coreógrafo que se destaca pela capacidade de criar narrativas corporais complexas. O espetáculo questiona as expectativas sociais e propõe outros caminhos possíveis através do movimento.

🔥 Balé Afro Raízes – Os Guerreiros: A Luta pela Sobrevivência (21 de outubro, 20h – Teatro do Parque)
Grupo especializado em danças afro-brasileiras que apresenta espetáculo sobre resistência e luta, temas centrais na história da população negra em Pernambuco.

Dança Urbana e Cultura de Rua

🎤 Batalha da Escadaria (25 de outubro, 15h às 21h – Compaz Eduardo Campos)
Evento que reúne diferentes vertentes da cultura urbana pernambucana:

Serafin’s Company – From Afrobeats to hip Hop Heat!
Coletivo local que mistura hip hop com ritmos africanos, criando uma sonoridade única que reflete a diversidade cultural do Recife.

Batalha de All Style
Competição que reúne os melhores dançarinos de diferentes estilos da região metropolitana do Recife.

Baile Charme
Manifestação da cultura de rua que ganhou força no Recife, misturando dança, música e sociabilidade urbana.

🌍 Participações Internacionais

França: Três Visões Complementares
🍭 Le Sacre du Sucre (18 de outubro, 20h – Teatro do Parque)
🌊 Corpos (23 de outubro, 20h – Teatro do Parque)
✨ À un endroit du début (26 de outubro, 19h – Teatro de Santa Isabel)

Argentina: Interatividade e Performance
🎵 Dancemos… que o mundo se acaba! (22 de outubro, 10h e 14h – Teatro do Parque)

Espanha: Literatura e Flamenco
💃 Ellas en Lorca (23 de outubro, 19h – Teatro Apolo)

🏆 Abertura Histórica: Grupo Corpo Celebra 50 Anos

Piracema e Parabelo (17 e 18 de outubro, Teatro de Santa Isabel)

️ Exposições e Patrimônio Cultural

RecorDança: Acervo em Movimento (Abertura: 18 de outubro, 14h – Museu Murillo La Greca)
Corpo Ancestral: Dança Nagô em Movimento (18 de outubro, 18h – Teatro Hermilo Borba Filho)

Formação e Capacitação

Oficina: Vivência Danças de Blocos Afros (17 e 18 de outubro)
Ministrada por Vânia Oliveira (BA)

Cine Dança (21 de outubro, 19h – Teatro do Parque)

Sessão especial incluindo o curta Saramuná, de Gabriela Moura (PE), e Longa Repentino, de Drica Ayub (PE).

📍 Informações Práticas
🗓️ Período: 17 a 26 de outubro de 2025
🎟️ Ingressos: Maioria gratuita, com retirada nos locais uma hora antes das apresentações
♿ Acessibilidade: Libras e audiodescrição em múltiplas apresentações
🎯 Ação Social: Arrecadação solidária de alimentos

Sobre o Festival: Promovido pela Prefeitura do Recife através da Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura Cidade do Recife, o Festival Internacional de Dança do Recife consolida-se como uma das principais vitrines da dança contemporânea no Brasil, com especial ênfase na valorização e promoção da produção artística local.

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Dança das origens
Crítica do espetáculo À un endroit du début

Germaine Acogny em À un endroit du début. Foto: Thomas Dorn / Divulgação

Germaine dança para seu pai, sua avó paterna e suas heranças africanas. Foto: Thomas Dorn / Divulgação

A performance multimídia À un endroit du début (Em Algum Lugar no Início), de Germaine Acogny, se move junto à biografia dessa dançarina e coreógrafa africana de carreira singular. Nesse solo, seus movimentos envolvem uma vida;  atravessam várias gerações; e ainda, abarcam memórias de colonialismo, origens e antepassados, tradição, identidades múltiplas, questionamentos contemporâneos.

As palavras de seu pai, um funcionário colonial; as vivências da sua avó, sacerdotisa vudu do Dahomey  (um reino africano que existiu entre 1600 e 1904, foi derrotado pelos franceses e o país foi anexado ao império colonial francês), abrem caminhos no tempo. Por gestuais e falas dessa artista de 76 anos, de vitalidade invejável, À un endroit du début exibe-se como um espetáculo desconcertante, de incrível força, visceral e emocionante.

Germaine Acogny entra em cena, senta-se no palco e lê um trecho do diário Narrativas de Aloopho. “Terminando de escrever sua biografia, meu pai diz”:

Permitam-me formular um desejo: que os homens, todos os homens, independentemente das suas origens e concepções religiosas ou filosóficas, se conheçam complementares uns dos outros e estabeleçam o diálogo indispensável. Veremos que os preconceitos cairão uns após os outros e que a terra será propriedade de todos. Viena, 10 de Agosto de 1979, Togoun Servais Acogny.

Em seguida, a artista apaga uma vela e olha para a foto projetada do pai, que parece lhe sorrir.

Togoun Servais Acogny foi administrador das colônias no Senegal dos anos 1950 e exerceu a função de diplomata em Viena. No livro paterno – não publicado – ele fala de coisas que o afetaram na época. A mãe de Togoun, Aloopho, uma sacerdotisa Yoruba, deu à luz aos 60 anos. Germaine conclama essas duas figuras para traçar sua história pessoal e familiar, provocando intepretações sobre o papel da mulher na África.

A dançarina lê em voz alta, canta, escreve palavras no ar, se desloca no espaço, honra seus antepassados convocando os rituais da avó, reclama memórias de infância submersas em enigmas.

Toi, Aloopho, ma mère, aujourd’hui tu n’est plus, ton souvenir s’efface, tu es Dieu toi même… tu as eu foi en tes Dieux et cela a suffit pour m’enggendrer. Si je remarque des erreus sur la route que tu m’as tracée, je sais au moins qu’elle ne t’a point conduit, toi, à une vie dépravée. Togoun Servais Acogny.

Tu, Aloopho, minha mãe, hoje já não és mais, a tua memória está a desvanecer-se, tu és Deus tu mesma… tiveste fé nos teus Deuses e isso foi o suficiente para me atormentar. Se eu reparo nos erros do caminho que me traçaste, pelo menos sei que ele não te conduziu, a ti, a uma vida corrompida. Togoun Servais Acogny.

A um lugar do início denuncia a negação feita pelo pai da artista aos costumes cerimoniais ancestrais senegaleses – defendidos por sua avó -, influenciado pelo colonialismo e pela conversão ao catolicismo. Ela exprime uma sociedade em guerra de valores em movimentos fortes, que passam inevitavelmente pela fúria contra os brancos e pontos de inadequação com sua própria comunidade. 

No coração dessa cena, uma dançarina feminista denuncia a violência contra as mulheres e acusa a poligamia, defendida por seu pai “convertido”. Celebra a herança abjurada, com seus cantos e danças mágicos. Ela vai ao seu lugar de início. E questiona o apagamento da memória comunitária, de uma identidade fraturada.

Moi, Togoun Sevais Acogny, j’avais 9 ans quand on m’a inculqué l’idée que les Dieux de ma mère, Aloopho, étaient des démons. “Le fétiche de Python” , me disait-on, s’est transformé en homme et a fait manger la fruit défendu à Eve . Tout cela a fini par provoquer en moi la haine des fetiches de ma mère. 

Eu, Togoun Sevais Acogny, tinha nove anos quando fui ensinado que os deuses da minha mãe, Aloopho, eram demônios. “Le fétiche de Python” , diziam-me, transformou-se em homem e fez Eva comer o fruto proibido. Tudo isso acabou por me fazer odiar os amuletos da minha mãe.

Facas projetadas refletem o corte das tradições. A artista se move angustiada entre as escolhas de seu pai e as ações de sua avó. Germaine traduz outros conflitos íntimos com sua dança. Foto Thomas Dorn

Germaine Acogny gosta de se apresentar como “uma mulher negra, nascida em Bénin, etnia yoruba, crescida no Senegal, divorciada com dois filhos, recasada com um alemão”. Desde a montagem do solo autobiográfico À un endroit du début, em 2015, ela prefere chamar-se “Germaine Marie Pentecôte Salimata Acogny”. Ela nasceu no dia de Pentecostes em 1944, e foi batizada duas vezes, na religião católica e mulçumana. 

O questionamento feminista de Germaine é espiralado nesse espetáculo em que a mulher sofre, se revolta, exalta, desconstrói paradigmas culturais, reconstrói atos contemporâneos, mas não larga as essências da tradição impregnadas nas suas células ancestrais e familiares. Sua dança está carregada dessa porosidade. Entre mutações e influências do tempo, em movimentos coloniais, religiosos, sociais.

as ideias de seu pai, que expõe os inconvenientes da monogamia e do casamento na igreja

A encenação do franco-alemão Mikael Serre cruza a dança, a narração, o teatro e a projeção de fotografias e de filmes (captações documentais e criações de Sébastien Dupouey). Mikael Serre já disse que “Germaine encarna o que quase todos nos tornamos, humanos em trânsito, exilados, convertidos e reconvertidos”.

O vocabulário gestual da bailarina está carregado das figuras tradicionais da dança africana e do contemporâneo, inspirados ainda nos bamboleios do trabalho de campo ou de casa. Um solo, com o palco vazio, repleto de uma população. Da família de Acogny, da herança africana, do multiculturalismo. Passa por diversos estados emocionais, da contemplação, transe, cólera, oração. Uma cortina de fios, na qual  são projetados  testemunhos e imagens do pai de Germaine, serve de provocação cognitiva de orgulhoso e rebeldia.

A música composta por Fabrice Bouillon alimenta a mudanças de pulsação coreográfica. São potentes os movimentos de seus braços e quadris fortes, sublinhando nos seus passos as forças ancestrais. Ela manipula com vigor a parte inferior do seu vestido longo criando outras formas. 

Filmagens de ações culturais no Senegal.

As influências de Germaine são complexas, dos estudos da dança em centros importantes da Europa às heranças artísticas e identitárias. Em 1960 ela se mudou de Dakar, Senegal, para a França em busca de dança moderna e treinamento de balé. Entre 1977 e 1982, Germaine dirigiu a Mudra Afrique, em Dakar, uma escola de dança idealizada por Maurice Béjart (1927-2007) e pelo primeiro presidente senegalês (1960 a 1980), Leopold Senghor (1906 – 2001) – poeta que cunhou, junto com o poeta antilhano Aimé Césaire (1913 – 2008), o termo “negritude”. Em 1998, Germaine cofundou a l’École des Sables (Centro internacional de danças tradicionais e contemporâneas africanas), em Toubab Dialaw, Senegal, com seu marido Helmut Vogt.

Essa autobiografia dançada forte e impactante, no entanto, não se oferece fácil na escolha plural de linguagens: memória; ficção; posicionamentos existenciais, poéticos e políticos, nessa profusão de imagens e textos, narrativas e reportagens sobre o Senegal, coreografia e questionamento social.

Depois de passar por diversos estados e tempos no palco, Germaine Acogny aparece com uma fantasia de gris gris (amuleto feito por um feiticeiro para dar sorte e conjurar os maus feitiços), uma sinalização de que é preciso preservar a memória. Mas também se despe da alegoria, lembrando que a tradição não deve engessar seus passos.

As suas últimas palavras, dirigidas ao seu pai, “Perdoo-te”, são de grande poder. Ela que se autoproclama “réincarnation” de sua avó Aloopho diz: 

Papa,
Je suis ta mère.
je te baptise.
je te pardonne

O espetáculo teve transmissão em vídeo gravado e exibido no contexto do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, do Recife. Não me pareceu a melhor filmagem do espetáculo. A produção do festival também não considerou que seria necessário legendar a montagem, o que causou prejuízo na recepção. À un endroit du début é um espetáculo de dança, teatro, vídeo, e mais, falado em francês, repleto de referências autobiográficas, de uma artista muito importante da dança mas, possivelmente, não tão conhecida do público deste JGE. Realmente uma falha.

Confira a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Bem, para quem se interessar pelo trabalho de Germaine Acogny existe uma filmagem disponível, recente, de dezembro último, feita pelo Théâtre de la Ville de Paris, em francês, uma gravação de qualidade, com contraplanos, zoons, closes, que corta menos as projeções dos textos. O ponto negativo da gravação é a permanência do logo da TV e do programa em letras grandes. O do teatro também está lá, mas é discreto e não incomoda.

Sim, a filmagem inicia com a apresentação do diretor do Théâtre de la Ville, Emmanuel Demarcy Mota, uma fala do cofundador da l’École des Sables e companheiro de Germaine, Helmut Vogt, e do diretor da peça, Mikael Serre. Além de uma pequena reportagem com Germaine Acogny. O espetáculo em si começa aos 12 minutos e 39 segundos da gravação.

 

Sombras e fantasmas

Ficha técnica:

À un endroit du début (Num lugar do início), com Germaine Acogny
Coreografia e interpretação: Germaine Acogny.
Direção: Mikael Serre.
Assistente coreógrafo: Patrick Acogny.
Cenografia: Maciej Fiszer.
Figurino: Johanna Diakhate-Rittmeyer.
Música composta e interpretada: Fabrice Bouillon «Laforest».
Vídeo: Sébastien Dupouey.
Luzes: Sebastian Michaud

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