Ser antirracista é um exercício constante
Crítica da peça Para Meu Amigo Branco

Reinaldo Junior e Alex Nader. Foto: Sabrina da Paz / Divulgação

Cenário branco. Foto: Sabrina da Paz

O espetáculo Para Meu Amigo Branco traça um cruzamento instigante entre racismo e o privilégio da branquitude, conceitos que se manifestam de maneiras distintas, mas estão relacionados. O sistema de desigualdade baseado na raça, discrimina, marginaliza e oprime pessoas pretas, pardas e outras, enquanto o privilégio da branquitude confere vantagens sociais, políticas e econômicas às pessoas brancas. Muitos sabemos. Poucos admitem perder os privilégios.

Numa reunião de escola de classe média alta, ou de elite, entre pais e educadores, Monsueto Ferreira (interpretado pelo ator Reinaldo Júnior), o pai da pequena Zuri de 8 anos, relata que sua filha foi vítima de racismo por um colega, tendo sido chamada pejorativamente de “negra fedorenta”. Este incidente é o ponto de partida da peça Para Meu Amigo Branco, dirigida por Rodrigo França e inspirada no livro homônimo do jornalista e ativista Manoel Soares. França e Mery Delmond assinam a adaptação do texto, que expõe com humor e verdade o racismo estrutural da sociedade brasileira.

A história desafia a visão simplista da escola que tenta enquadrar o ato de racismo como um caso de bullying, enquanto o pai da menina esforça-se para evidenciar a complexidade do preconceito racial e chamar os envolvidos à responsabilidade. Sim, porque o pequeno racista é a ponta de uma cadeia de outros conectores da mesma sintonia e a escola assume uma postura, no mínimo, omissa.

Já sabemos, ou deveríamos saber, que o racismo não é apenas um conjunto de preconceitos individuais, mas uma construção social que permeia as instituições e a cultura. Então, o racismo é uma realidade social construída que se movimenta através da linguagem, práticas institucionais e interações cotidianas. Quando um homem branco é confrontado com seu racismo, o que acontece?

Personagem André  Schneider (Alex Nader), tenta convencer o inconvencível. Foto: Sabrina da Paz / Divulgação

É muito interessante, inteligente e perspicaz como o espetáculo Para Meu Amigo Branco desvela as camadas de negação e autoengano presentes em indivíduos que não reconhecem seu próprio racismo. Existe um humor cáustico nesse procedimento de expor a dissonância cognitiva, teoria desenvolvida por Leon Festinger que esmiúça a inconsistência entre as crenças de uma pessoa e suas ações. O personagem André  Schneider (Alex Nader), pai do pequeno Júnior não consegue interpretar o mundo fora de seu próprio quadro de referência.

A escritora feminista norte-americana, ativista antirracista e acadêmica Peggy McIntosh, em seu trabalho Unpacking the Invisible Knapsack, explora o conceito de privilégio branco como uma coleção invisível de vantagens não merecidas (vamos sublinhar) que os brancos podem contar, mas que frequentemente ignoram ou não reconhecem como tal. McIntosh argumenta que o privilégio é como uma mochila invisível de provisões especiais, mapas, passaportes, códigos, vistos e ferramentas que indivíduos brancos carregam inconscientemente. Essa metáfora ilustra como o privilégio branco permeia as experiências cotidianas, afetando a percepção de si e as interações sociais sem que haja necessariamente uma consciência ativa dessas vantagens.

O personagem André  Schneider é assim. Em princípio ele se solidariza com a violência racial sofrida pela filha de Mansueto. Até descobrir que quem cometeu o crime foi seu próprio filho. As capas e máscaras começam a cair. Como num ringue em que os pais, o preto e o branco, atuam para defender suas posições. Os melhores argumentos, os mais racionais e humanos de Mansueto recebem aplausos e apoio da plateia (foi assim quando assisti).

O cenário de Clebson Prates busca sublimar os padrões de conduta da branquitude dominante e hegemônica de uma escola de elite. Para isso, ele utiliza um linóleo, a lousa e as carteiras escolares na cor branca. Ao mesmo tempo, diversos livros de autores negros estão suspensos no ar,  como os de Rodrigo França, Nei Lopes, Marilene Felinto, Mario Medeiros, Jarid Arraes, Sonia Rosa, Emicida, Mery Delmond, Elisa Lucinda, Miró, Mário de Andrade, Lázaro Ramos, entre outros.

A escolha da figurinista Marah Silva de usar cores específicas para diferenciar os personagens brancos e negros é uma estratégia visual rica para projetar as dinâmicas raciais. As figuras brancas estão vestidas de roupas em branco e as personagens negras em tons de marrom. O branco, além de associado a ideias de pureza e blábláblá, pode ser visto como uma caricatura da “folha em branco”, sugerindo uma posição de neutralidade ou até de ignorância em relação às complexidades das questões raciais. Já o marrom para as personagens negras reflete uma conexão com a cor da pele, além de invocar a terra, sugerindo raízes, resistência e uma conexão com a ancestralidade.

Alguns espectadores ficam sentados nas carteiras, dispostas em formato circular, participando do conjunto da reunião. Os atores interagem com essa plateia e com o todo para questionar as violências raciais muitas vezes veladas ou minimizadas como “brincadeiras”. Aliás, alguns jogos são inseridos no espetáculo. 

AS atrizes Mery Delmond e Marya Bravo. Foto: Sabrina da Paz / Divulgação

Quando convocada para mediar o conflito, a professora Valéria Oliveira (Mery Delmond) praticamente desenha para quem ainda não entendeu que o racismo está entrelaçado nas estruturas de poder da sociedade. Ela explica a Teoria Crítica da Raça e as manifestações de privilégio racial e que a capacidade de permanecer ignorante das realidades do racismo é um luxo sustentado por estruturas de poder desiguais. Pode chegar como didático para quem já tem letramento no assunto, mas chega a ser bonita a progressão. Dizer pedagógico não é um problema, é um processo.

A jornada da professora Magda Antunes (Marya Bravo) – de técnica alienada que apoia os posicionamentos de poder dos brancos, que não se solidariza com a dor de uma criança preta e que acha possível simular pacificação em conflitos complexos – à uma tomada de consciência dos problemas profundos – é praticamente uma utopia em sua rapidez. Vale apostar na utopia, mas parece um trajeto mais intricado. Mas vamos confiar trabalhando por mudanças. 

De todo modo, reconhecer os emaranhados dessas dinâmicas é um passo crucial para desmontar as estruturas de poder que perpetuam as desigualdades raciais. Essa produção teatral vibrante e dinâmica faz a sua parte.

Desejo que Para Meu Amigo Branco, com suas performances impactantes e sua narrativa crítica e antirracista, corra o Brasil e frequente muitos lugares para sacodir as ordens injustas estabelecidas. 

Reinaldo Junior interpreta o pai dedicado que defende sua filha do racismo. Sabrina da Paz / Divulgação

 

FICHA TÉCNICA

Para Meu Amigo Branco
Inspirado no livro de Manoel Soares
Texto: Rodrigo França e Mery Delmond
Direção: Rodrigo França
Elenco: Reinaldo Junior e Alex Nader
Atrizes convidadas: Stella Maria Rodrigues, Mery Delmond e Marya Bravo
Direção de movimento: Tainara Cerqueira
Cenário: Clebson Prates
Figurino: Marah Silva
Iluminação: Pedro Carneiro
Trilha sonora original: Dani Nega
Consultoria pedagógica: Clarissa Brito
Consultoria de representações raciais e de gênero: Deborah Medeiros
Fotografia: Afroafeto por Gabriella Maria, Sabrina da Paz e Agátha Flora
Identidade visual: Nós Comunicações
Assessoria de imprensa: Canal Aberto — Márcia Marques, Daniele Valério e Marina Franco
Operação de som: Hugo Charret
Operação de luz: Lucas da Silva
Assistência de produção: Ludimila D´Angelis e Eduardo Rio
Produção executiva: Júlia Ribeiro
Contabilidade: Cristiano Geraldo Costa dos Santos
Idealização e direção de produção: João Bernardo Caldeira
Produção: São Bernardo

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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