Quando a imagem pensa
antes da palavra
Crítica: Enquanto você voava,
eu criava raízes

André Curti e Artur Luanda Ribeiro em momento de suspensão aérea, explorando a tensão entre peso e leveza que caracteriza o espetáculo. Foto: Nana Moraes / Divulgação

A criação da Cia. Dos à Deux, Enquanto você voava, eu criava raízes (com direção e performance de André Curti e Artur Luanda Ribeiro), desloca a centralidade narrativa para um campo de experiência tátil-visual-sonora. A obra fabrica estados de mundo em vez de contar histórias, materializando no palco o que Jacques Rancière denomina “redistribuição do sensível” — isto é, uma reconfiguração das formas de percepção que determina o que pode ser visto, ouvido e pensado, alterando as fronteiras entre arte e vida, entre o estético e o político. Essa redistribuição reprograma o olhar do espectador através de uma estética que privilegia o corpo como lugar primordial de conhecimento, onde a experiência sensorial antecede e constrói o pensamento. 

Nos primeiros minutos, imagens com lastro concreto — o jarrão, a superfície, o contorno humano — oferecem âncoras de reconhecimento que logo se desfazem em metamorfoses contínuas. A operação revela maestria técnica no sentido mais elevado do termo. Aqui, a precisão artística funciona como método de investigação sensível: o domínio técnico libera possibilidades perceptivas que convocam a plateia a pensar com os sentidos e suportar a deriva sem a muleta do enredo. Essa precisão constitui artesania refinada a serviço de uma poética do impossível — condição necessária para que o espectador aceite a lógica onírica da cena e se permita habitar um regime de percepção ampliado.

Nos primeiros minutos, imagens com lastro concreto — o jarrão, a superfície, o contorno humano — oferecem âncoras de reconhecimento que logo se desfazem em metamorfoses contínuas. A operação é, sim, virtuosismo plástico no sentido mais elevado do termo. Aqui, o virtuosismo funciona como método de investigação sensível: a maestria técnica libera possibilidades perceptivas que convocam a plateia a pensar com os sentidos e suportar a deriva sem a muleta do enredo. Virtuosismo, neste contexto é precisão artesanal a serviço de uma poética do impossível — condição necessária para que o espectador aceite a lógica onírica da cena e se permita habitar um regime de percepção ampliado.

Enquanto você voava, eu criava raízes, da Cia. Dos à Deux. Foto: Virginia Benevenuto

A construção cênica revela precisão milimétrica : transições limpas, modulações de peso calculadas, uso da inércia como material composicional. Essa precisão garante a possibilidade do risco. Curti e Ribeiro, suspensos em esferas metálicas ou desafiando a gravidade em coreografias aéreas, sustentam uma dialética entre controle e vertigem — ética do ofício que torna verossímil o impossível: levitar sem fugir do chão, criar raízes no ar.

O risco físico constitui condição de verdade do gesto. Essa precisão técnica delicada sustenta a liberdade poética. Tudo parece inevitável porque tudo é rigorosamente construído.

A criação visual (Miguel Vassy e Laura Fragoso) atua como partitura invisível que atravessa corpos e espaço. As projeções ora encarnam, ora evaporam, deixando vestígios que funcionam como pistas de leitura. Esse regime de vestígio impede o esgotamento do sentido, evitando que significados explícitos saturem a experiência perceptiva. Cada figura nasce para desaparecer, gerando intervalos produtivos em que o espectador completa lacunas e participa ativamente da construção de sentido.

A luz recorta, erode, expande; a sombra escreve. A alternância entre recorte preciso e penumbra respirada cria uma topologia móvel que desloca continuamente os polos figura/fundo. O palco deixa de constituir plano para tornar-se organismo vivo.

A música original de Federico Puppi opera como força de modulação temporal, expandindo e contraindo a duração cênica. A trilha sonora estabelece contraponto com as imagens, criando fricções produtivas entre som e gesto. Essa estratégia compositiva evita a redundância audiovisual, gerando o que se pode denominar “terceiro corpo” — a dimensão sonora da cena que impede o deslizamento para a beleza contemplativa e mantém a experiência em estado de tensão criativa.

Momento de fusão entre corpo e projeção visual, evidenciando a integração entre elementos performativos e tecnológicos da obra. Foto: Virginia Benevenuto

Os performers exploram diferentes níveis espaciais, criando diálogo vertical entre enraizamento e elevação. Foto: Virginia Benevenuto

Proponho ler a obra como cartografia do abismo doméstico. “Doméstico” não pela trivialidade, mas porque imagens que sugerem materiais de casa (jarros, superfícies, contornos familiares) convertem-se em portais para o indizível. A cena captura o momento anterior ao símbolo e o posterior ao reconhecimento, mapeando como o íntimo se abre para o informe sem perder delicadeza.

Em vez de representar deslocamentos (migração, exílio, pertencimento), a obra desenha condições de deslocabilidade. Não encena “quem parte” ou “quem fica”; fabrica gravidades que ora prendem, ora rarefazem. Vínculo vira força, memória vira massa, desejo vira vetor.

 Essa poética contesta a rigidez dicotômica contemporânea ao questionar as polaridades que moldam nossa compreensão — liberdade/prisão, medo/coragem, paralisia/movimento —, revelando-as como manifestações de uma mesma essência dinâmica. A fusão entre voo e queda livre, numa ação única, contraria uma época obsessivamente apegada a polarizações. Essa dissolução das dicotomias emerge como reencantamento necessário.

Os corpos que se lançam no abismo não flutuam ou caem; flutuam enquanto caem. Não existem fronteiras, história linear ou palavras — e precisamente nessa ausência a obra floresce, permitindo projeções individuais em um universo de símbolos compartilhados.

Simultaneidade entre movimento ascendente e enraizamento. Foto: Virginia Benevenuto

A obra trabalha operações composicionais fundamentais que constituem as articulações de uma mesma arquitetura dramatúrgica. A elasticidade temporal manifesta-se na alternância calculada entre suspensão e precipitação, criando um pulso que organiza a expectativa sem depender de intriga narrativa — o tempo cênico respira, retém e libera, ancorando a dramaturgia no próprio ritmo da atenção. Simultaneamente, um contraponto tônico governa a relação entre os corpos: quando um performer enraíza, concentrando peso e densidade, o outro se lança ao voo, rarefazendo-se em direção ao alto, estabelecendo uma distribuição dinâmica de forças que transcende a ilustração literal de opostos. Finalmente, o silêncio opera como campo ressonante, como substância densa que amplifica microvariações gestuais, convertendo o mínimo em acontecimento e permitindo que cada modulação corporal se torne evento dramatúrgico significativo.

A peça politiza a percepção, não o discurso, isto é através da reorganização das formas de perceber, não através de conteúdos políticos explícitos. Convoca o reconhecimento, no próprio corpo, da gramática do deslocamento sem enunciar temas de migração ou exílio. Propõe vínculos móveis — raízes provisórias capazes de sustentar encontros no ar. Constitui uma política do sensível que reeduca a atenção: enraizar não significa imobilizar; voar não significa evadir. 

Exploração das possibilidades expressivas do objeto cênico em diálogo com as projeções. Foto: Virginia Benevenuto

Momento de integração entre elementos técnicos e performativos. Foto: Virginia Benevenuto

Tensões Produtivas e Limites Perceptivos 

A economia de elementos verbais e a densidade imagética da obra, especialmente em seu início, exigem do espectador um regime de atenção sensorial, que nem todos os públicos abraçam imediatamente, habituados à centralidade narrativa do teatro textual. Essa fricção inicial, contudo, integra o dispositivo. A obra demanda tempo para reprogramar o olhar e alinhar corpo e atenção à sua lógica sensorial.

A linguagem cênica da obra  — que integra escolhas estéticas e composicionais visuais, sonoras e corporais, conforme detalhamento disponível no programa da montagem — caracteriza-se por uma coesão visual que instala uma superfície de aparente fluidez e precisão harmoniosa. Para que essa harmonia não diluísse o mergulho temático proposto, focado na exploração dos “abismos internos”, dos “medos, angústias e feridas profundas” e da “união do humano com o primitivo”, o trabalho aciona intencionalmente rupturas e dissonâncias. Essas se manifestam em pausas densas, ruídos inesperados e sombras móveis que, ao quebrar a aparente homogeneidade, reintroduzem um contato mais direto entre a construção estética e o mergulho temático da obra.

Essa dinâmica, ao convidar o espectador a uma atenção mais refinada às nuances e dissonâncias, amplia o campo de leitura. Constitui uma estratégia que instiga a perceber além do imediatamente dado, a apreender as minúcias e as pequenas perturbações que permeiam a experiência cênica, expandindo as camadas de sentido para territórios não-verbais de significação. 

Enquanto você voava, eu criava raízes expande um laboratório de percepção em que imagens pensam e afetos curvam o tempo. Com precisão técnica delicada e imaginação formal ousada, a Cia. Dos à Deux institui uma “coreografia da gravidade afetiva” que dissolve dicotomias existenciais em favor de uma cartografia do abismo, estabelecendo voo e raiz como tecnologias poéticas de redistribuição do sensível que desafiam os modos convencionais de habitar o mundo.

SERVIÇO

Enquanto você voava, eu criava raízes
12 a 13 de Setembro – Sexta e Sábado às 20h
De 16 a 20 de Setembro – de terça a sábado, às 20h

CAIXA Culturral Recife – Av. Alfredo Lisboa, 505, Recife
Ingressos: R$ 30 e R$ 15,

 

 

Postado com as tags: , , ,

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *