Desconstrução das imagens de controle
na performance de Gaëlle Bourges
Crítica: À mon seul désir

A mon seul désir, de Gaëlle Bourges (França). Foto: Danielle Voirin / Divulgação

Na história da arte ocidental, cada representação visual carrega consigo valores políticos que se consolidam através da difusão e da consagração cultural. Quando a coreógrafa francesa Gaëlle Bourges reativa performaticamente a tapeçaria medieval A Dama e o Unicórnio (c. 1490) em seu espetáculo À mon seul désir, ela interroga esse repertório visual que continua moldando nossa compreensão do feminino.

Exploradora da história da arte, Bourges se mostra uma cartógrafa crítica que mapeia a sedimentação histórica das representações de gênero, criando diálogos tensionados entre o da obra original na contemporaneidade.

A tapeçaria A Dama e o Unicórnio, obra-prima do final do século XV conservada no Museu de Cluny no Quartier Latin, em Paris, constitui o objeto arqueológico privilegiado desta desconstrução crítica. O título do espetáculo – À mon seul désir – provém diretamente da inscrição presente no enigmático sexto painel desta tapeçaria, cujos cinco primeiros alegorizam sucessivamente as relações da dama com os cinco sentidos tradicionais, culminando no mistério desse sexto sentido indeterminado.

O espetáculo inicia com uma composição visual precisa. Quatro performers nuas – Gaëlle Bourges, Agnès Butet, Marianne Chargois e Alice Roland – executam movimentações de lentidão ritualística diante de uma extensa cortina de veludo vermelho que se estende de um lado ao outro do palco (no caso da apresentação na programação do Feteag, no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, no Recife, nos dias 9 e 10 de outubro), criando uma passarela para a evolução das intérpretes.

As quatro artistas, cuja coreografia foi desenvolvida colaborativamente por Carla Bottiglieri, Gaëlle Bourges, Agnès Butet e Alice Roland, executam movimentações minuciosas: abaixam-se graciosamente, estendem os braços em gestos calculados, cravam delicadamente flores coloridas no tecido vermelho, criando desenhos efêmeros que se desfazem e se refazem ao longo da apresentação.

Durante essas sequências iniciais, escutamos um longo comentário em português que descreve e analisa a tapeçaria original. A narrativa em português foi desenvolvida por Nathalia Kloos, com tradução do texto realizada por Lia Imanishi e Nathalia Kloos. O texto combina informações históricas com interpretações críticas contemporâneas, conectando a história da arte com teorias atuais sobre performance e representação. Acompanhamos o áudio enquanto observamos o movimento das intérpretes, criando nossa própria relação entre o que ouvimos e o que vemos.

Bourges, Butet, Chargois e Roland utilizam máscaras que representam os animais presentes na tapeçaria – leão, raposa, macaco, unicórnio e coelho. Quando assumem essas identidades animais, as intérpretes demonstram uma precisão técnica impressionante, adotando posturas e movimentos do animal. A trilha sonora, criada por Stéphane Monteiro a.k.a XtroniK e Erwan Keravec, com direção de som e direção técnica geral de Stéphane Monteiro, acompanha essas transformações corporais. O design de luz, concebido por Abigail Fowler e Ludovic Rivière, com técnica de luz de Maureen Sizun Vom Dorp, cria atmosferas que realçam cada metamorfose animal.

Intérpretes utilizam máscaras de animais. Foto: Walton Ribeiro / Divulgação

Mobilizo o conceito “imagens de controle” desenvolvido por Patricia Hill Collins para encarar a complexidade política da operação que Bourges realiza. Essa escolha alinha-se com a dimensão crítica feminista que a própria diretora já havia sinalizado em suas declarações sobre a obra.

Esse conceito permitiu mostrar persistências estruturais significativas. As dicotomias medievais (virgem/prostituta, pura/impura, espiritual/carnal) funcionam como antecedentes históricos das binaridades hierárquicas contemporâneas. Essas representações estereotipadas funcionam como tecnologias de dominação. Na obra de Bourges, essas dinâmicas ganham materialidade através da tensão entre o unicórnio (pureza/virgindade) e os coelhos (sexualidade /transgressão).

Dessa forma, Bourges torna visível esse mecanismo quando suas performers alternam entre sacralidade contemplativa (flores, gestos lentos, postura pictórica) e transformação animal súbita através das máscaras. Cada mudança demonstra como as imagens de controle operam por oposição binária: a mulher só pode ser santa em contraste com a pecadora, pura em oposição à lasciva.

Diretora Bourges no ensaio com o coro

Quando o unicórnio rasga definitivamente o pano vermelho, toda a arquitetura cênica se transforma. O palco se expande revelando sua amplitude total, e com ela emerge um contraste brutal: a criatura da pureza “entoa” The End dos The Doors enquanto uma multiplicidade de corpos despidos – cada um carregando suas particularidades físicas e etárias – irrompe em saltos frenéticos usando máscaras de coelho. A rigorosa contenção gestual desmorona sob o peso de uma festividade alucinante. Surgem em ondas sucessivas estes “coelhinhos lascivos”, proliferando-se numa dança obsessiva. Luzes estroboscópicas fragmentam a visão e uma trilha sonora frenética mescla gregoriano, rock pesado e batidas eletrônicas – criando um espetáculo de beleza perturbadora.

Esta avalanche de figuras mascaradas constitui uma revolta estética contra os mecanismos de domesticação visual previamente estabelecidos. Através da imagem ancestral do coelho – animal cujo simbolismo oscila entre fecundidade desenfreada e luxúria incontida – a obra constrói uma contraofensiva ao domínio corporal. Onde antes reinava a disciplina gestual, instala-se agora um transe coletivo que celebra o excesso como forma de resistência poética.

Celebração Coletiva do Desejo

No final do espetáculo, trinta e duas pessoas selecionadas no Recife e Caruaru formam uma farândola (dança em roda ou grupo festivo e barulhento) de coelhos — uma dança coletiva inspirada na tapeçaria original, com cerca de 15 minutos de duração. Entre os participantes do elenco local estão Alberto Barbosa de Albuquerque, Alefe Robson Maurício da Silva, Amanda de Paula Pegado, Anderson Luis de Lima Fonseca, Brenda Alves Ribeiro, Carlos Daniel Silva Ferreira, Carolayne Tayane de Lima, Evellyn Eduarda Gonçalves Silva, Everson Reynods Melo Lima, Gabriel da Silva Machado, Jares dos Santos Silva, Jéssica Cavalcanti da Silva Calado, João Pedro de Melo Silva, Kauan Vitor Nascimento de Carvalho, Lara Ribeiro Mano de Lima, Larissa dos Anjos Leão, Lucas Carvalho Cordeiro, Lucas Ferreira da Silva, Lucas Vinícius Silva de Lima, Luiz Diego Garcia Ubirajara, Maria Augusta Teles Menelau, Maria Fernanda Nascimento dos Santos, Mayra Clara Vitorino, Mikaely Patricio de Farias Carvalho, Mikelayne P. De Farias Carvalho, Nayanne Alana Nanes de Albuquerque, Rebeca Bezerra Coelho, Rychard Klysman de Arruda Cintra, Thajjana Ellen Lourenço da Silva, Tiago Francisco da Silva, Wagner Wellington da Silva Vasconcelos e Nilo Pedrosa. Essas pessoas entram em cena usando somente uma máscara de animal.

Ao convocar essa diversidade corporal para a dança que encerra o espetáculo, Bourges opera uma subversão definitiva das representações medievais: onde a tapeçaria original celebrava um ideal corporal feminino específico e controlado, a performance contemporânea afirma a multiplicidade e a transgressão como formas de resistência às imagens de controle que ainda moldam nossa compreensão do feminino. O “seul désir” da dama medieval se transforma, assim, numa celebração coletiva do desejo como força de libertação.

FICHA ARTÍSTICA

À mon seul désir
Espetáculo baseado na série de seis tapeçarias A Dama e o Unicórnio
Concepção e narrativa: Gaëlle Bourges
Coreografia: Carla Bottiglieri, Gaëlle Bourges, Agnès Butet e Alice Roland
Com: Gaëlle Bourges, Agnès Butet, Marianne Chargois e Alice Roland
Coordenação de produção (Brasil): Júlia Gomes
Administração geral: Marie Collombelle
Apresentação em Pernambuco / Brasil
Local: Teatro Luiz Mendonça, Parque Dona Lindu, Recife
Datas: 9 e 10 de outubro
Programação: Feteag
Elenco Local (Bestiário Final)
Alberto Barbosa de Albuquerque • Alefe Robson Maurício da Silva • Amanda de Paula Pegado • Anderson Luis de Lima Fonseca • Brenda Alves Ribeiro • Carlos Daniel Silva Ferreira • Carolayne Tayane de Lima • Evellyn Eduarda Gonçalves Silva • Everson Reynods Melo Lima • Gabriel da Silva Machado • Jares dos Santos Silva • Jéssica Cavalcanti da Silva Calado • João Pedro de Melo Silva • Kauan Vitor Nascimento de Carvalho • Lara Ribeiro Mano de Lima • Larissa dos Anjos Leão • Lucas Carvalho Cordeiro • Lucas Ferreira da Silva • Lucas Vinícius Silva de Lima • Luiz Diego Garcia Ubirajara • Maria Augusta Teles Menelau • Maria Fernanda Nascimento dos Santos • Mayra Clara Vitorino • Mikaely Patricio de Farias Carvalho • Mikelayne P. De Farias Carvalho • Nayanne Alana Nanes de Albuquerque • Rebeca Bezerra Coelho • Rychard Klysman de Arruda Cintra • Thajjana Ellen Lourenço da Silva • Tiago Francisco da Silva • Wagner Wellington da Silva Vasconcelos • Dionísio • Nilo Pedrosa

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