Arquivo do Autor: Ivana Moura

O festivo como ato político
Crítica: As cores da América Latina 

Montagem combina várias matrizes culturais. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Premiada no 34° Prêmio Shell de Teatro como Destaque Nacional e concebida a partir do Concurso-Prêmio Manaus 2022 Thiago de Mello, a criação As Cores da América Latina ressignifica tradições populares consagradas em uma nova composição cênica que potencializa sua expressividade política. Sob direção de Fábio Moura e Talita Menezes, a Panorando Cia e Produtora de Manaus entrelaça o Cavalo-Marinho (Pernambuco/Paraíba), La Tirana (Chile), Huaconada (Peru) e o Fofão (Maranhão), reimaginando fronteiras através da diversidade latino-americana.

Apresentada no Teatro Renascença, em Porto Alegre, nos dias 31 de maio e 1º de junho, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, a montagem integra um circuito que amplia seu diálogo com diferentes públicos. A obra estabelece uma intersecção entre dança, teatro e artes visuais com performances marcadas por estética de cores intensas e máscaras que transformam o espaço cênico em território de celebração identitária e reflexão política.

Espetáculo conta com intérpretes-criadores Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Originário da Zona da Mata nordestina, o Cavalo-Marinho combina teatro, dança e música em uma estrutura que pode durar mais de oito horas, com dezenas de personagens (Capitão, Mateus, Catirina, entre outros) e rica trama de toadas, loas e passos específicos. No espetáculo, contribui com sua narrativa não-linear e corporeidade desenvolvida pelos brincantes, marcada pelo jogo entre equilíbrio e desequilíbrio.

Celebrada anualmente na vila de La Tirana, na Região de Tarapacá, norte do Chile, a Fiesta de La Tirana constitui-se como festival religioso em honra à Virgem do Carmo, onde coexistem elementos indígenas, ciganos e espanhóis. Suas danças mascaradas de diabladas e chunchos inspiram cores vibrantes, a relação entre sagrado e profano e a musicalidade andina que estrutura várias cenas.

A Huaconada, dança ritual da região de Junín, Peru, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, é executada por dançarinos com máscaras características que chicoteiam o ar para afastar maus espíritos. O espetáculo extrai destas máscaras, que representam anciãos com autoridade moral, uma presença cênica que oscila entre o humano e o sobre-humano.

O Fofão do carnaval maranhense, com sua máscara de grandes bochechas, nariz avermelhado e cabelos coloridos, frequentemente veste macacões multicoloridos e carrega um bastão. Esta figura simultaneamente cômica e assustadora inspira diretamente a visualidade do espetáculo, com as máscaras utilizadas pelos performers reinventando esta tradição em contexto contemporâneo.

Este entrelaçamento de referências culturais gera uma linguagem cênica enraizada na tradição e aberta à experimentação contemporânea.

Este entrelaçamento de referências culturais exerce uma reelaboração criativa que gera uma nova linguagem cênica, simultaneamente enraizada na tradição e aberta à experimentação contemporânea.

Espetáculo defende o festivo como ato político. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

A festa popular historicamente constitui-se como espaço de liberdade e transgressão, onde hierarquias são temporariamente invertidas e normas sociais suspensas. Através da mescla de tradições diversas, As Cores da América Latina materializa esse potencial insurgente. Revestidos por máscaras e figurinos, os corpos dos intérpretes adquirem qualidade híbrida, ocupando um espaço de transformação constante.

A atmosfera da montagem, dinâmica e polifônica, constitui simultaneamente expressão cultural e manifesto político. Como observa Mikhail Bakhtin em sua análise da cultura popular, particularmente significativa é a ambivalência do riso popular, simultaneamente alegre e sarcástico, negativo e afirmativo. Tal ambivalência permeia As Cores da América Latina quando a obra aborda morte e nascimento através da linguagem da celebração, explorando contradições inerentes tanto à existência humana quanto à realidade social latino-americana.

Fronteiras e Zonas de Contato Cultural

Ileana Diéguez Caballero, em Cenários Liminares, desenvolve uma proposta teórica fértil para pensar a obra. Sua concepção de práticas cênicas que habitam zonas fronteiriças entre disciplinas, culturas e realidades sociais oferece um marco interpretativo que ilumina o trabalho da Panorando.

A criação estabelece um território cênico que emerge do encontro entre dança, teatro e ritual. Este hibridismo corresponde também a um cruzamento de fronteiras geográficas, onde manifestações amazônicas dialogam com expressões nordestinas e andinas.

O conceito de liminaridade, desenvolvido por Victor Turner, encontra eco na obra da Panorando: os intérpretes, transformados por máscaras e figurinos, tornam-se entidades entre estados, permitindo a manifestação de possibilidades existenciais normalmente invisíveis no cotidiano.

Obra aposta na corporeidade e subversão. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS

Os corpos dos intérpretes-criadores (Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes) estabelecem-se como territórios de contestação e afirmação identitária. Seus movimentos inspirados em animais e ritmos latino-americanos comunicam resistência e pertencimento cultural, revelando a potência política do movimento quando transpõe o familiar para o extraordinário.

A dimensão visual concebida por Fábio Moura, com figurinos coloridos de Lú de Menezes e máscaras renovadoras, cria seres híbridos. O cenário – painel de tecidos diversos com luzes ambaradas – evoca simultaneamente o doméstico e o mágico. Estes elementos funcionam como “dispositivos de memória”, ativando referências que resistem ao apagamento.

Da pesquisa musical de Talita Menezes emerge uma proposta de interculturalidade crítica, onde diferentes matrizes culturais dialogam sem perder suas especificidades. Este aspecto dialoga com o pensamento decolonial latino-americano e a noção de “pensamento fronteiriço” de Walter Mignolo, propondo um espaço onde tradições podem coexistir em suas diferenças.

As fronteiras culturais são reimaginadas como zonas de contato e criação, desafiando tanto o universalismo eurocêntrico quanto os essencialismos identitários, valorizando saberes tradicionalmente marginalizados sem romantizá-los.

 

A alegria como estratégia de sobrevivência. Foto: Adriana Marchiori / Sesc/RS 

A alegria manifesta constitui-se como estratégia política deliberada. A experiência de contentamento democratiza o acesso à reflexão política através da emoção estética, criando um espaço onde a transmissão de saberes acontece pelo prazer, não pela imposição discursiva.

As Cores da América Latina adquire particular relevância em um contexto de crescente polarização, recordando-nos que a festa constitui potente ato político de afirmação identitária, resistência cultural e imaginação de futuros possíveis para a América Latina.

FICHA TÉCNICA
Direção: Fábio Moura e Talita Menezes
Coreografia: Criação coletiva
Intérpretes-criadores: Ana Carolina Nunes, Fernando C. Branco, Marcos Telles, Reysson Brandão e Talita Menezes
Visualidades: Fábio Moura
Pesquisa musical: Talita Menezes
Confecção de figurino: Lú de Menezes
Produção e iluminação: Fábio Moura

Referências 
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987.
CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários Liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011.
TURNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

 

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

Postado com as tags: , , , , , , , ,

Entre a precisão técnica e a ousadia contida
Crítica do espetáculo Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses

Grupo Circo Híbrido, de Porto Alegre. Foto: Divulgação

Como um trapezista que domina perfeitamente o movimento, mas não arrisca o salto mortal que arrancaria suspiros da plateia, o espetáculo Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses, do Circo Híbrido, exibe impecável execução técnica, mas falha em provocar o maravilhamento que define a verdadeira magia circense. Apresentado no Teatro do CHC Santa Casa durante o Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, esta celebração dos 20 anos da companhia porto-alegrense revela-se uma experiência de contrastes: virtuosismo individual que não se traduz em narrativa envolvente como um todo.

Com duração de 80 minutos, a peça revela o notável talento dos artistas, cuja destreza é inegável. Agatha Andriola impressiona a plateia com sua elasticidade desconcertante, realizando contorções que desafiam os limites físicos imagináveis. Seus números de contorcionismo são pontos altos do espetáculo, provocando reações imediatas de admiração.

As acrobacias aéreas executadas por Lara Rocho no tecido acrobático também merecem destaque. Suas evoluções combinam força, precisão e fluidez, criando imagens de beleza visual. Tainá Borges cativa com seu equilíbrio meticuloso sobre garrafas, um número que gera momentos de tensão e admiração. Gabriel Martins exibe habilidade com os malabares, enquanto Luís Cocolichio, Guilherme Capaverde e Maílson Fantinel completam o elenco com performances tecnicamente consistentes.

No entanto, apesar das qualidades individuais de cada artista, a dramaturgia não consegue entrelaçar os números de forma a construir um tecido dramatúrgico coeso e pulsante. A sequência de quadros, embora bem executados tecnicamente, torna-se por vezes monótona, criando momentos de distanciamento que afastam a montagem da energia contagiante típica do circo tradicional.

Alice Viveiros de Castro, uma das mais importantes pesquisadoras do circo no Brasil, identifica quatro elementos fundamentais desta arte: a técnica, a surpresa, o risco e a conexão emocional com o público. No caso de Cir.co, observa-se claramente o domínio da técnica, porém há uma carência dos outros elementos. A previsibilidade das apresentações e a ausência de momentos verdadeiramente surpreendentes diminuem o impacto emocional da performance.

A dimensão política do circo, enquanto espaço de acolhimento para a diversidade, também merece atenção. Historicamente, como aponta Castro, “o circo sempre foi um espaço de acolhimento para os diferentes”, reunindo artistas de diversas origens étnicas e sociais. No caso do elenco do Circo Híbrido, predominantemente branco, a inclusão de artistas negros poderia fortalecer essa dimensão política. Além disso, a função social do palhaço (e por extensão de toda a trupe) como “crítico social, um espelho que reflete nossas contradições” mostrou-se praticamente ausente no espetáculo, aparecendo brevemente na menção aos trâmites burocráticos de editais, perdendo assim a oportunidade de exercer a crítica social inerente à essa arte.

Tainá Borges. Foto: Sal Fotografia / Divulgação

Três momentos, no entanto, conseguiram, na noite chuvosa de terça-feira, 27 de maio, romper com essa previsibilidade: a flexibilidade impressionante de Agatha Andriola; o equilíbrio preciso de Tainá Borges sobre garrafas; e a cena em que a mesma artista deixa cair papéis e as crianças da plateia, espontaneamente, a ajudam a recolhê-los – talvez o instante mais autêntico de conexão direta entre artistas e público em toda a apresentação.

A ideia de usar o Minidicionário Poético das Artes Circenses como fio condutor da narrativa é promissora, mas sua execução apresenta irregularidades que comprometem o ritmo do espetáculo. A trilha sonora, embora funcional, carece de variações dinâmicas que poderiam acentuar a intensidade dos diferentes quadros, resultando em uma paisagem sonora que não potencializa completamente a experiência visual.

Os figurinos, com sua estética contemporânea, oferecem uma releitura interessante das vestimentas tradicionais circenses, mas acabam contribuindo para certo distanciamento, afastando-se da identidade mais popular e espontânea do circo tradicional. A produção prioriza a forma, resultando em uma exibição visualmente agradável, porém por vezes carente de autenticidade.

A comicidade, elemento fundamental da tradição circense, é pouco explorada. O palhaço, figura central do circo, simboliza o encontro com o ridículo que nos torna humanos; essa dimensão não encontra tradução efetiva na encenação do Circo Híbrido, que parece mais preocupado com a execução técnica do que com a ligação emocional com a plateia.

Cir.co – Minidicionário Poético das Artes Circenses destaca-se pelo talento individual dos artistas, especialmente nos impressionantes números de contorcionismo e acrobacias aéreas. O espetáculo contribui para o panorama das artes circenses contemporâneas no Brasil, mas deixa a sensação de que o grupo ainda pode explorar mais profundamente a essência do que torna o circo uma arte tão fascinante: sua capacidade de surpreender, emocionar e conectar-se mais profundamente com o público.

FICHA TÉCNICA

Direção: Tainá Borges e Lara Rocho
Elenco: Tainá Borges, Luís Cocolichio, Lara Rocho, Agatha Andriola, Maílson Fantinel, Guilherme Capaverde e Gabriel Martins.
Cenografia: Luís Cocolichio
Trilha sonora: Viridiana
Iluminação: Carol Zimmer
Registro de Imagens: Sal Fotografia
Design e comunicação: Mônica Kern
Produção: Tainá Borges e Vado Vergara
Realização: Circo Híbrido

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

Postado com as tags: , , , , , , , , ,

Ané das Pedras: Ritual Ancestral do Povo Kariri
Entre acolhimento e violência simbólica

 

Sob céu claro e ventos frios, a ancestralidade indígena atravessa a capital gaúcha com Ané das Pedras. Foto: Denis Gosch

Depois de alguns dias de chuva em Porto Alegre, neste sábado, 31 de maio, o céu estava claro, com temperaturas baixas e ventos frios que levaram muitas pessoas a usar casacos pesados e óculos escuros na Praça da Alfândega, no centro da cidade. Foi neste cenário que a artista indígena Bárbara Matias Kariri apresentou Ané das Pedras, uma performance ritual do repertório da Coletiva Flecha Lançada Arte (CE), com produção de Lara Alencar, que integra a programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre.

Na língua do povo Kariri, “Ané” representa o sonho, conceito que fundamenta esta performance singular. A obra estabelece um diálogo profundo com as pedras enquanto entidades ancestrais e encantadas, elementos centrais na cosmovisão desta nação indígena nordestina. “Essa prática ritual nos convida a confiar à pedra aquilo que buscamos, nossas necessidades mais íntimas, depositando nela nossos desejos e aspirações”, revela Bárbara.

Na tradição Kariri, as pedras transcendem sua materialidade aparente — são compreendidas como seres dotados de vida, ancestrais que oferecem proteção e força. “Em momentos de impossibilidade, minha avó sempre evocava a Santa Pedra”, recorda a artista. “Durante uma severa seca que assolou o Ceará, quando a fome se alastrou, meus ancestrais preparavam um caldo ritualístico com ervas e pedras. Após o preparo, retiravam as pedras, devolvendo-as respeitosamente à terra, e consumiam aquele líquido que lhes proporcionava sustento e vitalidade.”

O vasto território do Cariri, cercado por imponentes chapadas e formações rochosas, mantém uma relação simbiótica com estes elementos minerais. “As pedras não apenas nos circundam, mas caminham conosco, compartilham nossa existência, são seres vivos que integram nossa realidade”, enfatiza Bárbara. Esta perspectiva contrasta radicalmente com o pensamento ocidental, que frequentemente reduz as pedras a meros obstáculos a serem removidos do caminho, revelando cosmologias fundamentalmente distintas sobre nossa relação com o mundo mineral.

Entre a violência simbólica e o acolhimento: três encontros marcantes

A performance de Bárbara em Porto Alegre foi marcada por três episódios significativos que revelam diferentes formas de recepção ao seu trabalho e à sua identidade indígena.

O primeiro ocorreu quando uma mulher, ao ser abordada pela artista, respondeu friamente: “Você é tão jovem, vá procurar um trabalho”. Quando Bárbara tentou estabelecer um diálogo sobre a ancestralidade das pedras, a mulher declarou: “Eu não tenho essa coisa espiritual, eu sou materialista”. A artista ainda tentou explicar que a pedra é, de fato, material, mas a conexão espiritual viria do contato, ao que a mulher respondeu negativamente. O encontro terminou com um comentário sobre os dentes da artista, revelando um olhar exotizante.

O segundo episódio, considerado mais grave pela performer, envolveu uma senhora que insistentemente a chamava de “índia” (não de indígena) e oferecia dinheiro, balançando uma nota de 100 reais. “Como ela teve autorização, no meio de um monte de gente, para fazer essa provocação toda?”, questiona Bárbara, evidenciando o desconforto com a situação.

Contrastando com essas experiências, uma terceira mulher demonstrou genuíno interesse. Ao receber a pedra das mãos de Bárbara, ela não apenas se engajou na apresentação como também convidou duas amigas para participarem. “O trabalho também tem esse lugar do encontro que pode dar certo ou não, pode acontecer violência, mas também tem um lugar de identificação, de afeto e de muita força espiritual”, reflete a artista.

Público participa ativamente da performance. Foto: Denis Gosch

Os caminhos rituais do Ané das Pedras

A performance, que estreou em 2019 num festival no Crato (CE), tem circulado por festivais de teatro, performance e dança. O trabalho começa com Bárbara vestida com trajes tradicionais de palha, carregando um maracá e uma cuia com pedras. Ela caminha pelas ruas da cidade, criando encontros com as pessoas e convidando-as a participar do ritual final: o plantio das pedras.

“O percurso demora uns 22 minutos, porque não é sobre a distância, mas sobre os encontros”, diz. Ela busca ruas com grande fluxo de pessoas e vai se conectando pelo olhar, um desafio na sociedade contemporânea. O trajeto termina em uma árvore cuidadosamente escolhida, que precisa atender a requisitos técnicos específicos.

“Eu preciso de uma árvore que não tenha concreto debaixo e normalmente escolho uma que consiga receber um bom número de pessoas”, detalha Bárbara. Na apresentação em Porto Alegre, mais de 60 pessoas acompanharam o ritual até seu momento final.

Importante destacar que as pedras utilizadas são sempre do próprio local onde a performance acontece. “Eu trabalho com as pedras daquele determinado lugar que eu me encontro. Porque não adianta eu pensar só que o rio lá da minha comunidade é um ancestral. É importante que eu pense que o rio que está em São Paulo, os rios que estão em outros lugares também precisam ser protegidos”, explica.

Um ato de resistência indígena e reeducação de imaginários

TRabalho é uma forma de reexistência cultural Foto: Lara Alencar

Ané das Pedras vai além da apresentação artística, pois posiciona-se como uma forma de reexistência cultural e uma proposta de reeducação de imaginários. “A cosmovisão dos povos indígenas é uma visão de mundo muito mais anticolonial e contracolonial na sociedade capitalista que a gente vive”, defende Bárbara.

Levar para o espaço público e para as artes cênicas elementos sagrados da cultura Kariri é um ato político. “Trazer a pedra como algo importante num lugar em que o que é importante é o dinheiro, o que alguém deu valor. Trazer para o palco algo que é forte para a gente, que é importante para a gente, é também uma reeducação de imaginários”, assinala.

A exibição em Porto Alegre ganhou significado adicional após a crise climática que assolou o estado. “Para mim foi muito forte vir fazer o trabalho aqui depois dessa crise climática escancarada que o estado viveu e que todo mundo assistiu”, situa Bárbara, estabelecendo uma conexão entre seu trabalho com os elementos da natureza e as questões ambientais contemporâneas.

Uma conquista histórica no Palco Giratório

A circulação de Ané das Pedras pelo Palco Giratório do Sesc Brasil representa um marco importante tanto para a artista quanto para a visibilidade das artes indígenas no circuito nacional. “A gente é o segundo grupo do interior do Ceará a circular pelo Palco Giratório e eu acredito que a gente é o primeiro grupo indígena com um trabalho voltado para a memória indígena a circular nesse programa que tem tantos anos”, celebra.

A decisão política de permanecer no Cariri

Apesar do reconhecimento nacional e das oportunidades de circulação, Bárbara Matias mantém uma posição política clara: continuar vivendo no interior do Ceará. “Por muito tempo a gente viu as pessoas do Nordeste sendo obrigadas, em sua maioria por questões de trabalho, a se deslocar para os grandes centros. Eu reivindico continuar morando no interior do Ceará”, afirma.

Para a artista, essa escolha é também um exercício político. “Tem aeroporto, as pessoas sabem do meu trabalho, as redes sociais estão aí, tem um telefone que pode ligar, dá para atender o e-mail. Não precisamos nos deslocar do nosso território de origem”, argumenta.

Permanecer no Cariri significa manter proximidade com sua família e comunidade, elementos que alimentam sua produção artística. “Continuar morando lá é também uma forma de não perder alguma coisa que alimenta muito firmemente o meu trabalho”, conclui Bárbara, reafirmando seu compromisso com suas raízes e com a valorização do território nordestino como espaço legítimo de produção cultural contemporânea.

Postado com as tags: , , , , ,

Na ginga da resistência
Crítica do espetáculo Encruzilhada

Grupo de Caxias (RS), traduz em movimento a potência dos corpos periféricos, transformando o samba, a arquitetura das favelas e as referências a Exu em uma contundente manifestação artística decolonial. Foto: Paulo Pretz

O espetáculo de dança Encruzilhada leva a favela para a cena, espelhando-a como um labirinto de muitos cruzos. A peça coreográfica de Caxias (RS) dirigido por Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina, foi exibida no domingo, 25/05, no CHC Santa Casa em Porto Alegre, como parte da programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

O corpo é essencialmente samba nessa Encruzilhada, carregando as marcas das diásporas, conjunções e controvérsias que formam o Brasil. Os intérpretes-criadores Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina e Thiago Roque partem de uma perspectiva decolonial para construir um mosaico coreográfico que desafia hierarquias estéticas. A hibridização de linguagens – onde a dança de salão dialoga com a gestualidade das danças urbanas, enquanto fundamentos do balé clássico são desconstruídos e ressignificados pela ginga dos ritmos afro-brasileiros – está intrinsecamente ligada às experiências pessoais dos dançarinos, que contribuem com suas próprias bagagens de vida e técnicas diversas. Essa mistura de vocabulários de movimento sugere um posicionamento político que ecoa o conceito de encruzilhada como espaço de múltiplas convergências culturais e estéticas.

Nessa estrutura narrativa fragmentada, os corpos transitam entre estados de opressão e insurgência, desenhando no espaço uma cartografia dos afetos periféricos. Os artistas constroem uma dramaturgia corporal que oscila entre a exaustão e o soerguimento, materializada de forma emblemática na “sambada do chinelo”, sequência onde o dançarino Igor Cavalcanti Medina explora os limites físicos em uma metáfora potente da persistência das comunidades marginalizadas.

Os movimentos do elenco, ora contidos e sufocados, ora explosivos e catárticos, projetam as dinâmicas sociais das encruzilhadas urbanas, criando um discurso corporal que expõe tensões, fraturas e celebrações da vida suburbana. Os corpos narram histórias e são, eles mesmos, essas histórias em suas materialidades suadas, ofegantes e resilientes.

A pesquisa dessa montagem está sustentada por material teórico, estético e político. Foto: Paulo Pretz 

Encruzilhada incorpora o conceito teórico desenvolvido por Leda Maria Martins em Afrografias da Memória, onde a encruzilhada é apresentada como “instância simbólica e metonímica” que opera como um “lugar terceiro” de interseções, desvios e múltiplas possibilidades. Ao adotar este conceito já em seu título, o espetáculo assume uma postura que valoriza o entrelaçamento de linguagens e saberes.

Na montagem cênica, a encruzilhada manifesta-se como tema e como princípio estruturante que organiza a própria dramaturgia corporal. Como morada de Exu, “linguista-tradutor do mundo”, conforme elabora Luiz Rufino em Pedagogia das encruzilhadas, a peça explora os elementos arquitetônicos das comunidades periféricas inspirados no artistas visual e performático Hélio Oiticica (937 – 1980), transformando-os em dispositivos que ativam memórias corporais e espaciais que desafiam a linearidade das narrativas hegemônicas.

Oiticica, artista que conferiu status estético às comunidades periféricas, constitui referência fundamental nas pesquisas do grupo de Caxias. Suas criações revolucionárias como os Parangolés (1964-1968), capas coloridas que incorporam o movimento e o ritmo do samba; os Penetráveis (1960-1979), instalações labirínticas inspiradas na arquitetura espontânea das favelas; e a Tropicália (1967), ambiente que sintetizava elementos da cultura brasileira marginalizada, ecoam no espetáculo Encruzilhada através do bailado corporal dos artistas e na concepção espacial que evoca os dispositivos arquitetônicos e urbanísticos dos morros.

A incorporação da ginga, do samba e da arquitetura labiríntica inspirada nas favelas opera no espetáculo como concretização do conceito de encruzilhada enquanto “lugar radial de centramento e descentramento”, como define Leda Maria Martins. Os corpos em movimento no espaço cênico apresentam-se como veículos de uma forma de conhecimento alternativa, na qual o saber não se dá apenas pelo logos, mas pelo pathos, pela corporalidade e pela performance. Ao entrecruzar a estética de Oiticica com as tradições afro-brasileiras, o espetáculo Encruzilhada propõe novos modos de existência baseados na fluidez e na negociação de identidades, rompendo com as dicotomias impostas pela colonialidade.

Em primeiro plano Ana Claudia Pereira, no espetáculo Encruzilhada. Foto: Divulgação

Os dançarinos transitam entre precisão técnica e o gesto cotidiano, com alguma improvisação, criando uma linguagem corporal que recusa categorias fechadas. A incorporação de elementos rituais, particularmente nas sequências inspiradas nas corporalidades de Exu, adiciona camadas de significado que aproxima a performance de uma experiência ritual coletiva.

Como uma narrativa integrada às corporeidades em cena, a trilha sonora de Encruzilhada é executada ao vivo por Zeca Duarte, compositor e multiinstrumentista. Suas criações autorais tecem uma dramaturgia sonora que entrelaça as tradições do samba e do choro com referências contemporâneas, evocando a sofisticação harmônica de Baden Powell e a irreverência rítmica de Jorge Ben Jor. Esta musicalidade traduz sonoramente o conceito de encruzilhada, estabelecendo-se como ponto de confluência entre diversas correntes da música brasileira.

A parceria com o percussionista Marcelo Poleze Silva adiciona camadas de complexidade rítmica que dialogam diretamente com os corpos do elenco, estabelecendo uma integração entre movimento e som que remete às práticas comunitárias das rodas de samba. Os instrumentos de percussão, fundamentais nas tradições musicais afro-brasileiras, atuam como extensões dos corpos em cena.

O ambiente visual de Encruzilhada permite ligações entre presença física e espacialidade. O cenário, marcado por desenhos que evocam a estética do grafite urbano e por representações de entidades das religiões de matriz africana, transforma o palco em um portal entre mundos, enquanto o figurino, de aparência casual mas carregado de significados, destaca-se pela deliberada apropriação da camisa amarela da seleção brasileira – um ato político de resgate de um símbolo nacional sequestrado por discursos autoritários.

As vestes, adornadas com saudações a Exu e elementos gráficos que remetem às encruzilhadas, funcionam como uma segunda pele que amplifica o discurso corporal dos intérpretes. Complementando esta narrativa visual, a iluminação alterna momentos de penumbra opressiva e clarões de esperança, construindo atmosferas que reforçam a narrativa fragmentada e pulsante que emerge dos corpos em estado de resistência e celebração.

Nas sequências iniciais, a opção por manter determinadas zonas do palco em penumbra atua como comentário social sobre os mecanismos de invisibilização operados pelo sistema capitalista contemporâneo. Esta escuridão seletiva explicita visualmente as dinâmicas de exclusão que relegam determinados corpos e territórios às sombras do panorama social. Ao longo da performance, a luz adquire qualidades quase coreográficas, dançando junto aos intérpretes, ora revelando detalhes minuciosos, ora expandindo-se em feixes amplos que abraçam toda a cena.

Encruzilhada afirma-se como manifestação artística decolonial que, através da potência expressiva dos corpos, da riqueza musical e da dramaturgia fragmentada, desconstrói estruturas de dominação historicamente estabelecidas. O espetáculo questiona a lógica racista de produção de identidades enquanto busca formas alternativas de existência e resistência. Sua força reside na capacidade de transformar linguagens artísticas em posicionamento político, sem abrir mão da experiência estética estimulante e rica em nuances. Ao celebrar a complexidade da identidade brasileira através de seus encontros e desencontros, a obra convida o público a habitar poeticamente o labirinto de possibilidades que emerge quando nos permitimos existir nas encruzilhadas.

Ficha Técnica

Direção Geral e Artística: Assaury Hiroshi e Igor Cavalcanti Medina

Direção Musical e Composição: Zeca Duarte

Intérpretes Criadores: Ana Claudia Pereira, Assaury Hiroshi, Igor Cavalcanti Medina
Thiago Roque

Percussão: Marcelo Poleze Silva

Sonorização: Haik Yermia Khatchirian

Assistência de Palco: Kaynan Cousseau Ribeiro

Dramaturgia, iluminação e Figurino: Paula Giusto

Produção Cultural e Executiva : Uyara Camargo

 

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

 

 

 

Postado com as tags: , , , , , , ,

Crônica da demora:
Artistas questionam pagamentos de cachês
e a política cultural no Recife

 Comunidade teatral do Recife aponta atrasos sistemáticos no pagamento de cachês. Imagem do espetáculo  Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife. Foto: Ivana Moura

Cena de Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recifena comunidade do Pilar. Foto: Ivana Moura

Em novembro de 2024, o espetáculo Ọnà Dúdú — Caminhos Negros do Bairro do Recife se destacou na programação da Mostra OFF-REC, parte do 23º Festival Recife do Teatro Nacional, como uma das propostas artísticas de maior impacto e relevância. A obra, que mergulha nas narrativas, trajetórias e vivências negras que moldaram e continuam a pulsar no histórico bairro da capital pernambucana, foi amplamente reconhecida por sua qualidade artística e seu inegável valor cultural e social. Contudo, passados seis meses desde sua apresentação, o diretor e produtor Marconi Bispo viu-se na difícil posição de ter que recorrer às redes sociais para realizar uma cobrança pública do cachê acordado com seu grupo, um pagamento que, até então, não havia sido efetuado pela Prefeitura do Recife.

Marconi Bispo não escondeu sua frustração e o receio que acompanha a atitude de expor publicamente tal situação. Como artista e produtor negro, ele ponderou intensamente sobre as possíveis consequências e retaliações que poderiam advir dessa manifestação. Essa hesitação inicial sublinha a vulnerabilidade de artistas que dependem do poder público e temem ser preteridos em futuras seleções ou editais.

A escolha estratégica de utilizar as redes sociais como palco para o protesto carrega uma ironia particular, considerando que o prefeito João Campos é notadamente conhecido pelo uso intensivo e hábil dessas mesmas plataformas. Campos construiu grande parte de sua imagem pública e promove ativamente sua gestão através de vídeos curtos, informais e uma comunicação direta com seus mais de 2,9 milhões de seguidores. No entanto, as mesmas ferramentas digitais que servem para celebrar conquistas institucionais tornam-se, neste caso, instrumentos de protesto para artistas locais que dizem enfrentar o silêncio institucional.

Ao expor a situação do seu grupo nas redes sociais, Marconi Bispo rapidamente percebeu que os atrasos nos pagamentos não era um caso isolado, afetando uma gama diversificada de outros profissionais da cultura. Relatos semelhantes surgiram de pareceristas da prefeitura, essenciais na avaliação técnica e artística de projetos culturais submetidos a editais públicos, que também enfrentavam longos e imprevisíveis períodos sem remuneração pelos serviços prestados. Bispo destacou que essa realidade dolorosa é parte de um cenário recorrente no setor cultural, onde o silêncio muitas vezes predomina, impulsionado pelo medo de represálias que poderiam comprometer futuras oportunidades de trabalho e pela intrínseca dependência dos recursos públicos para a viabilização de projetos e a própria subsistência. A falta de pontualidade nos pagamentos não apenas causa dificuldades financeiras imediatas, mas também desestrutura o planejamento de artistas e produtores, impactando a continuidade de suas atividades e a saúde do ecossistema cultural como um todo.

Essa situação de inadimplência por parte do poder público é corroborada por outros artistas com vasta experiência, como Paulo de Pontes, veterano com mais de 40 anos de carreira no teatro e no cinema, que já havia utilizado suas plataformas digitais para chamar atenção para os pagamentos devidos tanto pela Prefeitura quanto pelo Governo do Estado. Pontes ressalta a frustração e a insegurança geradas pela falta de clareza nas respostas obtidas junto às secretarias responsáveis e a recorrente transferência de responsabilidade entre diferentes setores ou níveis de governo. Essa burocracia deixa os artistas sem saber quando receberão pelos serviços já executados, reforçando um problema sistêmico na gestão dos recursos destinados à cultura e minando a confiança dos profissionais no poder público como parceiro e fomentador.

Paula de Renor, produtora e atriz também com mais de 40 anos de experiência nos palcos e na luta por políticas culturais, aprofunda a análise sobre o significado desses atrasos. Para ela, se trata de um modus operandi enraizado e petrificado dentro de uma cultura política. “Estamos sempre esperando a liberação da Secretaria da Fazenda e esta Secretaria passa a ser para nós , um grande limbo, onde devemos nos conformar e esperar o dia em que chegaremos ao paraíso, dia do depósito do cachê!”. Segundo ela, “No capitalismo é possível aniquilar vidas e carreiras a partir de escolhas econômicas, e isso precisa acabar”, afirma categoricamente. Sua crítica vai além da denúncia pontual, apontando para um problema estrutural: “Não é possível que no século 21 ainda existam práticas que não priorizem os artistas, já que a imagem da cidade do Recife e do estado de Pernambuco é construída em cima da arte feita por esses profissionais.”

Humor na cobrança

Durante a espera de quase cinco meses pelo pagamento de sua participação no evento “Dia do Palhaço, da Palhaça, do Palhace”, realizado em dezembro de 2024 e promovido pela Secretaria de Cultura do Recife, a atriz e palhaça Ana Nogueira encontrou na arte do cordel uma forma potente de expressar sua indignação e frustração com a morosidade burocrática. Para muitos artistas, especialmente aqueles que atuam de forma independente, o cachê de eventos culturais é fundamental para sua subsistência, tornando a demora no pagamento não apenas um inconveniente, mas um sério problema financeiro.

Diante da ausência do cachê e após inúmeras tentativas infrutíferas de esclarecimento sobre o status do pagamento junto aos setores responsáveis da Secretaria, Ana transformou sua experiência de incerteza em poesia popular. Ela compôs dois cordéis que narram o drama da longa espera, a peregrinação em busca de informações e a falta de respostas claras por parte da gestão pública. O cordel, com sua estrutura narrativa e linguagem acessível, provou ser um veículo eficaz para dar voz à sua angústia e criticar a morosidade administrativa. Um dos trechos que melhor encapsula o sentimento de espera, a busca por informações e a perplexidade diante da falta de solução é:

A pergunta que não cala
Onde está o meu dinheiro
Já liguei pra todo mundo
Até para o financeiro
Ninguém sabe me dizer
Qual é o seu paradeiro.

A artista recebeu seu cachê no final de abril de 2025, quase cinco meses após a realização do evento em que se apresentou.

A burocracia como obstáculo

Paralelamente, o ator e diretor Marcondes Lima criticou atrasos em dois cachês distintos: um referente a uma apresentação do espetáculo-palestra Babau, Pancadaria e Morte realizada em julho de 2024, durante a Semana Hermilo, e outro pelo mesmo trabalho apresentado no OFF-REC em novembro do mesmo ano. “Se passaram 10 e 6 meses, respectivamente, e nada do pagamento”, afirma. Marcondes contesta a justificativa oficial que costuma responsabilizar os próprios artistas pela demora: “As justificativas responsabilizam sempre a nós artistas: os atrasos ocorrem porque não apresentamos documentações devidas, porque não agilizamos isso no prazo estipulado, etc. Mas isso não é verdade.”

A negativa de Marcondes se baseia na sua própria experiência, afirmando que, no caso do grupo Mão Molenga, toda a documentação foi providenciada e os empenhos estavam “supostamente” garantidos. Ele atribui a demora à transferência de contas de um ano administrativo para outro, um processo interno da Prefeitura que não deveria afetar os artistas. Além disso, ele aponta para uma diferença crucial entre os contratos de artistas locais e os de artistas de renome: enquanto os primeiros carecem de clareza quanto a prazos e condições de pagamento, os segundos costumam ter esses pontos especificados, garantindo maior segurança financeira. Essa discrepância, segundo ele, demonstra que a burocracia e a morosidade afetam, desproporcionalmente, os artistas da cidade.

Um aspecto especialmente perverso desse sistema foi destacado por Marcondes Lima: “Demorou tanto tempo para recebermos (na verdade ainda não recebemos) que para poder garantir o recebimento de um dos cachês precisávamos apresentar uma nova certidão negativa de taxa municipal porque a anterior expirou. Sem capital de giro para pagar para receber e dependendo do recebimento para pagar, pedimos emprestado e ainda estamos devendo.” Esta situação ilustra como o ciclo burocrático se retroalimenta, criando novas dificuldades para os artistas.

Espetáculo Babau e Dúdú e artistas Quiercles Santana, Brunna Martins, Paula de Renor, Marcondes Lima, Marconi Bipo e Fábio Caio. Reprodução da Internet

No caso do espetáculo Ọnà Dúdú, Marconi Bispo revela uma dimensão ainda mais preocupante do problema: “São 20 pessoas, em sua grande maioria negras e periféricas, que confiam a mim o seu trabalho e a regência de uma performance complexa que, mais uma vez, é solapada e destratada por uma secretaria de Cultura.” A última informação recebida pelos artistas foi: “O pagamento está em vias de acontecer, mas não conseguimos precisar a data”.

A artista Brunna Martins confessa profunda frustração ao falar dos persistentes e significativos atrasos nos repasses financeiros referentes a cachês e recursos provenientes do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC). A crítica central de Brunna reside no que ela aponta como contraste entre a inflexibilidade e o rigor com que a administração municipal exige o cumprimento de prazos e requisitos por parte dos proponentes culturais e a notória morosidade da própria gestão pública no processamento e efetivação dos pagamentos devidos. Esse descompasso operacional, como questão burocrática, compromete de forma drástica a sustentabilidade e a viabilidade financeira dos projetos culturais da cidade.

A situação expõe fragilidades na gestão dos mecanismos de fomento à cultura, como o SIC, que, apesar de sua importância para a dinamização do setor, tem sua eficácia minada pela imprevisibilidade e pela falta de pontualidade nos pagamentos. Brunna Martins reitera o apelo para que os gestores municipais percebam o impacto desses processos no planejamento futuro e na continuidade das atividades artísticas e culturais na capital pernambucana.

A disparidade no tratamento entre profissionais locais e externos é reforçada por Marcondes Lima, que questiona: “Não parece vergonhoso pagar 400 mil reais talvez um dia depois, na semana ou no mês seguinte a uma apresentação e demorar dez meses para pagar a outra cujo valor é 4 mil reais?” Marconi Bispo faz o mesmo questionamento: “Marco Nanini está passando por isso? Othon Bastos? A Armazém Cia de Teatro? Acho que não. Para esses, a gestão tem sempre bom coração.” Segundo os artistas, essa disparidade evidencia o que Paula de Renor chama de “escolhas econômicas” que podem aniquilar carreiras – uma política que prioriza o espetáculo midiático em detrimento da sustentabilidade do ecossistema cultural local.

Necessidade de discutir a política cultural

O encenador Quiercles conta pro Yolanda: “O Festival Recife do Teatro Nacional já me pagou. Mas isso foi semana passada. Foram quase seis meses esperando um dinheiro pouco e sem graça. É de uma falta de respeito ímpar”. Mesmo tendo recebido, ele evidencia o desgaste causado pela espera prolongada e o valor insuficiente. “Toda vez que tenho de trabalhar para a prefeitura, sinto que é um dinheiro que não vou ter tão cedo”, acrescenta, demonstrando como essa prática afeta a confiança dos artistas nas instituições públicas.

Quiercles também menciona outros projetos que aguardam recursos: “Kalash (peça teatral) está aguardando o SIC Recife para poder executar o projeto nas periferias da cidade. Ninguém sabe quando será pago”. Sua reflexão sobre a viabilidade da profissão é contundente: “Viver de teatro aqui não é fácil. Sem patrocínio ou com apoios dessa natureza, estamos fadados ao abismo. Manter hoje no Recife um grupo de teatro é uma aposta arriscada na corrente contrária de qualquer ordem capitalista. Insano mesmo”. O encenador ainda amplia a crítica para além dos atrasos nos pagamentos: “Tem muita bronca envolvida, inclusive a forma como são selecionados projetos nos editais”, concluindo com um desabafo que reflete o esgotamento: “Ando com uma vontade enorme de sumir da cena”.

Fábio Caio, do grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos, nos falou do desconforto com o atraso dos cachês. “Em breve faremos aniversário do não pagamento”, pontuou o artista, referindo-se à apresentação na Semana Hermilo de julho de 2024. “Nos exigem uma infinidade de documentos e cumprimos rigorosamente com nossas obrigações, mas infelizmente essa reciprocidade não é prática da prefeitura,” desabafou.

Caio também mencionou o trabalho feito para o Festival Recife do Teatro Nacional, realizado em novembro, que, sem previsão de pagamento que o grupo tenha conhecimento, encontra-se na mesma situação. “É tanto desrespeito que decidi não mais trabalhar para a prefeitura”, afirmou com firmeza. Ele ainda lembrou que passou por situação semelhante com o espetáculo Hélio,  o Balão que Não Consegue Voar, mas que, neste caso, o pagamento já foi efetivado.

Ouvimos o conselheiro Oséas Borba Neto, que defende sua atuação ativa no âmbito do Conselho Municipal de Cultura, focando em questões cruciais como os recorrentes atrasos nos pagamentos devidos a artistas e produtores culturais, bem como as condições muitas vezes precárias dos equipamentos culturais sob gestão municipal.

Para ilustrar a urgência, o conselheiro disse que solicitou formalmente que o conselho dedique tempo para debater e propor melhorias substanciais tanto nas estruturas físicas quanto na gestão operacional de espaços vitais para a cultura da cidade, como teatros, galerias de arte e centros culturais. A Secretaria Municipal de Cultura, em resposta a essas demandas e à necessidade de um tratamento aprofundado dos temas, sugeriu a criação de uma comissão específica dentro do conselho para se debruçar sobre os problemas de pagamentos e infraestrutura. No entanto, até o momento, essa comissão não foi efetivamente constituída.

Embora não haja uma lei específica que proíba expressamente a realização de eventos sem empenho prévio, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Isso inclui a execução orçamentária, que deve ser alicerçada na existência de disponibilidade orçamentária e financeira, garantindo que recursos estejam previstos no orçamento e disponíveis no fluxo de caixa. Como já foi dito, na gestão cultural do Recife, entretanto, foi constatado que artistas e técnicos têm recebido seus cachês com atrasos significativos.

A centralidade da arte na construção da imagem do Recife e de Pernambuco, como destacado por Paula de Renor, contrasta com a precariedade enfrentada pelos artistas.

 As políticas públicas culturais, fundamentais para o fomento e a difusão da produção artística, frequentemente encontram barreiras significativas em sua execução, impactando diretamente a atuação dos profissionais do setor. Essas dificuldades administrativas, que se manifestam em processos burocráticos excessivamente complexos, morosos e, por vezes, pouco transparentes, criam um cenário de insegurança e imprevisibilidade para os artistas. Como resultado dessa ineficiência dos canais formais, a reivindicação de direitos básicos, como o pagamento de cachês por trabalhos já realizados, é frequentemente deslocada para plataformas informais, como as redes sociais, onde a pressão pública ou a busca por informações descentralizadas se tornam as vias principais.

Essa dependência de mecanismos informais, que expõe os artistas a situações de vulnerabilidade e desgasta a relação com as instituições, evidencia a necessidade urgente e imperativa de aperfeiçoar e modernizar os mecanismos institucionais de diálogo, gestão e pagamento na esfera cultural. Isso poderá criar processos que sejam funcionais e acessíveis, mas também transparentes, ágeis e baseados em fluxos claros e previsíveis, garantindo a segurança jurídica e financeira dos profissionais e permitindo que eles se concentrem em sua produção artística, em vez de lutar por seus direitos básicos.

Resposta da Prefeitura 

Enviamos uma solicitação formal à Prefeitura do Recife, buscando esclarecimentos sobre os motivos dos atrasos nos pagamentos dos cachês dos artistas. A Prefeitura enviou a seguinte nota:

“A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, informa que estão sendo tramitados e realizados todos os processos e pagamentos referentes aos festivais e ciclos culturais realizados a partir do segundo semestre de 2024. Somadas as quase 300 contratações realizadas para compor a programação dos festivais de Literatura, Dança, Teatro e da Mostra de Circo, somente 11 processos seguem pendentes, em função de questões documentais. O poder público municipal reafirma o compromisso e o esforço permanentes para garantir pagamentos cada vez mais céleres aos fazedores de cultura da cidade, de todas as linguagens e cadeias produtivas”.

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , ,