A repressão risível do desejo

As Bondosas, com os atores Leandro Mariz, Sidcley Batista, Gerson Lobo. Fotos: Ivana Moura

As Bondosas, com os atores Leandro Mariz, Sidcley Batista, Gerson Lobo. Fotos: Ivana Moura

logo garanhunsSidcley Batista, Gerson Lobo, Leandro Mariz e Tom Pires são quatro artistas pernambucanos que migraram para o Rio de Janeiro para trabalhar com arte. Eles são os três atores e o diretor da peça As Bondosas, da Cia SOS de Teatro Investigativo, que foi apresentada nessa terça-feira, no 25º Festival de Inverno de Garanhuns. Ao final da sessão, Gerson Lobo dedicou o espetáculo ao artista de teatro pernambucano, na intenção de que ele seja valorizado aqui e não precise sair para só ser reconhecido pelas instituições quando está lá fora. Recado dado.

Espetáculo lotou o Teatro Luiz Souto Dourado e ainda voltaram cerca de 200 pessoas

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As Bondosas do título são Prudência (Sidcley Batista), Angústia (Gerson Lobo) e Astúcia (Leandro Mariz). Essas mulheres contratadas para prantear os mortos alheios guardam vontades secretas, presas por represas frágeis e por isso prestes a explodir.

A história das três carpideiras é à primeira vista muito engraçada. Mas traz em si uma dobra de reflexão, quando impregnam no corpo dessas figuras noções de pecado e de uma moral castradora. As frases absurdas causam aquele efeito risível, se as posições retrógradas são consideradas como um quadro distante da realidade da plateia.

É uma longa jornada noite adentro em que as rezadeiras são atingidas pelo desprezo da família da menina morta. E entre cânticos piedosos, elas julgam o grupo social que as contratou e passam a fazer conjecturas sobre traições, ligações clandestinas e até mesmo as razões da jovem defunta. E algo detona dentro delas, que revelam em doses homeopáticas seus próprios segredos.

Pelos julgamentos morais, pelos interditos parece que essas personagens se encontram num Brasil distante no espaço e no tempo. E como seria bom que fosse assim. Que as mulheres travadas em seus desejos estivessem só no palco. Que os julgamentos morais fossem apenas farsa a divertir o público com aquele tratado absurdo.

Na peça, essas três mulheres de reputação ilibada são dosadas em gradações de sua fé no ofício. Prudência é a mais conservadora, pronta a regular as outras duas do caminho a ser seguido. Astúcia é a mais vulnerável, a que está mais propensa a romper com aquele acordo para liberar os íntimos desejos. E Angústia é a indecisa, pendendo ora para um lado, ora para outro.

O texto de Ueliton Rocon lembra as figuras castas, culpadas e transbordantes de preconceitos de Nelson Rodrigues, com suas camadas de instintos prestes a arrebentar. Mas sem a profundidade do autor de Doroteia; Senhora dos Afogados e Perdoa-me Por Me Traíres.

A direção explora bem os recalques dessas senhoras castíssimas, que dizem que não se veem peladas para não despertar a vaidade. E sabe tirar partido de uma gestual de comunicação direta com a plateia, mantendo o jogo de cena vibrante.

O trio se movimenta carregando pequenos caixotes e traçando desenhos no palco. Os tais caixotes, juntos ou separados, traçam os lugares narrativos, e ajudam na transformação da cena. Os figurinos carregam em si a subversão que virá.

Humor cáustico para falar de desejos reprimidos.

Humor cáustico para falar de desejos reprimidos.

A interpretação dos três atores é o grande destaque de As bondosas, com a mudança de tom, com um gestual bem estruturado (inclusive com sutis movimentações de cabeça) e a força cômica do espetáculo em vários relevos. Dos pecados que elas condenam, a gula e a fofoca são os primeiros que jorram, num jogo de patrulhamento moral. Um par sapatos vermelhos é o detonador da luxúria, que explode dessas “almas ilibidas” dos confins do mundo.

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