No palco com as minhas ancestrais*
Crítica: Avós
Por Pollyanna Diniz*

Olga Ferrario em Avós. Foto: Anderson Stevens

Quantas mulheres cabem no corpo de uma mulher? Quem são as que vieram antes de nós e estão entranhadas em nossos corpos? Quão perto podemos chegar delas? O que nos diriam? Nelas, quanto veríamos de nós? A atriz Olga Ferrario compartilha a experiência de mergulhar no tempo a partir da cosmovisão de que somos começo, meio e começo. Avós, espetáculo que surgiu no contexto da pandemia de covid-19, sendo apresentado ao vivo, de modo virtual, estreou oficialmente nos palcos físicos nesta última edição do Festival Recife do Teatro Nacional, no Teatro Hermilo Borba Filho.

A atriz diz que aquela não é uma história. Que tudo está dado e nada precisa ser decifrado. Mas, ao mesmo tempo, se refere ao mistério: “No corpo das minhas avós eu tenho a sensação de que o mistério é coisa simples”. O que acontece em Avós é história grafada no corpo: um corpo-história que é movimento contínuo, memória de passado e futuro, que se expande no presente, que extrapola o que acontece “dentro” em poesia visual. Além do texto propriamente dito pela atriz, a dança, a música e as influências do cinema ajudam a compor essa dramaturgia poética que constrói imagens simples e significativas, como uma mulher que gira em torno de si mesma com os braços abertos, uma pedra sendo sustentada por um dos pés, o movimento repetitivo da queda, a mulher que dança de maiô branco na frente da tela, como duplo de si mesma, o mar que parece sair da projeção e invadir a mulher.

Dramaturgicamente, Avós é dividida em “cômodos”. Faz todo sentido – corpo é história, corpo é casa. O primeiro desses cômodos é “maternidade”, ao que se seguem “memória”, o cômodo chamado de “incômodo”, o “parto” e “avós”. Embora a ideia de cômodo possa remeter à compartimentação, a uma separação temática, o movimento é de confluência, então naturalmente esses cômodos estão imbricados. A dança é o motor do espetáculo, o corpo que dança e desliza entre esses cômodos, que impõe fluidez e liberdade a partir dos movimentos.

No primeiro deles, a atriz – que também é bailarina e palhaça – transforma a queda em dança. Tendo uma cadeira como elemento cenográfico, o corpo cai repetidas vezes, como se a maternidade predispusesse a queda, a falta de controle, a suposta falha de tentar sustentar o movimento e não conseguir. Nesse mesmo desenho coreográfico, instantes antes, Olga dança com algumas pedras dispostas no palco, uma pequena barreira. Tenta equilibrar a pedra num dos pés enquanto procura expandir os movimentos, que se tornam tateantes. São pedras que sustentam ou pedras que impedem? Pedras que mostram o caminho ou obstáculos? A pedra também é filho, embalado no colo pelo movimento ritmado do corpo.

O movimento de queda como metáfora da maternidade. Foto: Marcos Pastich/PCR

As avós e suas histórias ocupam o espaço do teatro desde o início, a princípio por áudios, depois a partir de falas da atriz, numa mudança de vozes em que nem sempre há uma separação clara entre essas personagens, duas avós e neta que coexistem por meio desse corpo único. Mas há o dispositivo do vídeo, que personifica e dá materialidade a essas figuras através dos seus depoimentos. As duas avós são entrevistadas pela neta – falam de momentos do passado, de maternidade, de dificuldades enfrentadas, do cotidiano, e dão conselhos – solicitados pela neta.

 Uma delas diz que teve seis filhos de parto vaginal e que amamentou todos em livre demanda. A outra, num depoimento forte, conta da perda dos filhos e que o trabalho como professora em sala de aula fez com ela conseguisse lidar com o luto: diz que ia gritando de dor dentro do carro que dirigia, com os vidros fechados, sem ar-condicionado, durante todo o trajeto. Uma delas dá o conselho de fazer o bem. A outra lembra da possibilidade de ressuscitar dos mortos depois do enfrentamento de um grande obstáculo.

Além de uma carta de ensinamentos de sabedoria, homenagens e agradecimentos a essas avós, Olga sustenta que “a vida está sempre revivendo”, como diz uma de suas avós. E uma mãe se torna avó. Uma filha se torna mãe. Um trecho do parto do seu filho mais velho, Davi, é exibido no telão. No registro, Olga é amparada o tempo inteiro por sua mãe, Lívia Falcão, também atriz. Ao mesmo tempo em que Olga nascia mãe e paria o filho, a mãe dela paria um neto. O movimento que é começo, meio e começo.

Na ficha técnica, o espetáculo se revela uma construção familiar: a direção é assinada pela cineasta Déa Ferraz, companheira do pai de Olga, o ator Cláudio Ferrario; por Lívia Falcão, mãe da atriz; e por Silvia Góes, bailarina, atriz, dramaturga, parceira de trabalho de Lívia e Olga há muitos anos. A dramaturgia é de Olga e de Silvia Góes. A trilha sonora original foi criada por Hugo Coutinho, pai dos dois filhos de Olga. E a produção é de Cláudio Ferrario e da filha. O desenho de luz é de Luciana Raposo e a operação de som e projeção é de Marina Santos. A luz, inclusive, é um espaço de aconchego no espetáculo, com seus azuis da memória, amarelos de sol aberto, e ambiências que criam contextos de intimidade ao longo da peça.

A afetividade e a delicadeza, que são parte da força do trabalho, marcam a dramaturgia de Avós. Mesmo quando o momento é de tentar falar e reagir às invisibilidades que as mulheres foram submetidas ao longo dos séculos pelo patriarcado, essa projeção não se desprende da sutileza do espetáculo. Logo no início, a atriz diz que queria chegar o mais perto possível das avós, mas sem feri-las. E nesse limiar está uma das potências que não explodem no espetáculo. No cômodo “incômodo”, o corpo-história dessa mulher pergunta se pode falar, diz que queria, ou melhor, que quer falar. Mas o outro dormiu. Ao mesmo tempo, ainda é uma fala carregada de culpas e desculpas. É como se o ambiente fosse muito mais propício à ternura, ao resgate das nossas memórias ancestrais a partir daquelas que estão no palco, ao renascimento, mas atenuasse a possibilidade de qualquer conflito. Não há virada dramatúrgica nesse ponto, mesmo que o movimento do espetáculo seja o do enovelamento entre Olga e suas avós.

Olga Ferrario é corpo-história em Avós. Foto: Anderson Stevens

Por fim, no cômodo “avós”, Olga assume as avós como personagens. Empresta o seu corpo-história para mimetizar essas mulheres, dizendo trechos de algumas das entrevistas que já ouvimos ao longo do espetáculo na voz das próprias avós, seja em áudio ou em vídeo. Em seguida, na alternância de vozes, assume o protagonismo e diz o que aprendeu com essas mulheres, o que leva delas.

Avós é um acalanto ao coração. Um cafuné que gostaríamos de ter a chance de fazer em cabeças de cabelos brancos. Saímos do teatro querendo abraçar e ouvir as nossas, lado a lado, em espírito, em memória. Olga Ferrario abre uma fresta no tempo convidando os nossos corpos a darem espaço a esse corpo-história, a carregar a nossa ancestralidade, a transcender os limites.

* A cobertura crítica da programação do 24º Festival Recife do Teatro Nacional é apoiada pela Prefeitura do Recife.

A dança é motor do espetáculo, dividido dramaturgicamente em “cômodos”. Foto: Anderson Stevens

Ficha técnica:
Avós
Direção: Déa Ferraz, Lívia Falcão e Silvia Góes
Dramaturgia: Olga Ferrario e Silvia Góes
Trilha sonora original: Hugo Coutinho
Produção: Cláudio Ferrario e Olga Ferrario
Desenho de luz e operação: Luciana Raposo
Operação de som e projeção: Marina Santos

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