Epifanias cênicas: arte é política
Crítica: Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém]

Apresentação do espetáculo Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém} em Porto Alegre. Foto: Adriana Marchiori

Renata Sorrah e cia brasileira de teatro em Porto Alegre

Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, lotado nas duas sessões da peça. Foto: Adriana Marchiori

Todo o mundo ama Renata Sorrah. Talvez não todo o mundo do mundo inteiro, porque há quem prefira exercitar sentimentos menos nobres. O que é incontestável, porém, é que o público que lotou as duas sessões do Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, na quarta e quinta-feira, 4 e 5 de junho, na programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, vibrou numa emoção coletiva de admiração e carinho. Um fenômeno semelhante já havia sido testemunhado durante a temporada no SESI-SP, onde o espetáculo somou 64 apresentações entre 22 de agosto e 1º de dezembro de 2024, atraindo cerca de 27.400 pessoas. Mas bah, tchê, essa experiência no Rio Grande do Sul foi extraordinária. A atriz gaúcha Sandra Possani foi uma das pessoas que se emocionou do início ao fim da peça.

Em Porto Alegre, alguns espectadores mais afoitos buscavam eternizar os momentos pós-espetáculo em selfies. No contexto da peça, qualquer receio de que o público gaúcho, por vezes associado a um certo conservadorismo, fosse reticente com a linguagem contemporânea da Companhia Brasileira de Teatro desfez-se por completo. A plateia, composta por amantes das artes e especialmente do teatro, mostrou-se aberta e disposta a mergulhar de cabeça na proposta, permitindo-se expandir seus horizontes.

Essa receptividade entusiástica transformou-se em uma declaração coletiva de benquerença. Todas ali desejavam expressar, e o fizeram com uma ovação calorosa: “Nós amamos sua arte”. Muitos, naquele momento, sentiram-se conectados às emoções que a canção Beatriz tão bem entoa – aquela valsa composta por Edu Lobo, com letra de Chico Buarque, e eternizada na voz de Milton Nascimento: “… Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira / Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz / Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis / E se o arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida…” – versos que capturam essa mescla de admiração distante e desejo de proximidade que tantos nutrimos por grandes artistas.

Curiosamente, essa relação entre público e celebridade o espetáculo questiona e desdobra. As falas da peça refletem essa obsessão de forma crítica e bem-humorada: Deixa ela… “Olha como ela sorri. Olha como ela anda… olha como ela dirige o carro.” A dramaturgia e a encenação de Marcio Abreu jogam com o conceito de celebridade de forma sagaz, agenciando sua desconstrução. Em cena, a “estrela” Renata Sorrah é instigada a ir além do que se espera de sua persona pública, revelando a humanidade e as complexidades por trás do ícone.

As grandiosas projeções do rosto de Sorrah em cena atuam como um recurso estético impactante e como uma metáfora visual potente que, ao magnificar a figura da atriz a proporções monumentais, força o espectador a um escrutínio íntimo sobre a construção da celebridade. Essa magnificação aprofunda o debate para além do universo estético e performático, adentrando questões urgentes e contemporâneas, como a ascensão de figuras desqualificáveis no campo político e a criação de um terreno fértil para a proliferação desenfreada de desinformação. A justaposição da imagem da atriz – uma figura de culto no teatro, na televisão e no cinema brasileiros – com a crítica incisiva a esses fenômenos sociais e políticos, estabelece um paralelo inquietante e insinua que a mesma lente crítica aguçada, aplicada ao estudo do culto de personalidades e à construção de ícones, deve ser rigorosamente direcionada à arena social e política.

Rodrigo Bolzan e Renata Sorrah. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki, Rodrigo Bolzan, Bianca Manicongo (Bixarte), Renata e Rafael Bacelar.Foto: Adriana Marchiori

Em um momento da encenação, Renata Sorrah remonta a uma epifania vivenciada na década de 1970, no limiar de um ensaio rotineiro de A Gaivota, onde interpretava Nina. Nesse trajeto cotidiano, uma súbita e profunda clareza se manifestou. Uma epifania, em sua essência, é isso: um lampejo de percepção tão profundo e inesperado que uma verdade fundamental irrompe na consciência, um ponto de inflexão existencial que altera a perspectiva do indivíduo. Essa reminiscência, meticulosamente partilhada com a plateia, irradia-se como feixes de luz que permeiam e moldam cada gesto, cada intenção e cada palavra proferida em cena. É essa memória fundacional que nutre a complexa engrenagem criativa do espetáculo, desempenhando o papel de um pilar que conecta a experiência pessoal e íntima da atriz e do elenco às questões intrínsecas de dilemas e complexidades do viver e à prática artística.

A dramaturgia, elaborada a partir da pesquisa e criação coletiva de Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria, estrutura-se em complexos estratos subjetivos sobrepostos, que deliberadamente conduzem o espectador por intrincados deslocamentos temporais e fissuras na consciência. A peça de Tchekhov move-se como um eco ressonante, uma matriz referencial e temática que possibilita explorar os dilemas entre arte e vida, idealismo e realidade. As sequências articulam-se não por encadeamento causal tradicional, mas por associações poéticas e excertos dialógicos forjados em improvisações, o que confere à narrativa um caráter fluido e em constante devir, resistindo a interpretações fechadas. A experiência performática incorpora recursos metateatrais, como a autorreferencialidade ao ato de criação e menções diretas ao processo de ensaio, desvelando a própria construção da obra e convidando o público a refletir sobre a natureza da representação.

O elenco, composto por Rentata, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte), revela-se uma verdadeira constelação de talentos. Cada integrante concede voz à sua singular vivência e corporeidade, tecendo-as à cena e enriquecendo a intrincada trama de subjetividades que a peça desdobra.

A Trajetória de uma Parceria Excepcional

Ao longo de mais de treze anos, a colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção de Marcio Abreu, e a atriz Renata Sorrah firmou-se como um dos encontros mais inspiradores e influentes no panorama teatral contemporâneo brasileiro. 

O capítulo inaugural dessa trajetória remonta a 2012, com Esta Criança, texto do dramaturgo francês Joël Pommerat. Na montagem, a Companhia, com Sorrah e o elenco de Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha, explorou dez situações-limite entre pais e filhos, valendo-se de estruturas fragmentadas e economia de gestos para revelar a urgência das emoções familiares.

Em 2015, a parceria firmou-se em Krum, texto de Hanoch Levin, onde a violência simbólica e o humor ácido integraram-se à pesquisa corporal e vocal do coletivo. O elenco contava com Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarine. Naquele momento, se aprofundava uma linguagem teatral pautada na metalinguagem, na desarticulação de linearidades narrativas e na tensão entre corpo, memória e dicção, elementos que seriam mais explorados em trabalhos futuros.

Com Preto (2017), a colaboração ascendeu a um novo patamar de excelência artística, com a participação de Renata Sorrah no elenco, ao lado de Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan/Rafael Bacelar (em alternância).

Elenco da peça .Foto: Adriana Marchiori

Quando Renata e Bianca trocam de texto para focar no lugar de fala. Foto: Adriana Marchiori

Em Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], os artistas demonstram, com uma eloquência poética que ressoa profundamente, que o ato de criar é intrinsecamente político, pois a arte não é apenas estética, mas uma expressão de agência e visão de mundo. Cada manifestação artística autêntica, ao propor novas perspectivas e realidades, afirma a possibilidade tangível de um mundo mais equitativo e sensível. É um gesto vital de resistência contra a uniformização do pensamento, a imposição de ideologias dominantes e as diversas formas de opressão social e cultural, abrindo espaço para a diversidade, a empatia e a transformação coletiva.

A vertente política da montagem assume contornos nítidos no atual panorama brasileiro, marcado pela polarização e pela emergência de discursos autoritários. A peça perscruta dilemas sociopolíticos sem resvalar no didatismo ou no panfletarismo, incorporando comentários sobre a história recente do país.

Em uma sequência de particular impacto, Renata Sorrah tece, por meio de frases concisas e incisivas, uma narrativa que imbrica eventos coletivos – a prisão de Lula, as manifestações feministas, o impeachment de Dilma, a primeira deputada trans no Congresso Nacional, a reeleição de Lula. A força dessa sequência reside na capacidade de evocar a memória coletiva sem a necessidade de explicações exaustivas, confiando na inteligência e na vivência do público. Em um período em que a cultura e a liberdade ainda sentem o impacto dos ataques sistemáticos empreendidos por aquele malfadado governo que nunca deveria ter ocupado o poder, a própria existência desta encenação, com sua complexidade estética e seu compromisso com o pensamento crítico, emerge como um gesto de insubmissão e como farol.

Os corpos em cena configuram-se como territórios de discurso e resistência, onde a presença se torna eloquente e irradiadora. A repetição calculada de gestos e falas e a pluralidade interpretativa – exemplificada quando vários atores proferem o mesmo texto e reiteram o gesto – compõem uma gramática teatral que desafia expectativas e convida o público a uma experiência sensorial e intelectual, desmitificando o processo criativo. Uma cena emblemática dessa dimensão surge quando uma atriz cisgênero, Renata, e uma atriz transgênero, Bianca Manicongo (Bixarte), trocam seus textos, uma discorrendo sobre corporalidades trans e a outra sobre etarismo, revelando como certos discursos, ao transitarem entre diferentes corpos, expõem profundas contradições sociais e a arbitrariedade de quem é autorizado a falar sobre certas experiências. Essa inversão provoca um questionamento crucial: a quem realmente compete falar em nome do outro, e como a identidade de quem se expressa influencia decisivamente a percepção e interpretação do que é dito.

Rafael Bacelar, montado de drag queen, faz um elogio ao lado esquerdo (do corpo). Foto: Adriana Marchiori

Humor e crítica na performance de Bacelar. Foto: Adriana Marchiori

Intérprete dubla Sacrifice, de Elton John. Foto: Adriana Marchiori

Em sua sequência de dança de caráter político, Rafael Bacelar constrói uma performance que reafirma a corporalidade como campo de disputa ideológica e expressão de identidades dissidentes. O artista inicia a cena ouvindo conselhos maternos em áudio enquanto se monta como drag queen perante os espectadores, estabelecendo uma intimidade transgressora com o público e borrando as fronteiras entre o pessoal e o político. Essa ação convida o espectador a um espaço de cumplicidade e sublinha a performatividade inerente à construção da identidade. Em um surpreendente desdobramento cênico, esse áudio materno é dublado, em vídeo projetado, por Renata Sorrah, que já havia estabelecido com Bacelar outra relação mãe-filho em cena de A Gaivota, criando uma camada adicional de intertextualidade e afeto que enriquece a narrativa. Durante a performance, ele tece um elogio poético ao lado esquerdo do corpo, instituindo uma metáfora explícita que alude aos partidos de esquerda no Brasil, um gesto de clara filiação política e artística.

Com humor perspicaz e crítica incisiva, Bacelar provoca a plateia por meio de uma comunicação direta e desafiadora: encara os espectadores, setoriza a assistência em “direita”, “esquerda” e “centrão”, gerando uma tensão permeada de comicidade que convida à autoanálise e ao riso nervoso. Essa interação performática força o público a confrontar suas próprias posições e preconceitos. O clímax da performance ocorre com uma potente dublagem da canção Sacrifice de Elton John, momento em que a plateia é completamente arrebatada pelo showman, que transforma a vulnerabilidade em força e a arte em um grito de liberdade. São múltiplas tessituras que se entrelaçam, constituindo uma vivência que se configura como um manifesto corpóreo-político pulsante e inesquecível.

Campo de atuação se expande e comprime no palco. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte). Foto: Adriana Marchiori

A visualidade de Ao Vivo transpõe o fluxo mental para o espaço cênico, alternando entre abstração e concretude. Em cena, os próprios atores manipulam estruturas minimalistas e móveis, como cadeiras, mesas ou estantes de partitura, transformando-as em elementos cenográficos dinâmicos que criam transições entre distintos recortes de memória e estados de consciência. Essa manipulação é funcional e performática, sublinhando a maleabilidade da mente e a construção subjetiva da realidade. A iluminação, trabalhada com precisão cirúrgica nos focos e variações sutis de intensidade e cor, demarca e borra as fronteiras entre realidade e imaginário, salientando rupturas temporais e os jogos performáticos que desafiam a percepção do público.

Bianca Manicongo canta lindamente. Foto: Adriana Marchiori

Atriz cantora evoca o anseio por um país mais justo. Foto: Adriana Marchiori

Ao Vivo constrói uma poética da reexistência onde imaginação e memória se tornam instrumentos de compreensão e transformação da realidade. As reflexões sobre a perenidade da arte, o significado do ofício teatral e a efemeridade interpenetram-se com a crítica sociopolítica, culminando em momentos de beleza e profundidade. Em passagem emblemática, Bianca Manicongo evoca o anseio por um país onde seja possível “beijar bocas, beber água limpa, abraçar a floresta, brindar suas existências” – uma invocação poética do desejo coletivo por um Brasil mais justo, acolhedor e em harmonia com a natureza, um manifesto de utopia possível que ressoa como um chamado à ação e à esperança.

A música pulsa e ressoa com extraordinária potência. A dramaturgia sonora, urdida por Felipe Storino, constitui um elemento estruturante da encenação, operando como um fio condutor emocional e narrativo. A sonoridade ecoa para a plateia e encontra na voz inconfundível de Bianca Manicongo sua expressão mais sublime, especialmente na interpretação de Love is a Losing Game de Amy Winehouse. Há uma melancolia profunda nessa canção, que reflete o amor como um jogo de azar, uma aposta incerta, e ressoa com as vulnerabilidades e os riscos inerentes à vida artística e à militância política, particularmente para corpos dissidentes e historicamente perseguidos e ameaçados. Contudo, o espetáculo não se rende ao desalento; prefere o amor, mesmo com seus riscos, e encontra respiro na esperança suave que emana de canções como Magrelinha de Luiz Melodia – “E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos” – e nas interpretações de Começaria Tudo Outra Vez de Gonzaguinha. Esta junção de melancolia e esperança, de crítica e afeto, mergulha-nos na musicalidade que habita essa cabeça, essa peça, esse ato de resistência poética que é Ao Vivo – Dentro da Cabeça de Alguém, consolidando a música como um pilar fundamental da experiência.

A epifania mencionada por Renata Sorrah projeta-se como metáfora para o próprio espetáculo: um momento de revelação, um instante de clareza em meio à turbulência. É provável que alguma epifania ressoe também no público, gerando instantes de iluminação. Ao deixar o teatro, levamos conosco muitas coisinhas miúdas dessa obra complexa, mas também perguntas essenciais sobre nosso lugar no mundo e nossa responsabilidade perante a história.

 

Pollyanna Diniz também escreveu uma análise crítica de Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém] no contexto do Festival de Curitiba, que pode ser acessada [aqui].

 

 

Ficha Técnica

AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]
Texto e Direção Geral: Marcio Abreu
Pesquisa e Criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo (Bixarte)
Direção de Produção e Administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e Assistência de Direção: Nadja Naira
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino
Direção de Movimento e Colaboração Criativa: Cristina Moura
Assistência de Direção e Colaboração Criativa: Fábio Osório Monteiro
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Direção Videográfica: Batman Zavareze
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, José Maria, Nadja Naira e Marcio Abreu
Assistente de Arte: Gabriel Silveira
Edição de Vídeo: João Oliveira
Captação das Imagens para Vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de Som: Chico Santarosa
Assistência de Cenografia: Kauê Mar
Técnica de Vídeo, Luz e Programação Videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de Luz e Som: Dafne Rufino
Fotos: Nana Moraes
Programação Visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Produção Original: Sesi SP
Criação e Produção: Companhia Brasileira de Teatro

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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