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Programação teatral no Recife
em intenso movimento
neste fim de setembro

Focus Cia de Dança celebra marco histórico de 25 anos . De Bach a Nirvana. Foto: Dan Coelho / Divulgação

Carlota. Foto: Cristina Granato

Trupe. Foto: Babi-Furtado

A cena teatral no Recife se mexe em diversidade artística que contempla dança contemporânea, humor, experimentação, teatro infantil e produções nacionais. A programação demonstra vitalidade cultural que posiciona Recife como importante centro de produção e circulação das artes cênicas no país.

Celebrando marco histórico de 25 anos de trajetória artística, a Focus Cia de Dança traz ao Recife uma programação especial dentro do Cena Cumplicidades. A companhia carioca, que possui reconhecimento internacional tendo se apresentado em mais de 100 cidades brasileiras e países como Colômbia, México, Canadá, Estados Unidos, França, Alemanha e Itália, oferece três espetáculos gratuitos que demonstram a maturidade de um dos grupos mais respeitados da dança contemporânea brasileira.

Com 26 obras e 16 espetáculos em repertório, a Focus, sob direção de Alex Neoral, consolidou linguagem coreográfica única que combina técnica refinada com experimentação estética.

Trupe evoca tradição dos artistas mambembes através de cortejo coreográfico onde dez bailarinos fazem um cortejo para transformar espaço urbano em palco. De Bach a Nirvana realiza encontro improvável entre épocas musicais distintas, conectando música barroca de Johann Sebastian Bach (1685-1750) com rock visceral do Nirvana de Kurt Cobain (1967-1994) através de coreografia. Carlota – Focus Dança Piazzolla, criação de 2023, homenageia Carlota Portella (1940-2024) utilizando 11 tangos de Astor Piazzolla para reconfigurar matrizes tradicionais do ritmo argentino, explorando melancolia, abandono e paixão através de linguagem corporal que celebra o corpo como obra de arte suprema.

Anjo Negro combina dança contemporânea, artes circenses, balé clássico e teatro físico

Ave, Guriatã! encerra o festival

O Festival Estudantil de Teatro e Dança de PernambucoFETED representa importante plataforma de formação artística que revela novos talentos enquanto aborda temas urgentes da sociedade brasileira. De 24 a 28 de setembro no Teatro Apolo, sete espetáculos resultam de processos formativos que incluem trabalhos de conclusão de cursos e criações coletivas, evidenciando o caráter pedagógico fundamental do festival.

O Sequestro da Leitura funciona como julgamento cênico onde a “Escola” é acusada de sequestrar a Leitura, questionando métodos educacionais tradicionais. Anjo Negro combina dança contemporânea, artes circenses, balé clássico e teatro físico através de dez cenas intensas com liras e tecidos acrobáticos para explorar trajetória de mulher negra em busca de identidade. Canto de Negro celebra ancestralidade afro-brasileira percorrendo trajetória “dos porões dos navios aos terreiros, quilombos e ruas”, criando diálogo temporal que ressalta resistência cultural.

Para o público infantil, As Crônicas dos Gatos Sem Lar apresenta Sophia, gatinha com autismo que ensina sobre amizade, empatia e respeito às diferenças, funcionando como ponte educativa. Escolinha de Bruxas, resultado do Curso de Iniciação Despertar Teatral da Cênicas Cia de Repertório, adapta Maria Clara Machado para abordar bullying e empatia através da história de Ângela, jovem bruxa bondosa. “Ave Guriatã“, emerge do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc sob direção de José Manoel Sobrinho e Samuel Bennaton, baseando-se em Guriatã, um Cordel para Menino de Marcus Accioly para celebrar cultura brasileira através de narrativa poética sobre menino em busca de identidade.

Sala de Jantar. Foto Mônica Maria

A experimentação teatral encontra uma expressão delicada e envolvente em Sala de Jantar, criação onde Ruy Aguiar realiza alquimia cênica transformando o ordinário em extraordinário. Neste universo, pratos, talheres, toalhas e guardanapos abandonam sua condição de utensílios para se transformar em personagens dotados de desejos, ansiedades e sonhos próprios. O elenco formado por Edivane Bactista, Adilson Di Carvalho, Fabiana Coelho, Ryan Rodrigues e o próprio Ruy Aguiar desenvolve técnica de manipulação que exige simultaneamente precisão e sensibilidade artística aguçada, conferindo alma e personalidade a cada objeto durante preparativos para jantar elegante orquestrado por figura enigmática do lacaio misterioso.

A dramaturgia desenvolve narrativa onde os objetos aguardam ansiosamente a chegada dos convidados, transformando arrumação doméstica em jornada emocional. Lailson Cavalcante desenvolve pesquisa musical que dialoga harmoniosamente com cada metamorfose cênica, criando paisagem sonora que amplifica a magia inerente aos momentos de transformação, enquanto Saulo Uchoa assina desenho de luz buscando dramaticidade essencial aos instantes em que objetos inanimados ganham vida pulsante.

Esta experiência de 45 minutos com classificação a partir de 8 anos acontece no Espaço Cultural Métron Produções (Rua Tabira, 109, Boa Vista) para 30 espectadores por sessão, criando intimidade que potencializa o impacto emocional. Estreada em 2017, a montagem integra o repertório da Métron Produções e foi contemplada pela Lei Paulo Gustavo através do Edital Multilinguagens Recife Criativo. Todas as apresentações contam com interpretação em Libras, garantindo acesso democrático a esta experiência que encontra magia nos elementos mais familiares do cotidiano.

Nega do Babado e Violetas da Aurora. Foto: Renato Filho

A Casa de Alzira sedia Palhacinhas do Brega – Vibrando no Babado, proposta artística inédita que une palhaçaria contemporânea e tradição musical pernambucana. Este evento conecta o coletivo Violetas da Aurora – consolidado através de oito anos de atividades e produções emblemáticas como Violetas da Aurora – o Encontro (2018), Mesa de GlosaR (2019) e Violetas no Parque (2021) – com Nega do Babado (Adriana Araújo da Silva), ícone do brega recifense com mais de duas décadas de trajetória que inclui sucessos populares como Milkshake e consolidação como uma das vozes mais potentes do cenário musical pernambucano.

O Violetas da Aurora, protagonizado por Ana Nogueira (Dona Pequena), Fabiana Pirro (Uruba), Mayra Waquim (Maroca) e Silvia Góes (Sema Roza Madalena), desenvolve ao longo de quase uma década linguagem cênica que articula palhaçaria, crítica social e celebração de encontros com artistas de diferentes linguagens. Colaborações anteriores com poetas como Graça Nascimento e Anaíra Mahin demonstram compromisso do coletivo em criar pontes entre expressões artísticas diversas, fortalecendo redes colaborativas que enriquecem cenário cultural pernambucano através de protagonismo feminino em campos tradicionalmente dominados por vozes masculinas.

Nega do Babado representa transformação paradigmática no universo do brega, gênero que nas últimas décadas assistiu ao surgimento de figuras femininas que redefinem códigos estéticos e narrativos. Reconhecendo conexões naturais entre sua performance musical e elementos da palhaçaria, declara: “No meu Brega, a palhaçaria está sempre presente. Eu tenho essa felicidade de ser palhaça também”. Esta declaração revela consciência artística sobre hibridismos que caracterizam sua estética, onde irreverência, humor e autenticidade popular se fundem criando linguagem única que dialoga naturalmente com propostas do Violetas da Aurora.

DJ Vibra (Virgínia Brasil) atua como ponte criativa fundamental entre universos aparentemente distintos, assumindo simultaneamente funções de diretora artística e produtora musical. Reconhecida nacionalmente por trilhas sonoras que transitam entre eletrônico, popular e afro-diaspórico, coidealizou o selo Discopreta, consolidando-se como voz criativa fundamental da cena independente brasileira. Atualmente conduzindo processo de expansão artística da Nega do Babado rumo à construção de carreira latina, Vibra preserva simultaneamente a força popular que caracteriza a artista, criando equilíbrio entre inovação estética e autenticidade regional.

A narrativa cômica satiriza oportunismo no meio artístico através de personagens que, cansadas de financiar turnês através de vaquinhas, enxergam no sucesso do brega recifense oportunidade de ascensão rápida. Convidando Nega do Babado para colaboração, descobrem que conquistar espaço na cena musical exige muito mais que simples boa vontade, revelando camadas de reflexão sobre legitimidade artística, reconhecimento profissional e complexidades envolvidas na construção de carreiras sólidas no cenário cultural brasileiro.

Inaugurando a noitada, Flávia Gomes apresenta Sarau Eroticuzinho, explorando territórios da poesia erótica que dialogam tematicamente com ousadia proposta pelo encontro principal. Completando a experiência musical, D Mingus participa como convidado especial, ampliando diversidade sonora da celebração através de performance que conecta diferentes vertentes musicais presentes na cena recifense contemporânea.

A Casa de Alzira, localizada no terceiro andar do Museu de Artes Afro-Brasil Rolando Toro (MUAFRO), ocupa Sala Inaldete Pinheiro, espaço com capacidade para 70 pessoas equipado com recursos técnicos completos, camarim, cantina e lojinha colaborativa. O espaço funciona como laboratório cultural que incentiva experimentação e encontros transformadores entre linguagens artísticas diversas.

Tradição Cultural e Identidade Pernambucana

Canto e Encanto Pernambuco: Folia e Foliões, Carnaval de Alegria representa trabalho do Núcleo Musical Irmã Scheilla, vinculado à Fraternidade Peixotinho, organização que desenvolve atividades de ensino musical utilizando a música como ferramenta de educação e preservação cultural. O espetáculo combina batuques, orquestras, sopros e cordas com encenações teatrais em apresentação que celebra diversidade cultural pernambucana focando em ritmos e tradições carnavalescas. A entrada gratuita para crianças até 10 anos facilita acesso familiar, consolidando função social e educativa da proposta.

Teatro de Rua e Urgência Climática

Grupo Bote de Teatro faz apresentações na Praça do Sebo

Recife, cidade historicamente construída sobre ilhas e aterros, enfrenta destino inexorável ligado às águas que a constituem e ameaçam. Esta geografia insular torna ainda mais urgente a reflexão sobre crise climática numa metrópole que, segundo relatório da ONU, figura como 16ª cidade mais vulnerável do mundo ao aumento do nível do mar. Diante desta realidade alarmante, o Bote de Teatro compreende que abordar tema tão crucial exige proximidade radical com a população: “sendo uma cidade considerada uma ilha, para falar de um tema como a crise climática, não haveria outra forma a não ser ir para a rua, ir para perto das pessoas e ocupar um espaço urbano”.

Ilha:Dois materializa esta urgência transformando a Praça do Sebo em laboratório de teatro de rua, dirigido por Rafael Bacelar com dramaturgia de David Maurity, ambos integrantes da Toda Deseo, companhia mineira de teatro que desde 2013 pesquisa temas LGBTQIAPN+. Esta parceria entre Toda Deseo – com sua experiência consolidada em teatro político e narrativas de resistência – e o Bote de Teatro, do Recife, busca sensibilizar sobre a urgência climática numa perspectiva que conecta lutas identitárias com sobrevivência coletiva.

O espetáculo atua como “confrontação à cidade”, buscando “dizer à população que é preciso se ocupar em pensar sobre a crise climática”. Esta urgência se justifica pelos estudos científicos que apontam Recife como uma das primeiras metrópoles brasileiras a “desaparecer do mundo por conta do nível do mar”. A montagem utiliza estes dados científicos alarmantes para construir narrativa que conecta política, poesia e sobrevivência urbana através de Cardo Ferraz, Daniel Barros, Inês Maia e Pedro Toscano, quatro pessoas reunidas em torno de mesa de bar discutindo tempo de cidade ameaçada.

As conversas, atravessadas por copos de cerveja e cigarros, incorporam memórias locais como a enchente histórica de 1975 e os alagamentos anuais que marcam cotidiano recifense, criando ponte temporal entre experiência vivida e projeções científicas. A dramaturgia entrelaça nostalgia (consciência de que o passado se perdeu), esperança (ousadia de inventar futuros) e presente que se impõe com suas urgências climáticas e sociais.

A equipe técnica revela colaboração multidisciplinar: Aura do Nascimento (direção de arte), Vibra (sonoplastia), Joice Paixão (consultoria ambiental e política), Priscila Siqueira (coordenação de acessibilidade), com participação especial de Nega do Babado e tradução em Libras. Esta configuração demonstra compromisso com acessibilidade integral e conhecimento especializado sobre questões ambientais.

A integração com ambiente natural da praça, onde bares funcionam durante as apresentações, busca dissolver fronteiras entre ficção teatral e realidade urbana. Espectadores são convidados a chegar cedo para garantir mesa, fazendo da experiência teatral parte orgânica do cotidiano do espaço.

Murilo Freire em Esquecidos por Deus. Foto Divulgação

Esquecidos por Deus marca 40 anos de carreira teatral de Murilo Freire, que iniciou aos 7 anos tornando-se profissional aos 8. Com especialização em Arts du Spectacle na Universidade de Paris-8 durante cinco anos de residência na França, atualmente atua como Professor de Teatro no SESC, Supervisor de Cultura e Psicoterapeuta Holístico Integrativo. O monólogo baseia-se em “O Livro das Personagens Esquecidas” de Cícero Belmar, membro da Academia Pernambucana de Letras, abordando memória, identidade, patrimônio, tradição, apagamentos e cancelamentos. A interpretação utiliza “Arquetipia Humanimal”, pesquisa prática de 20 anos que combina pré-expressividade (Barba) e trabalho sobre ações físicas (Stanislavski/Grotowski). A técnica parte da observação de animais domesticados que mimetizam comportamentos humanos, criando hipótese de que humanos podem reproduzir hábitos de outras espécies animais através de reprodução da corporeidade animal (respiração, impulsos físicos, ritmos) até alterar a corporeidade humana, criando arquétipos claramente identificáveis. Com encenação, dramaturgia e iluminação de José Manoel Sobrinho, direção musical de Fellipe Barnabé e figurinos de Ivone Nunes, representa formato intimista que preza proximidade com plateia.

Formação Continuada e Protagonismo Negro

Cecilia Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo compõem elenco

O Espaço O Poste apresenta resultado concreto de política de formação artística continuada através de Àwọn Irúgbin (Sementes em iorubá), resultado de dois anos de Residência O Postinho. Seis jovens pretos das periferias participaram de processo formativo gratuito que inclui interpretação teatral, voz e preparação corporal, danças afrodiaspóricas, história do teatro negro, dramaturgia a partir de escrevivências, elaboração de projetos culturais, economia criativa e letramento étnico-racial. A equipe pedagógica conta com Naná Sodré (preparação corpo ancestral), Agrinez Melo (preparação poética matricial), Darana Nagô (danças afrodiaspóricas), Jeff Vitorino e Matheus Amador (história do teatro negro-africano). Cecilia Chá, Larissa Lira, Sthe Vieira e Thallis Ítalo compõem elenco que também assina dramaturgia e produção, demonstrando formação completa em criação teatral. A montagem aborda identidade racial, transformação social e visibilidade da mulher negra, incluindo cenas sobre Bailes Charme, com operação de som e luz ao vivo realizada pelo próprio elenco. O projeto integra Ocupação Espaço O Poste, fomentado pelo Programa FUNARTE de Apoio a Ações Continuadas 2023.

Teatro Infantil e Educação Ambiental

Floresta dos Mistérios utiliza 20 bonecos de diferentes tamanhos criados por Márcio de Pontes. Foto: Silvia Machado

A CAIXA Cultural Recife recebe criação de Márcio Araújo, um dos criadores do programa Cocoricó que marcou gerações na TV Cultura. Floresta dos Mistérios utiliza 20 bonecos de diferentes tamanhos criados por Márcio de Pontes para contar história sobre três crianças – Bel, Rafa e Duda que descobrem planos do prefeito Lúcio Fernando para desmatar área florestal e construir maior fábrica de celulares do mundo na cidade de Micrópolis. Com ajuda de seres encantados do folclore brasileiro como Saci Pererê, Iara e Boitatá, lutam para salvar a Floresta dos Mistérios. As canções originais, compostas por Tato Fischer e Márcio Araújo, são interpretadas ao vivo pelos manipuladores-cantores Clayton Bonardi, Daniela Schitini, Débora Vivan, Joaz Campos, Marcio Araújo, Matilde Menezes e Thalita Passos, com arranjos e direção musical de Gabriel Moreira. Todas as sessões são bilíngues e acessíveis, com tradução em LIBRAS e audiodescrição integradas à dramaturgia, representando abordagem inclusiva que faz parte da concepção artística. Paralelamente, acontece Workshop de Gestão e Produção Cultural Criativa ministrado pela produtora Bia Ribeiro, destinado a artistas, produtores e profissionais culturais maiores de 18 anos.

 

Teatro de urgência: espetáculo sobre violência infantil 

Ator potiguar José Neto Barbosa protagoniza peça com tema sensível

Uma obra que dialoga com uma das realidades mais dolorosas da sociedade contemporânea, Um Depoimento Real faz duas apresentações no Recife nos dias 28 e 30 de setembro, tendo como assunto o abuso infantil através da perspectiva de uma criança.

O ator potiguar José Neto Barbosa é dirigido pela argentina Monina Bonelli, do Teatro Bombón de Buenos Aires, na adaptação do texto Los Titanes, criado pela dramaturga Paola Traczuk.

A diretora define o trabalho como o resultado de um abraço artístico, político e afetivo entre artistas latino-americanos, que se propõem a abordar um tema sobre o qual a sociedade prefere não falar. Segundo ela, trata-se de um assunto doloroso que as pessoas gostariam que estivesse distante de suas realidades, mas que está presente no Brasil, na Argentina e no mundo inteiro, sem distinção de classe, gênero, raça ou povo, exigindo que seja discutido através da arte e outras linguagens.

O espetáculo apresenta a narrativa de uma criança que conta sua experiência. A montagem denuncia a negligência, expõe os silenciamentos e reforça a fundamental importância das redes de proteção na vida das crianças.

José Neto Barbosa, conhecido pelo premiado espetáculo A Mulher Monstro, que se tornou destaque no teatro pernambucano, protagoniza esta urgente discussão social. A classificação indicativa é de 14 anos, considerando a delicadeza do tema abordado.

Todas as sessões contarão com interpretação em Libras. Cada apresentação será seguida de um debate mediado por uma psicóloga especializada.

O acesso ao espetáculo é gratuito, mas requer a doação de 1kg de alimento não perecível, que será destinado a instituições de acolhimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Os ingressos estão disponíveis na plataforma Sympla.

Fundada em Natal e com atuação também em Recife, a S.E.M. Cia. de Teatro completa 13 anos de atividades voltadas para a arte militante e formação cultural. Sob a direção artística de José Neto Barbosa, a companhia já alcançou mais de 70 mil pessoas em 15 estados brasileiros. Entre suas produções de destaque estão os espetáculos Borderline, Quando a Vela Apaga, Acordo de Paz e o premiado monólogo A Mulher Monstro.

Apoio institucional
O projeto conta com o apoio da Fundação de Cultura Cidade do Recife, Secretaria de Cultura e Prefeitura do Recife, através da Lei Paulo Gustavo, uma iniciativa do Ministério da Cultura e Governo Federal para fomento das artes cênicas no país.

Universidade Federal: Meio Século de Formação

A 15ª Semana de Cênicas celebra 50 anos do curso de Licenciatura em Teatro da UFPE, meio século de formação de profissionais que atuam como professores, diretores, atores e pesquisadores em todo o Estado. O evento funciona como espaço de resistência cultural reunindo estudantes, professores, artistas e comunidade para discutir desafios e perspectivas do teatro pernambucano. A temática “Raízes Pernambucanas” conecta tradições ancestrais com práticas teatrais contemporâneas, evidenciando continuidade e transformação da arte cênica local através de seis apresentações que transitam entre experimento autobiográfico, teatro histórico, experiência imersiva, dramaturgia indígena, performance feminina e narrativa de resistência.

Humor e Musical para a família

O Teatro Barreto Júnior acolhe propostas distintas. A Fantástica Fábrica de Chocolates reúne elenco misto de amadores e profissionais incluindo crianças e adultos em três atos inspirados nos três filmes do Willy Wonka, seguidos de agradecimentos, sorteio de rifa e sessão de fotos com elenco. Plantão dos Técnicos marca encontro inédito entre Camila Cardoso (técnica de enfermagem) e Gabriel Castanheira (Tequim de Enfermagem), influenciadores com mais de 1 milhão de seguidores que transformam experiências do cotidiano médico em narrativas cômicas, rapidamente esgotando ingressos. A Vida é uma Choice apresenta Scarlat Caluête, reconhecida por timing cômico impecável e sarcasmo inteligente, transformando palco em talk show ao vivo através de stand-up interativo onde cada piada convida à gargalhada e público protagoniza momentos únicos.

O vendedor de sonhos

O Vendedor de Sonhos no Teatro RioMar representa primeira obra de Augusto Cury – psiquiatra mais lido no mundo atualmente – a receber adaptação teatral. O livro, traduzido para mais de 60 idiomas e também transformado em filme, foi adaptado pelo próprio autor com direção de Luciano Cardoso (33 anos de experiência). A montagem, vista por mais de 300 mil pessoas em mais de 400 apresentações, aborda saúde mental e prevenção ao suicídio – tema crescente na sociedade atual – através da proximidade entre atores e plateia que potencializa impacto positivo da obra. A narrativa conecta Júlio César (Mateus Carrieri), que tenta suicídio, com Mestre (Milton Levy), mendigo que lhe vende vírgula para continuar escrevendo sua história, junto a Bartolomeu (Adriano Merlini) na missão de vender sonhos e despertar sociedade doente.

VEM AÍ

Sagração. Foto: Flavio Colker

Sagração é uma releitura ousada de A Sagração da Primavera de Stravinsky, obra que em 1913 causou um dos maiores escândalos da história cultural em Paris. Deborah Colker, Prêmio Laurence Olivier (2001), Prix Benois de la Danse de Moscou (2018) e primeira mulher a criar espetáculo para o Cirque du Soleil (Ovo, 2009), além de dirigir movimento da cerimônia de abertura das Olimpíadas Rio 2016 transmitida para mais de 2 bilhões de pessoas, transforma sacrifício eslavo em cosmogonia indígena brasileira. A inspiração veio de viagem ao Xingu e encontro com cineasta indígena Takumã Kuikuro. 170 bambus de quatro metros (criações de Gringo Cardia) operam como elementos coreográficos ativos desafiando 15 bailarinos. A direção musical de Alexandre Elias propõe arqueologia sonora mantendo estrutura rítmica stravinskyana enquanto sobrepõe sons indígenas, maracá, caxixi e “paus de chuva” tocados pelos bailarinos, criando composição onde boi bumbá, coco, afoxé e samba dialogam com orquestra sinfônica.

Jeison Walace como Cinderela. Foto: Divulgação

Cinderela em: Toda Cidade Tem celebra fenômeno cultural de mais de três décadas. Jeison Wallace se confunde com criação que o tornou famoso: Cinderela não era princesa, mas menina sonhadora de um dos morros do Recife – mal educada, desaforada e engraçada – criada em 1991 na peça Cinderela, a História que sua mãe não contou. Popular em todas as classes sociais e habituado a lotar plateias, o comediante construiu mais de 30 anos de carreira transitando entre rádio, teatro, cinema, TV e sitcom. O espetáculo utiliza esquetes hilárias e interação intensa para abordar peculiaridades do cotidiano encontradas em qualquer cidade brasileira, desde fofocas de bairro até personagens marcantes do dia a dia, mesclando tradicional e contemporâneo através da irreverência que consolidou a personagem como ícone da comédia nacional.

PROGRAMAÇÃO 

SERVIÇOS
FOCUS CIA DE DANÇA – 25 ANOS
Trupe 📅 24/09, 19h – Centro de Artes UFPE | 28/09, 11h30 – Parque da Jaqueira
🎫 Gratuito | ⏱️ 35min | 👨‍👩‍👧‍👦 Livre

De Bach a Nirvana 📅 26/09, 20h – Teatro Luiz Mendonça
🎫 Gratuito – teatroluizmendonca.byinti.com | ⏱️ 90min | 👨‍👩‍👧‍👦 Livre

Carlota – Focus Dança Piazzolla 📅 27/09, 20h – Teatro Luiz Mendonça
🎫 Gratuito – teatroluizmendonca.byinti.com | ⏱️ 75min | 👨‍👩‍👧‍👦 12 anos

FETED 2025
📍 Teatro Apolo – Rua do Apolo, 121
🎫 R22,50(R 20 + R2,50taxa)∣💳4xR 6,12

24/09 (19h) – O Sequestro da Leitura
25/09 (19h) – Anjo Negro
26/09 (19h) – Canto de Negro
27/09 (16h) – As Crônicas dos Gatos Sem Lar
27/09 (19h) – Auto da Barca do Inferno
28/09 (16h) – Escolinha de Bruxas
28/09 (19h) – Ave, Guriatã!

Sala de Jantar 📅 25, 26, 27/09 – 18h e 20h
📍 Espaço Cultural Métron Produções – Rua Tabira, 109, Boa Vista
🎫 Gratuito –
www.metronproducoes.com.br
| 👥 30 pessoas | ⏱️ 45min | 👨‍👩‍👧‍👦 8 anos
♿ Libras em todas as sessões

Palhacinhas do Brega 📅 27/09, 20h – Casa de Alzira – MUAFRO
🎫 1º lote R30∣2ºloteR 50 | 👨‍👩‍👧‍👦 16 anos | 👥 70 pessoas

Canto e Encanto Pernambuco 📅 28/09, 16h – Teatro do Parque
🎫 R$ 30 (gratuito até 10 anos) | ⏱️ 60min | 👨‍👩‍👧‍👦 Livre

Ilha:Dois 📅 27, 28/09, 19h – Praça do Sebo, Boa Vista
🎫 Gratuito | ♿ Libras | 👨‍👩‍👧‍👦 Livre

Esquecidos por Deus 📅 27, 28/09, 19h30 – SESC Goiana
🎫 Gratuito | ⏱️ 60min

Àwọn Irúgbin – o Poste 📅 27/09, 19h – Espaço O Poste
🎫 Inteira R30∣MeiaR 15 | 💳 3x R$ 6,25

Floresta dos Mistérios 📅 26/09 a 05/10 – CAIXA Cultural
🕒 Sextas 19h | Sáb/Dom 11h
🎫 Inteira R20∣MeiaR 10
♿ LIBRAS e audiodescrição em todas as sessões

SEMANA DE CÊNICAS UFPE – 50 ANOS
📅 23 a 26/09 – Centro de Artes UFPE
🎫 Gratuito – Todas as apresentações

TEATRO BARRETO JÚNIOR
A Fantástica Fábrica de Chocolates” 📅 27/09, 17h45 | 🎫 Inteira R55∣MeiaR 27,50 | 👨‍👩‍👧‍👦 Livre

Plantão dos Técnicos” 📅 28/09, 20h | 🎫 ESGOTADO

A Vida é uma Choice” 📅 01/10, 19h | 🎫 Duplo R27,50∣IndividualR 22,50 | 💳 6x

Um Depoimento Real, com José Neto Barbosa
📅 28/09 (domingo): 18h – Espaço Cênicas, Bairro do Recife
30/09 (terça-feira): 14h e 16h – COMPAZ Dom Helder Camara, Ilha Joana Bezerra
🎟️ Ingressos: Gratuitos no Sympla (doação de 1kg de alimento não perecível) 🔞 Classificação: 14 anos 🧏🏽‍♂️ Acessibilidade: Interpretação em Libras em todas as sessões

VEM AÍ – OUTUBRO

Sagração” – Cia. Deborah Colker 📅 07/10, 20h30 – Teatro Guararapes, Olinda
🎫 R25aR 200 | ⏱️ 70min | 👨‍👩‍👧‍👦 10 anos
⚠️ Contém luzes estroboscópicas

“Cinderela em: Toda Cidade Tem” 📅 04/10, 18h – Teatro do Parque
🎫 Inteira R120∣MeiaR 60 | Social R$ 80 | 💳 12x
⏱️ 70min | 👨‍👩‍👧‍👦 14 anos

📱 Informações gerais: Consultar sites e redes sociais dos teatros
💳 Vendas: Sympla, bilheterias locais e sites específicos

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Epifanias cênicas: arte é política
Crítica: Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém]

Apresentação do espetáculo Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém} em Porto Alegre. Foto: Adriana Marchiori

Renata Sorrah e cia brasileira de teatro em Porto Alegre

Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, lotado nas duas sessões da peça. Foto: Adriana Marchiori

Todo o mundo ama Renata Sorrah. Talvez não todo o mundo do mundo inteiro, porque há quem prefira exercitar sentimentos menos nobres. O que é incontestável, porém, é que o público que lotou as duas sessões do Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre, na quarta e quinta-feira, 4 e 5 de junho, na programação do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre, vibrou numa emoção coletiva de admiração e carinho. Um fenômeno semelhante já havia sido testemunhado durante a temporada no SESI-SP, onde o espetáculo somou 64 apresentações entre 22 de agosto e 1º de dezembro de 2024, atraindo cerca de 27.400 pessoas. Mas bah, tchê, essa experiência no Rio Grande do Sul foi extraordinária. A atriz gaúcha Sandra Possani foi uma das pessoas que se emocionou do início ao fim da peça.

Em Porto Alegre, alguns espectadores mais afoitos buscavam eternizar os momentos pós-espetáculo em selfies. No contexto da peça, qualquer receio de que o público gaúcho, por vezes associado a um certo conservadorismo, fosse reticente com a linguagem contemporânea da Companhia Brasileira de Teatro desfez-se por completo. A plateia, composta por amantes das artes e especialmente do teatro, mostrou-se aberta e disposta a mergulhar de cabeça na proposta, permitindo-se expandir seus horizontes.

Essa receptividade entusiástica transformou-se em uma declaração coletiva de benquerença. Todas ali desejavam expressar, e o fizeram com uma ovação calorosa: “Nós amamos sua arte”. Muitos, naquele momento, sentiram-se conectados às emoções que a canção Beatriz tão bem entoa – aquela valsa composta por Edu Lobo, com letra de Chico Buarque, e eternizada na voz de Milton Nascimento: “… Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira / Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz / Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis / E se o arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida…” – versos que capturam essa mescla de admiração distante e desejo de proximidade que tantos nutrimos por grandes artistas.

Curiosamente, essa relação entre público e celebridade o espetáculo questiona e desdobra. As falas da peça refletem essa obsessão de forma crítica e bem-humorada: Deixa ela… “Olha como ela sorri. Olha como ela anda… olha como ela dirige o carro.” A dramaturgia e a encenação de Marcio Abreu jogam com o conceito de celebridade de forma sagaz, agenciando sua desconstrução. Em cena, a “estrela” Renata Sorrah é instigada a ir além do que se espera de sua persona pública, revelando a humanidade e as complexidades por trás do ícone.

As grandiosas projeções do rosto de Sorrah em cena atuam como um recurso estético impactante e como uma metáfora visual potente que, ao magnificar a figura da atriz a proporções monumentais, força o espectador a um escrutínio íntimo sobre a construção da celebridade. Essa magnificação aprofunda o debate para além do universo estético e performático, adentrando questões urgentes e contemporâneas, como a ascensão de figuras desqualificáveis no campo político e a criação de um terreno fértil para a proliferação desenfreada de desinformação. A justaposição da imagem da atriz – uma figura de culto no teatro, na televisão e no cinema brasileiros – com a crítica incisiva a esses fenômenos sociais e políticos, estabelece um paralelo inquietante e insinua que a mesma lente crítica aguçada, aplicada ao estudo do culto de personalidades e à construção de ícones, deve ser rigorosamente direcionada à arena social e política.

Rodrigo Bolzan e Renata Sorrah. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki, Rodrigo Bolzan, Bianca Manicongo (Bixarte), Renata e Rafael Bacelar.Foto: Adriana Marchiori

Em um momento da encenação, Renata Sorrah remonta a uma epifania vivenciada na década de 1970, no limiar de um ensaio rotineiro de A Gaivota, onde interpretava Nina. Nesse trajeto cotidiano, uma súbita e profunda clareza se manifestou. Uma epifania, em sua essência, é isso: um lampejo de percepção tão profundo e inesperado que uma verdade fundamental irrompe na consciência, um ponto de inflexão existencial que altera a perspectiva do indivíduo. Essa reminiscência, meticulosamente partilhada com a plateia, irradia-se como feixes de luz que permeiam e moldam cada gesto, cada intenção e cada palavra proferida em cena. É essa memória fundacional que nutre a complexa engrenagem criativa do espetáculo, desempenhando o papel de um pilar que conecta a experiência pessoal e íntima da atriz e do elenco às questões intrínsecas de dilemas e complexidades do viver e à prática artística.

A dramaturgia, elaborada a partir da pesquisa e criação coletiva de Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria, estrutura-se em complexos estratos subjetivos sobrepostos, que deliberadamente conduzem o espectador por intrincados deslocamentos temporais e fissuras na consciência. A peça de Tchekhov move-se como um eco ressonante, uma matriz referencial e temática que possibilita explorar os dilemas entre arte e vida, idealismo e realidade. As sequências articulam-se não por encadeamento causal tradicional, mas por associações poéticas e excertos dialógicos forjados em improvisações, o que confere à narrativa um caráter fluido e em constante devir, resistindo a interpretações fechadas. A experiência performática incorpora recursos metateatrais, como a autorreferencialidade ao ato de criação e menções diretas ao processo de ensaio, desvelando a própria construção da obra e convidando o público a refletir sobre a natureza da representação.

O elenco, composto por Rentata, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte), revela-se uma verdadeira constelação de talentos. Cada integrante concede voz à sua singular vivência e corporeidade, tecendo-as à cena e enriquecendo a intrincada trama de subjetividades que a peça desdobra.

A Trajetória de uma Parceria Excepcional

Ao longo de mais de treze anos, a colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção de Marcio Abreu, e a atriz Renata Sorrah firmou-se como um dos encontros mais inspiradores e influentes no panorama teatral contemporâneo brasileiro. 

O capítulo inaugural dessa trajetória remonta a 2012, com Esta Criança, texto do dramaturgo francês Joël Pommerat. Na montagem, a Companhia, com Sorrah e o elenco de Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha, explorou dez situações-limite entre pais e filhos, valendo-se de estruturas fragmentadas e economia de gestos para revelar a urgência das emoções familiares.

Em 2015, a parceria firmou-se em Krum, texto de Hanoch Levin, onde a violência simbólica e o humor ácido integraram-se à pesquisa corporal e vocal do coletivo. O elenco contava com Cris Larin, Danilo Grangheia, Edson Rocha, Grace Passô, Inez Viana, Ranieri Gonzalez, Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarine. Naquele momento, se aprofundava uma linguagem teatral pautada na metalinguagem, na desarticulação de linearidades narrativas e na tensão entre corpo, memória e dicção, elementos que seriam mais explorados em trabalhos futuros.

Com Preto (2017), a colaboração ascendeu a um novo patamar de excelência artística, com a participação de Renata Sorrah no elenco, ao lado de Cássia Damasceno, Felipe Soares, Grace Passô, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan/Rafael Bacelar (em alternância).

Elenco da peça .Foto: Adriana Marchiori

Quando Renata e Bianca trocam de texto para focar no lugar de fala. Foto: Adriana Marchiori

Em Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém], os artistas demonstram, com uma eloquência poética que ressoa profundamente, que o ato de criar é intrinsecamente político, pois a arte não é apenas estética, mas uma expressão de agência e visão de mundo. Cada manifestação artística autêntica, ao propor novas perspectivas e realidades, afirma a possibilidade tangível de um mundo mais equitativo e sensível. É um gesto vital de resistência contra a uniformização do pensamento, a imposição de ideologias dominantes e as diversas formas de opressão social e cultural, abrindo espaço para a diversidade, a empatia e a transformação coletiva.

A vertente política da montagem assume contornos nítidos no atual panorama brasileiro, marcado pela polarização e pela emergência de discursos autoritários. A peça perscruta dilemas sociopolíticos sem resvalar no didatismo ou no panfletarismo, incorporando comentários sobre a história recente do país.

Em uma sequência de particular impacto, Renata Sorrah tece, por meio de frases concisas e incisivas, uma narrativa que imbrica eventos coletivos – a prisão de Lula, as manifestações feministas, o impeachment de Dilma, a primeira deputada trans no Congresso Nacional, a reeleição de Lula. A força dessa sequência reside na capacidade de evocar a memória coletiva sem a necessidade de explicações exaustivas, confiando na inteligência e na vivência do público. Em um período em que a cultura e a liberdade ainda sentem o impacto dos ataques sistemáticos empreendidos por aquele malfadado governo que nunca deveria ter ocupado o poder, a própria existência desta encenação, com sua complexidade estética e seu compromisso com o pensamento crítico, emerge como um gesto de insubmissão e como farol.

Os corpos em cena configuram-se como territórios de discurso e resistência, onde a presença se torna eloquente e irradiadora. A repetição calculada de gestos e falas e a pluralidade interpretativa – exemplificada quando vários atores proferem o mesmo texto e reiteram o gesto – compõem uma gramática teatral que desafia expectativas e convida o público a uma experiência sensorial e intelectual, desmitificando o processo criativo. Uma cena emblemática dessa dimensão surge quando uma atriz cisgênero, Renata, e uma atriz transgênero, Bianca Manicongo (Bixarte), trocam seus textos, uma discorrendo sobre corporalidades trans e a outra sobre etarismo, revelando como certos discursos, ao transitarem entre diferentes corpos, expõem profundas contradições sociais e a arbitrariedade de quem é autorizado a falar sobre certas experiências. Essa inversão provoca um questionamento crucial: a quem realmente compete falar em nome do outro, e como a identidade de quem se expressa influencia decisivamente a percepção e interpretação do que é dito.

Rafael Bacelar, montado de drag queen, faz um elogio ao lado esquerdo (do corpo). Foto: Adriana Marchiori

Humor e crítica na performance de Bacelar. Foto: Adriana Marchiori

Intérprete dubla Sacrifice, de Elton John. Foto: Adriana Marchiori

Em sua sequência de dança de caráter político, Rafael Bacelar constrói uma performance que reafirma a corporalidade como campo de disputa ideológica e expressão de identidades dissidentes. O artista inicia a cena ouvindo conselhos maternos em áudio enquanto se monta como drag queen perante os espectadores, estabelecendo uma intimidade transgressora com o público e borrando as fronteiras entre o pessoal e o político. Essa ação convida o espectador a um espaço de cumplicidade e sublinha a performatividade inerente à construção da identidade. Em um surpreendente desdobramento cênico, esse áudio materno é dublado, em vídeo projetado, por Renata Sorrah, que já havia estabelecido com Bacelar outra relação mãe-filho em cena de A Gaivota, criando uma camada adicional de intertextualidade e afeto que enriquece a narrativa. Durante a performance, ele tece um elogio poético ao lado esquerdo do corpo, instituindo uma metáfora explícita que alude aos partidos de esquerda no Brasil, um gesto de clara filiação política e artística.

Com humor perspicaz e crítica incisiva, Bacelar provoca a plateia por meio de uma comunicação direta e desafiadora: encara os espectadores, setoriza a assistência em “direita”, “esquerda” e “centrão”, gerando uma tensão permeada de comicidade que convida à autoanálise e ao riso nervoso. Essa interação performática força o público a confrontar suas próprias posições e preconceitos. O clímax da performance ocorre com uma potente dublagem da canção Sacrifice de Elton John, momento em que a plateia é completamente arrebatada pelo showman, que transforma a vulnerabilidade em força e a arte em um grito de liberdade. São múltiplas tessituras que se entrelaçam, constituindo uma vivência que se configura como um manifesto corpóreo-político pulsante e inesquecível.

Campo de atuação se expande e comprime no palco. Foto: Adriana Marchiori

Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo (Bixarte). Foto: Adriana Marchiori

A visualidade de Ao Vivo transpõe o fluxo mental para o espaço cênico, alternando entre abstração e concretude. Em cena, os próprios atores manipulam estruturas minimalistas e móveis, como cadeiras, mesas ou estantes de partitura, transformando-as em elementos cenográficos dinâmicos que criam transições entre distintos recortes de memória e estados de consciência. Essa manipulação é funcional e performática, sublinhando a maleabilidade da mente e a construção subjetiva da realidade. A iluminação, trabalhada com precisão cirúrgica nos focos e variações sutis de intensidade e cor, demarca e borra as fronteiras entre realidade e imaginário, salientando rupturas temporais e os jogos performáticos que desafiam a percepção do público.

Bianca Manicongo canta lindamente. Foto: Adriana Marchiori

Atriz cantora evoca o anseio por um país mais justo. Foto: Adriana Marchiori

Ao Vivo constrói uma poética da reexistência onde imaginação e memória se tornam instrumentos de compreensão e transformação da realidade. As reflexões sobre a perenidade da arte, o significado do ofício teatral e a efemeridade interpenetram-se com a crítica sociopolítica, culminando em momentos de beleza e profundidade. Em passagem emblemática, Bianca Manicongo evoca o anseio por um país onde seja possível “beijar bocas, beber água limpa, abraçar a floresta, brindar suas existências” – uma invocação poética do desejo coletivo por um Brasil mais justo, acolhedor e em harmonia com a natureza, um manifesto de utopia possível que ressoa como um chamado à ação e à esperança.

A música pulsa e ressoa com extraordinária potência. A dramaturgia sonora, urdida por Felipe Storino, constitui um elemento estruturante da encenação, operando como um fio condutor emocional e narrativo. A sonoridade ecoa para a plateia e encontra na voz inconfundível de Bianca Manicongo sua expressão mais sublime, especialmente na interpretação de Love is a Losing Game de Amy Winehouse. Há uma melancolia profunda nessa canção, que reflete o amor como um jogo de azar, uma aposta incerta, e ressoa com as vulnerabilidades e os riscos inerentes à vida artística e à militância política, particularmente para corpos dissidentes e historicamente perseguidos e ameaçados. Contudo, o espetáculo não se rende ao desalento; prefere o amor, mesmo com seus riscos, e encontra respiro na esperança suave que emana de canções como Magrelinha de Luiz Melodia – “E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos” – e nas interpretações de Começaria Tudo Outra Vez de Gonzaguinha. Esta junção de melancolia e esperança, de crítica e afeto, mergulha-nos na musicalidade que habita essa cabeça, essa peça, esse ato de resistência poética que é Ao Vivo – Dentro da Cabeça de Alguém, consolidando a música como um pilar fundamental da experiência.

A epifania mencionada por Renata Sorrah projeta-se como metáfora para o próprio espetáculo: um momento de revelação, um instante de clareza em meio à turbulência. É provável que alguma epifania ressoe também no público, gerando instantes de iluminação. Ao deixar o teatro, levamos conosco muitas coisinhas miúdas dessa obra complexa, mas também perguntas essenciais sobre nosso lugar no mundo e nossa responsabilidade perante a história.

 

Pollyanna Diniz também escreveu uma análise crítica de Ao Vivo [Dentro da cabeça de alguém] no contexto do Festival de Curitiba, que pode ser acessada [aqui].

 

 

Ficha Técnica

AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]
Texto e Direção Geral: Marcio Abreu
Pesquisa e Criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo (Bixarte)
Direção de Produção e Administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e Assistência de Direção: Nadja Naira
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Felipe Storino
Direção de Movimento e Colaboração Criativa: Cristina Moura
Assistência de Direção e Colaboração Criativa: Fábio Osório Monteiro
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Direção Videográfica: Batman Zavareze
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, José Maria, Nadja Naira e Marcio Abreu
Assistente de Arte: Gabriel Silveira
Edição de Vídeo: João Oliveira
Captação das Imagens para Vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de Som: Chico Santarosa
Assistência de Cenografia: Kauê Mar
Técnica de Vídeo, Luz e Programação Videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de Luz e Som: Dafne Rufino
Fotos: Nana Moraes
Programação Visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Produção Original: Sesi SP
Criação e Produção: Companhia Brasileira de Teatro

Este conteúdo foi produzido no contexto do Palco Giratório – 19º Festival Porto Alegre

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Manifesto de esperança
Crítica de AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém]

Renata Sorrah em AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, no Festival de Curitiba 2025. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki, Bianca Manicongo, Rodrigo Bolzan e Rafael Bacelar. Foto: Lina Sumizono

Memória deveria ser verbo. Sim, memorizar é verbo, mas não diz o que eu gostaria. Quando falamos sobre memorizar, o sentido que salta, imediato, é o de decorar, repetir até que saibamos algo de cor. No dicionário, memorizar também pode ser lembrar, recordar, relembrar. Não é isso. Queria pensar neste “verbo-memória” como uma prática expandida, fluida, que não separa corpo e mente, material e imaterial, realidade e imaginação, plantas, animais e humanos, tempos cronológicos ou estelares.

Como seria exercer este verbo-memória relacionado à pandemia de covid-19? Quais imagens permanecem incrustadas em nós, aquelas dilatadas para além dos nossos corpos físicos? Quem continua conosco? O que mudou internamente? E coletivamente? Estamos falando do que aconteceu, do que ainda vai acontecer ou das duas coisas? Não sabemos essas respostas, não racionalmente. Em março de 2023, chegamos ao número de 700 mil pessoas mortas vítimas de covid-19 no Brasil. 700 mil pessoas. SETECENTAS MIL PESSOAS. Não há quem consiga apreender esse número e tudo que ele implica no hoje, no amanhã, no ontem, no tempo que não conhecemos.

AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém], peça da companhia brasileira de teatro, com direção de Marcio Abreu, experimenta algo da dimensão do que estou chamando de “verbo-memória”, inclusive na expansão de acontecimentos temporalmente recentes, como a pandemia. A atriz Renata Sorrah, que está no elenco ao lado de Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo, diz que a montagem encara os instantes de suspensão, quando parece que você teve uma epifania e entendeu tudo, com seu corpo, sua mente, sua alma e, logo depois, quase imediatamente, isso se encerra. O portal fecha. Está de modo praticamente literal no título, amplificar, ao vivo, a fração de tempo em que sua cabeça abre, antes dela fechar de novo.

No caso da peça, esse momento acontece quando a personagem está dirigindo, esse hábito que se torna automático, vento no rosto, vontade de fumar um cigarro, música tocando baixinho no rádio a caminho do ensaio da peça. A sensação de liberdade. Essa epifania talvez ocorra para os espectadores em alguma cena específica da montagem, tomara, mas como proponho o verbo que é prática, que se move, neste texto esse instante se desdobra e se esgarça, mesmo que passe como num segundo, ou ao longo de toda uma peça de 1h30min.

Em A crise da narração, Byung-Chul Han escreve que “a memória é uma prática narrativa que constantemente vincula novos acontecimentos e cria uma rede de relações”. A questão é que a nossa interação com o que nos cerca estaria reduzida à causalidade dos fatos e informações, o que significa o “desencantamento do mundo” e a perda da nossa capacidade de narrar. “As coisas existem, mas quedam em silêncio”, diz o filósofo. A peça da cia brasileira de teatro é um contraponto a esse silêncio. Ao esfacelamento da dimensão pública e privada da memória como prática. Os atores deslizam na liberdade da linguagem das artes vivas para que fatos e informações possam ser descritos e narrados e se tornem praticamente palpáveis. O que é falado ganha densidade como imagem, matéria que passa a existir.

Os atores representam a si mesmos e a alguns, muitos, espero que multidões de nós. Fazem isso de um lugar determinado do campo político, que se revela de modo claro pela escolha de quais fatos e memórias vão enovelar, pelo conteúdo do discurso elaborado, e pelos quereres de futuro. O exercício vertiginoso do verbo-memória nos aproxima da ideia de que o tempo inteiro estamos perdendo o mundo como o conhecíamos e outros estão sendo criados concomitantemente, inclusive no palco. Um mundo se desfaz, outro começa. O teatro é suporte de criação para esses mundos que podem se estender para além da sala de espetáculos. No teatro, escrevemos, atuamos, cantamos, dançamos. A música de Gonzaguinha, cantada lindamente por Bianca Manicongo, Bixarte, dá o tom: “Começaria tudo outra vez | Se preciso fosse, meu amor | A chama em meu peito ainda queima | Saiba, nada foi em vão”.

AO VIVO [Dentro da cabeça de alguém] trabalha com memórias coletivas e individuais. Foto: Lina Sumizono

Rodrigo Bolzan. Foto: Lina Sumizono

Bárbara Arakaki. Foto: Lina Sumizono

Esses mundos que se fazem e se desfazem ao vivo são compostos a partir de experiências de linguagem, em registros que vão se alternando. Ao lado do discurso social e político direto, do autobiográfico, do meme de Nazaré e das citações atribuídas à Clarice Lispector, há camadas de maior abstração na encenação, ligadas à composição das cenas, às imagens em vídeo, à cenografia, à dramaturgia – e aqui, especialmente, à representação de um texto seminal para o teatro ocidental, A gaivota, de Anton Tchékhov.

O texto referência é uma obra encharcada do humano, uma mãe famosa, um namorado mais novo escritor, um filho escritor, uma jovem atriz com muitos sonhos. O texto instaura discussões sobre as relações humanas, o sonho, a vaidade, a melancolia, a desesperança, a depressão, o desespero do fim. Embora a dramaturgia de A Gaivota esteja incorporada à encenação de AO VIVO, e seja visível para quem conhece o texto, a história paira como uma epifania. A composição da cena, como imagem, é quase uma tela, um fim de tarde no jardim. Os nomes dos personagens não são ditos, assim como não há menção ao nome da peça. Isso talvez nos aproxime ainda mais desse duplo, Renata Sorrah e personagem, essa mulher que é uma atriz famosa, muito mais famosa do que o seu namorado, que ao perceber que pode perdê-lo diz que é apenas uma mulher comum, que se ressente da idade quando o homem que ama se encanta por uma mulher mais nova, que não tem certeza se é livre.

A Gaivota é inspiração para a peça da cia brasileira de teatro. Foto: Lina Sumizono

AO VIVO, inclusive, pode ser considerada uma grande, linda e merecida homenagem à Renata Sorrah, essa atriz que marcou a história do teatro, do cinema e da televisão. Que foi Nina em 1974, numa montagem de A Gaivota que tinha no elenco Tereza Rachel como Arkádina, além de nomes como Sergio Britto, Cecil Thiré e Renne de Vielmond. Cuja imagem garota, num tempo que é memória e se expande, é exibida no palco em Matou a família e foi ao cinema, filme de 1969, de Júlio Bressane. O Brasil acompanhou o envelhecimento de Renata Sorrah e isso é muito bonito, uma atriz plena com suas escolhas.

Etarismo, uma das discussões que se desprende de A Gaivota e da própria presença de Renata em cena, e transfobia são tratados no registro do discurso direto, do manifesto, do que precisa ser dito. Renata Sorrah e Bianca Manicongo, travesti, fazem uma cena de espelhamento, uma dando o discurso correspondente à outra. Renata diz, entre outras coisas, que amar e ser amada não é para todas as pessoas, só para as vivas, e a média de vida de uma travesti é de 35 anos. Bianca questiona a pressão sobre as mulheres velhas, associadas às bruxas, enquanto os homens velhos são associados à sabedoria. Os discursos se atravessam no lugar de decisão sobre o próprio corpo e da discussão sobre a empatia: “O problema de falar em nome do outro é que todo mundo acaba sem voz”.

Renata Sorrah e Bianca Manicongo dão voz a discursos uma da outra. Foto: Lina Sumizono

A peça – e a peça dentro da peça – nos lembram que muitos vão sucumbir neste processo de memória-verbo. Morte matada, morte morrida, morte que até parece vida. Rafael Bacelar desabafa: é difícil dizer que todas as esperanças acabaram, assim como está em A Gaivota. Mas AO VIVO explicita a desesperança por meio de Tchékhov para anunciar o contrário: há espaço para esperançar. Espaços. Se você não consegue enxergá-los, vamos abri-los juntos, nesta epifania de 1h30min. Esperançar, na peça, depende do que chamo de resgate da memória-verbo que está, inclusive, no corpo das atrizes e atores. No corpo de Bianca, uma travesti dividindo cena com Renata Sorrah porque é uma atriz ótima, uma cantora maravilhosa. E seu corpo diz por si. Sua voz diz por si. Precisamos de novas formas, afirma o texto do espetáculo. Formas que são ancoradas por corpos. Por vozes. E, ao lado do dito sotaque “neutro” de Renata Sorrah, o sotaque da televisão que aplaina as diferenças, o sotaque nordestino de Bianca explode com força. A frase não é de Clarice, é de Leminski, não está no espetáculo, mas poderia: “Isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além”.

Vocalizar e sustentar o discurso que reage à homofobia, à transfobia, ao etarismo, à ascensão da extrema direita no país é uma forma de esperançar novos mundos para plateias diversas. Espectadores muitas vezes atraídos ao teatro pelo nome de Renata Sorrah, e que não necessariamente ouviriam esses discursos de outra forma, senão na plateia de um teatro, um espaço que proporciona essa convivência “forçada” com o outro por um tempo determinado.

A peça cumpre o papel de alcançar e falar diretamente com esse outro: AO VIVO estreou no ano passado, no dia 22 de agosto, e permaneceu em cartaz até 1 de dezembro, com sessões de quinta a domingo, esgotadas, no Sesi-SP, no Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo. Poucas pessoas abandonaram as sessões no meio. Na porta desse prédio, por anos, as pessoas se reuniam e faziam vigílias para pedir por intervenção militar no país. Um pato inflável de cinco metros criticava a política tributária do governo da presidenta Dilma Rousseff. Então é significativo que, neste lugar, um grupo de teatro que completa 25 anos em 2025 possa falar sobre os desejos de um novo Brasil, como um manifesto lindo e potente que anuncia esses passos, incluindo “banhar o Brasil”, “abraçar a floresta”, “beber água limpa”, “convocar as bichas todas”, “beijar as bocas”, “desbrazilizar para existir Brasil”.

O espetáculo é acolhido – o que não quer dizer que as pessoas concordem com o que está dito ali – porque consegue balancear radicalidade do discurso e humanização. A partir de A Gaivota, da relação entre mãe e filho, por exemplo, Rafael Bacelar protagoniza uma cena em que se transforma em drag queen no palco – se maquia, coloca salto e peruca – e dialoga com um áudio de sua mãe. “Eu me conformei porque eu te vi feliz e ninguém tem o direito de obrigar o outro a ser o que se quer ser”. Que mãe não se identifica? Enquanto dança – propondo uma brincadeira de dançar apenas com o lado esquerdo do corpo – Rafael mistura sua história ao discurso político e à história recente do país: diz que começou a dançar com a esquerda em 2002, saiu da linha da pobreza, entrou na universidade pública. O apelo da cena é flagrante: o público, dividido pelo ator entre direita, esquerda e centrão, entra na brincadeira. Há, no entanto, um discurso sobre esquerda que particulariza, que personaliza na figura do presidente Lula a própria esquerda, e que, a despeito do que estamos vivendo hoje no Brasil, diz textualmente que recuperamos a radicalidade da esquerda. Queríamos que fosse verdade.

Rafael Bacelar se transforma em drag queen no palco e protagoniza cena sobre direita e esquerda no país, Foto: Lina Sumizono

Na memória que é verbo, de tempos entrelaçados, quem sabe isso possa se concretizar. Algum dia, outro tempo, nosso tempo. E o pôr do sol renove e brilhe de novo os nossos sorrisos, como diz a música de Luiz Melodia. O que fica desse tempo que não voltamos a viver? O que queremos guardar? O que queremos fazer novo? AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] é esse vislumbre de esperança, que nos faz pensar quais outros mundos desejamos instituir. “Escutar, correr e agir”. E ser felizes. “Diante de nós, aquilo que formos capazes de construir agora”, anuncia o texto.

O espetáculo AO VIVO  [Dentro da cabeça de alguém] foi apresentado nos dias 27 e 28 de março de 2025 no Festival de Curitiba.

Ficha técnica:

Texto e direção: Marcio Abreu
Pesquisa e criação: Marcio Abreu, Nadja Naira, Cássia Damasceno e José Maria
Elenco: Renata Sorrah, Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bixarte
Direção de produção e administração: José Maria e Cássia Damasceno
Iluminação e assistência de direção: Nadja Naira
Direção musical e trilha sonora original: Felipe Storino
Direção de movimento e colaboração criativa: Cristina Moura
Assistência de direção e colaboração criativa: Fábio Osório Monteiro
Direção videográfica: Batman Zavareze
Figurinos: Luís Cláudio Silva | Apartamento 03
Cenografia: Batman Zavareze, João Boni, Marcio Abreu, Nadja Naira e José Maria
Assistente de arte: Gabriel Silveira
Edição de vídeo: João Oliveira
Captação de imagens para vídeos: Cacá Bernardes | Bruta Flor Filmes
Design de som: Chico Santarosa
Assistência de cenografia: Kauê Mar
Técnica de vídeo, luz e programação videomapping: Michelle Bezerra, Ricardo Barbosa e Denis Kageyama
Técnica de luz e som: Dafne Rufino
Cenotécnica e maquinaria: Tinho Viana, Alexander Peixoto, Sasso Campanaro e Douglas Caldas
Fotos: Nana Moraes
Programação visual: Pablito Kucarz e Miriam Fontoura
Criação e produção: companhia brasileira de teatro

Peça é também uma homenagem à Renata Sorrah. Foto: Lina Sumizono

 

 

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