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Performance da hipocrisia: reflexões
sobre autoimagem e dissimulação em
Pontos de Vista de um Palhaço

Com atuação de Daniel Warren e dramaturgia e direção de Maristela Chelala. Foto: Divulgação

Em Cenas de um Casamento (1974), Ingmar Bergman constrói uma das mais impiedosas dissecações da hipocrisia conjugal já filmadas. Na sequência do jantar entre casais, a câmera enquadra inicialmente o lustre de cristais envolto de castiçais, estabelecendo a atmosfera do sucesso familiar. Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullman) recebem seus amigos Katarina Katarina (Bibi Andersson) e Peter (Jan Malmsjö) numa mesa farta, onde a conversa flui animada durante a sobremesa. Johan lê para os convidados a entrevista que ele e Marianne concederam a uma revista, celebrando sua felicidade conjugal.

Bergman constrói a tensão gradualmente: o que começam como indiretas aparentemente brincalhonas entre os convidados revelam feridas profundas. A tentativa de Johan de mudar o ambiente – “Vamos tomar um café na sala de estar” – apenas transfere o campo de batalha. O que parecia ser um agradável jantar entre amigos íntimos se transforma em pesadelo quando Katarina joga bebida no rosto de Peter após uma escalada de agressões verbais. O divórcio do casal convidado se torna inevitável diante dos anfitriões constrangidos.

A câmera de Bergman opera como um microscópio social: ela revela que a hipocrisia atua menos como mentira consciente do que como autoengano sistemático. Cada personagem acredita sinceramente em sua própria performance de felicidade matrimonial, o que torna a situação ainda mais perturbadora. A genialidade do cineasta reside em mostrar que a hipocrisia conjugal funciona como um sistema de proteção mútua: cada cônjuge mantém as ilusões do outro para preservar as próprias. Marianne e Johan observam a explosão de seus convidados com uma mistura de horror e superioridade, sem perceber que estão projetando seus próprios conflitos não resolvidos.

Esta anatomia da dissimulação encontra eco nas análises sociológicas contemporâneas sobre como construímos nossa identidade através da performance social. O sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982), em A Representação do Eu na Vida Cotidiana (1959), transformou profundamente a compreensão sociológica ao propor que toda interação social move-se através de uma dramaturgia complexa. Para Goffman, cada indivíduo atua como ator social que escolhe seu palco, sua peça e seu figurino conforme o público que pretende atingir. O objetivo principal é manter coerência entre diferentes performances e se ajustar conforme a situação.

O conceito goffmaniano de “fachada” – equipamento expressivo padronizado que inclui cenário, aparência e maneira – oferece uma chave de leitura para compreender como as relações sociais se estruturam através de códigos teatrais. Goffman observa que quando a definição aceita da situação é desacreditada, os atores podem fingir que nada mudou para manter a paz ou obter vantagens. A cena bergmaniana do jantar exemplifica perfeitamente esse mecanismo: todos os presentes colaboram inicialmente para manter a fachada de harmonia, mesmo quando os sinais de conflito se tornam evidentes.

Essa compreensão da teatralidade social encontra uma expressão particularmente potente na adaptação teatral de Pontos de Vista de um Palhaço, onde o ator Daniel Warren leva ao palco um monólogo tragicômico baseado no romance homônimo do escritor alemão Heinrich Böll (1917-1985), Prêmio Nobel de Literatura em 1972. Böll, que vivenciou tanto a Segunda Guerra Mundial quanto a reconstrução alemã, desenvolveu uma obra literária marcada pela crítica social às hipocrisias do pós-guerra, especialmente às contradições entre discurso moral e prática social.

Sob a direção de Maristela Chelala, o espetáculo propõe uma situação dramatúrgica engenhosa: um palhaço em crise profissional e amorosa se instala no divã para uma sessão terapêutica – que na realidade é todo o palco -, revelando ao público, que atua simultaneamente como plateia teatral e testemunha clínica, os motivos que o conduziram ao colapso.

Peça é baseada no romance homônimo do escritor alemão Heinrich Böll, Prêmio Nobel de Literatura em 1972

A montagem explora uma fragmentação radical do protagonista Hans Schnier, que o ator Warren divide em duas personagens e personalidades distintas: o próprio Hans e seu alter ego, um palhaço chamado Schnier. Na adaptação de Chelala, esse alter ego se transforma no narrador da história, criando possibilidades cômicas que emergem precisamente dessa divisão interna. “Estou com problemas com o meu sócio”, desabafa o palhaço nos primeiros momentos: “Ele é um irmão que não é um irmão, mas é como se fosse. Que você ama e odeia ao mesmo tempo.” É assim, referindo-se a si próprio na terceira pessoa, que Schnier começa a contar seus percalços de artista mambembe na Alemanha do pós-Segunda Guerra.

O mote para o desenrolar da trama é a decadência profissional do palhaço narrador, seguida de sua ruína pessoal, após uma grave briga que expõe divergências de valores e crenças religiosas nas relações pessoais, revelando também a intolerância no convívio social. Para interpretar essa crise de identidade, Warren passeia por estados de espírito opostos: da graça e do sarcasmo à revolta, manipulando com sutileza a máscara do palhaço para alternar-se entre Hans e Schnier.

Essa escolha dramatúrgica revela uma compreensão sofisticada dos mecanismos psicológicos em jogo na obra original de Böll, internalizando o conflito que no romance se estabelecia entre personagens distintos. O conceito de Doppelgänger (“duplo caminhante”) surge na literatura romântica alemã como expressão da fragmentação do sujeito moderno. Suas origens literárias remontam ao final do século XVIII, quando Jean Paul, em Siebenkäs (1796-97), definiu o Doppelgänger como “pessoas que veem a si mesmas”. Edgar Allan Poe, em William Wilson (1839), utilizou essa figura para explorar os aspectos sombrios da personalidade humana.

No teatro contemporâneo, Robert Wilson desenvolveu uma estética específica para trabalhar com duplicações. Em obras como Einstein on the Beach (1976) e The Life and Times of Joseph Stalin (1973), Wilson criou cenas onde performers se movimentavam como duplos fantasmáticos uns dos outros, questionando a unidade do sujeito através da repetição gestual e vocal. Cada uma dessas obras parecia como se Wilson tivesse convidado o público para uma paisagem de sonho – um mundo governado por sua própria lógica interna de tempo, movimento e imagem. Em Einstein on the Beach, os performers executavam movimentos extremamente lentos e precisos, criando ecos gestuais entre si, enquanto em Joseph Stalin, a duplicação se manifestava através de repetições rituais de ações cotidianas que se multiplicavam no palco como reflexos distorcidos.

Em Pontos de Vista de um Palhaço, Warren utiliza estratégia diferente: em vez da lentidão hipnótica de Wilson, ele trabalha com alternância rápida entre registros, corporificando a divisão interna do sujeito contemporâneo através da manipulação física e vocal da máscara. Quando Goffman demonstra que o equipamento expressivo inclui tanto a aparência quanto a maneira – comportamentos que informam sobre papéis sociais -, Warren expõe dramaturgicamente esse fenômeno através da mudança de personagem. Cada alternância revela que somos múltiplos e contraditórios, habitamos permanentemente a linguagem que nos constitui e nos aliena simultaneamente.

Essa dinâmica ecoa a figura do flâneur moderno, aquele observador urbano que se recusa a acelerar o passo da produtividade social, que insiste em observar o mundo com a lentidão necessária para captar suas contradições. O palhaço de Warren atualiza essa figura, mas sua resistência pode ser também uma forma sofisticada de narcisismo – a recusa em participar dos jogos sociais estabelecidos como forma de manter a pureza moral, mesmo quando essa pureza implica inação política. Warren consegue equilibrar essa ambiguidade através do humor inteligente que permeia toda a apresentação.

O espetáculo estreou em 2017 e desde lá faz circulações pelo país. 

Henri Bergson, em O Riso: Ensaio sobre a Significação da Comicidade (1900), propõe que rimos quando percebemos algo de mecânico incrustado no vivo – quando seres humanos se comportam como autômatos, revelando rigidez onde esperávamos flexibilidade. Warren utiliza essa mecânica bergsoniana quando alterna entre os dois personagens que interpreta, extraindo humor da artificialidade dos códigos sociais que governam cada um deles. O público ri ao reconhecer que nossos comportamentos mais “naturais” são programações sociais rígidas.

Bergson também observa que o riso possui uma dimensão corretiva e social. As interações de Warren com a plateia operam como revelações que expõem ao público seus próprios mecanismos de dissimulação. São risos de cumplicidade e constrangimento simultâneos – o que os torna mais perturbadores do que simples divertimento.

Hans Schnier ocupa território ambíguo, semelhante ao Príncipe Míchkin de O Idiota (1869), de Dostoiévski. Míchkin representa a tentativa impossível de viver segundo princípios cristãos numa sociedade corrupta. Já o ator Warren constrói um personagem que oscila entre a lucidez crítica e o autoengano, entre a resistência ética e a autopiedade narcísica. A divisão entre Hans e seu alter ego Schnier permite que o ator explore essa ambiguidade de forma teatralmente produtiva: cada faceta comenta ironicamente a outra, impedindo qualquer resolução fácil.

A construção cênica da montagem trabalha com alternância constante entre registros emocionais, impedindo que o público se acomode numa única resposta afetiva. Cada momento de riso é contaminado pela melancolia subjacente; cada instante de tristeza é atravessado por ironia que desarma qualquer sentimentalismo simples. O resultado é uma experiência emocional complexa que espelha a própria ambiguidade da existência contemporânea, onde a linha entre sinceridade e performance se torna cada vez mais tênue.

A religiosidade hipócrita, presente no romance de Böll como crítica específica ao catolicismo alemão do pós-guerra, ganha na montagem uma dimensão que extrapola esse contexto original. O ator Warren constrói sua crítica através da ironia sutil, evitando o panfleto direto. Quando aborda as contradições entre discurso religioso e prática social – especialmente através da história da briga que expõe divergências de crenças religiosas -, insinua paralelos evidentes com o cenário brasileiro contemporâneo: a ascensão de lideranças evangélicas envolvidas em escândalos financeiros, a instrumentalização política da fé, a transformação de templos em empresas de entretenimento religioso.

O capitalismo tardio, com suas demandas de performance constante, encontra no palhaço em crise uma metáfora da condição do trabalhador criativo contemporâneo. A incapacidade de Hans de continuar produzindo humor sob demanda ecoa as experiências de esgotamento que atravessam desde influenciadores digitais até professores universitários, todos pressionados a performar entusiasmo por suas atividades profissionais. Warren consegue extrair dessa matéria melancólica um humor espontâneo que chega às gargalhadas, construindo gags que emergem organicamente da situação dramática e de suas interações improvisadas com a plateia.

O espetáculo Pontos de Vista de um Palhaço revela sua maior potência quando resiste à tentação de oferecer resoluções fáceis. O palhaço permanece em crise, a sociedade continua hipócrita, e o público sai do teatro sem cartilhas morais prontas. Apesar da densidade temática, a montagem consegue terminar com uma sensação de leveza, como se o próprio ato de nomear e expor as contradições já fosse uma forma de libertação temporária. Numa época marcada por soluções rápidas e coaches de vida, um palhaço que permanece perdido mas consegue rir de sua própria perdição pode ser a figura mais lúcida em cena. Warren equilibra humor e reflexão crítica, construindo um trabalho maduro que faz rir sem perder a densidade necessária para abordar as hipocrisias do nosso tempo.

Ficha Técnica

Pontos de Vista de um Palhaço
Concepção Artística
: Maristela Chelala e Daniel Warren
Inspirado no romance Ansichten eines Clowns, de Heirich Böll
Dramaturgia e Direção: Maristela Chelala
Elenco: Daniel Warren
Preparação e Técnicas de Palhaços: Esio Magalhães
Iluminação e Cenografia: Marisa Bentivegna
Figurino: Carol Badra
Trilha Sonora: Frederico Godoy
Fotos: Lígia Jardim e Willian Aguiar
Assistente de Produção: Marita Prado
Produção: Fenetre Produções Artísticas- Daniel Warren e Maristela Chelala

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